Há poucas redações com jornalistas aos quais se pode perguntar, em caso de dúvida, o clássico ‘como se escreve a palavra tal?’. E, mais do que isso, qual a regência de um verbo, a conjugação de formas irregulares, a aplicação precisa de uma forma depoente ou mediopassiva, se tal frase ou expressão leva crase ou não, se determinado parágrafo soa bem etc.
Sim, como aqueles que tocam músicas inteiras de ouvido, sem pauta, há outros que escrevem de modo análogo, sem consultar a gramática. Depois de redigirem certo trecho, leem, às vezes em voz alta, e, desconfiando da qualidade do que acabaram de obrar, temem ter que dar uma passadinha no sítio do escritor e jornalista Moacir Japiassu para dar um jeito nas ferraduras. Então, reescrevem de outro modo o que queriam dizer. Escrever é sobretudo reescrever, cortar, resumir, dizer a mesma coisa de outra maneira.
Livro póstumo
Em todas as redações – na mídia ou em outros ambientes, pois praticamente todas as médias e grandes empresas têm serviços onde empregam jornalistas – ao menos um desses profissionais é indispensável. Pelos crimes de lesa-língua que comprovamos todos os dias na mídia e nas empresas, a língua portuguesa está sem guardiães, chamem-se eles até mesmo cães de guarda, para depreciá-los, pois vivemos um tempo em que são muitas as ocasiões em que aquele que sabe deve quase pedir desculpas ao que não sabe.
A arrogância é mais frequente entre os que não sabem do que entre os que sabem, pois o verdadeiro sábio é humilde e sabe que nada sabe e que errare humanum est, sed perseverare in erro diabolicum est. O problema é que a maioria os que erram são reincidentes, de modo que para eles vale a segunda parte do provérbio: perseveram no erro.
E não é que os transgressores encontram quinta-colunas até mesmo nas universidades? É raro um professor vir a público para reforçar a norma culta. É mais frequente que venha para espinafrar quem defenda os bons costumes na língua e para justificar que cada um deve escrever como lhe apraz, seja canela ou sassafrás. Mas não praticaram as transgressões gramaticais que tanto defendem para obter seus títulos e serem aprovados em provas e entrevistas que os qualificaram para ensinar em escolas e universidades, do contrário teriam sido reprovados.
Eduardo Martins (1939-2008) foi um desses baluartes da arte de escrever. Sim, escrever não é só técnica, é arte, e as referências solares de uma língua são literárias. Não quero dizer que não haja outras, quero dizer apenas que as solares são de poetas, romancistas, contistas, cronistas e, mais raramente, de ensaístas.
O inglês é o idioma de William Shakespeare, o espanhol é o de Miguel de Cervantes, o português é o de Luis de Camões, do padre Antonio Vieira ou do nosso nunca assaz turiferado Machado de Assis. Este teve que vencer diversos preconceitos – da cor, da pobreza, da falta de escola, da gagueira, da epilepsia, de não ter tido filhos, de ter casado com solteirona etc. – antes de se tornar referência dominante em seu tempo e mais ainda na posteridade. Mas quem o lê e, mais do que isso, quem o entende, hoje? Temo que, a julgar pelos tropeços nas citações de mestres, ele é pouco lido até mesmo nas universidades.
Pois Eduardo Martins está com uma preciosidade na praça. É um livrinho póstumo, mas quem morreu foi o autor, não seus livros. Em coedição da Editora Clio e da Barros, Fischer & Associados, a herdeira do autor cedeu à La Selva os direitos para Os 300 erros mais comuns da língua portuguesa (livro de bolso, 128 páginas).
Sintoma grave
Logo às primeiras páginas, em ‘Concordância’, ele lembra que o verbo fazer, quando exprime tempo, é impessoal, não varia. É errado ‘fazem dez dias’, o certo é ‘faz dez dias, fez dois meses’, e que haver, no sentido de existir, também é invariável. E que, por isso, é errado ‘houveram muitos problemas’, o certo é ‘houve muitos problemas’.
Erros de concordância abundam em correspondências internas ou externas. ‘Segue os documentos’ é marca registrada de que quem mal pensa, escreve pior. Pois o erro não é apenas de norma culta, é de lógica. Se o sujeito está no plural, o verbo não pode ir para o singular…
Na página 62, ele vitupera o conhecido ‘junto ao’, dando exemplos: ‘O recurso deu entrada junto ao STF’? Não! Deu entrada no STF. E, duas páginas depois, explica as armadilhas das falsas gêmeas. Você pode caçar perdizes, mas a Justiça cassa liminares. Gato, cachorro, piano e avião têm caudas, não caldas.
É verdade que Eduardo Martins às vezes exagera, mas isso não invalida seu trabalho. Errare humanum est… Por exemplo: na página 84, ele, contrariando dicionários e gramáticas, dá apenas um gênero à palavra ‘atenuante’. Mas, seja substantivo, seja adjetivo, ‘agravante’ tem dois gêneros. Neste caso, os lexicógrafos acolheram a máxima romana: os costumes são os melhores intérpretes das leis. E consolidaram há tempos essas variantes.
É proverbial o cuidado com os extremos. In medio virtus (a virtude está no meio), mas, ainda assim, parece recomendação mais sábia a de Confúcio: ‘Eu sei por que motivo o meio-termo não é seguido: o homem inteligente ultrapassa-o, o imbecil fica aquém’. Esta última está no livro Não espere pelo epitáfio (Editora Vozes, 158 páginas), de Mario Sergio Cortella, professor de filosofia na PUC-SP, em que reúne artigos publicados antes na imprensa.
Há uma sede do público por aprender língua portuguesa. Não é por acaso que grandes jornais e grandes empresas procuram ter em seus quadros referências solares da técnica e da arte de escrever. Profissionais como Sérgio Nogueira no sistema Globo; Pasquale Cipro Neto, na Folha de S.Paulo; Cláudio Moreno, no jornal Zero Hora; Dad Squarisi, no Correio Braziliense. Português é difícil? Dad Squarisi nasceu no Líbano e hoje ensina os brasileiros a escrever: sua coluna ‘Dicas de Português’ é publicada em 15 jornais.
Enfim se há quem se esmere tanto em cuidar, isso é sintoma de que escolas e universidades estão falhando em outra técnica e em outra arte: a de ensinar. Como é que deram diplomas a profissionais que tratam desse modo a língua portuguesa?
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Escritor, doutor em Letras pela Universidade de São Paulo, professor e pró-reitor de Cultura e Extensão da Universidade Estácio de Sá (Rio de Janeiro), autor de A Placenta e o Caixão, Avante, Soldados: Para Trás e Contos Reunidos (Editora LeYa)