Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Reflexão sobre ‘espertinhos e espertalhões’

Como meio de desinformar a opinião pública, dessa vez a respeito da questão indígena no Brasil, a revista Veja publicou no dia 05/05/2010 uma matéria no mínimo ‘repugnante’ e ainda por cima toda ‘montada’, como já mostraram diversos antropólogos. No entanto, ainda é preciso, como notou a Comissão de Assuntos Indígenas da Associação Brasileira de Antropologia, utilizar todos os meios possíveis de comunicação para esclarecer o absurdo do discurso discriminatório e preconceituoso que a revista propaga a seus leitores. Esse é o espírito do presente comentário: manifestar repúdio à revista Veja pelo fato de reavivar uma antropologia sorrateira, aquela velha professada por médicos sociais de outrora, que não cessa de fazer convergir o ontológico e o jurídico com objetivos segregatórios, tomando Outrem como um impeditivo da ‘prosperidade’ do Brasil – pelo menos como gostaria a Veja – ‘naturalmente’ cada vez mais branqueado e euro-americanizado.

Em primeiro lugar, toda a matéria é montada porque a maioria dos dados que a revista utiliza para argumentar são falsos – desde os dados estatísticos, passando pelo que Veja chama de ‘indústria da demarcação’, até frases fraudulentas atribuídas a antropólogos. Nada sustenta o argumento da revista, a não ser, é claro, o absurdo discriminatório que ela professa, o que faz, em segundo lugar, a matéria ser repugnante.

Uma ‘aberração científica’

Ou as teses da revista não são: que no Brasil tirando os poucos índios e quilombolas ‘naturais’ (monstro argumentativo, que não só ‘ainda’ trata essas pessoas como parte da fauna e da flora, como prevê um mundo originário que não existe senão na cabeça de alguns ideólogos) todos os outros seriam artificiais e, pior, ‘espertinhos e espertalhões’ que acabam por frear o desenvolvimento do capitalismo? E esses ‘índios que não são índios’ e ‘negros que não são negros’, enfim, esses mestiços que agora querem virar índios e virar negros, estão tomando por meio de uma ‘aberração científica’ aquilo que deveria ser (do) branco – quer dizer, universal, e pouco importa?

Enfim, se essas pessoas que já não são mais índios ou negros (porque não têm uma natureza cultural original, vejam só!) podem ser levadas ao mercado, podem vender sua força de trabalho, devem ser tornadas população e que suas terras produtivas sejam destinadas àqueles que ‘querem produzir’. Já li isso antes, com o nome de ‘ocupação induzida’. Um argumento bastante velho, quiçá do ambiente da ‘natureza da cultura original’ na qual a Veja nasceu e foi gestada, mas com certeza ‘doEnte’ – me desculpem o neologismo. Precisamos de outro milagre econômico?

Que os índios podem se tornar brancos e civilizados como uma marcha natural dos processos civilizacionais, Veja aceita bem. Pois é a indianidade nesse tipo de argumento algo temporário que ‘naturalmente’ vai se desfazer de sua própria naturalidade. Há mesmo um ‘pessimismo sentimental’ por parte do civilizado, que desde tempos remotos sustenta esse discurso e hoje os índios ainda estão desaparecendo e, talvez daqui a cem anos continuem desaparecendo, como diz Marshall Sahlins. Afinal esse é um problema jurídico-político de Estado, de sua governabilidade. Puro etnocentrismo de Estado – e não é necessário falar dessa antiga relação. No entanto, um civilizado tornar-se índio parece sempre algo despropositado, a ‘aberração científica’ dos índios ressurgidos, uma coisa artificial para ‘espertinhos e espertalhões’.

‘Renascimento’ e ‘artificialismo’

É verdade, os Tupinambás de Olivença (aqueles neotupinambá da revista Veja, os índios extintos há anos) chamaram um xamã Guarani para que ele ensinasse seu pajé a respeito de sua própria cultura ancestral, que segundo eles próprios havia se perdido por conta dos massacres, pestes, catástrofes, invasões dos brancos. E esse não é um caso isolado. Vemos surgir aulas de língua indígena para índios, padres que ensinam aos índios seus próprios rituais. Estes, por sua vez, utilizam-se de modo auto-reflexivo a noção estatal de índio (que por si só é uma categoria jurídico-discriminatória, só existe índio a partir do contato com o Estado) como modo de auto-afirmação de sua cultura ancestral. Isso é realmente um paradoxo. E a o ‘medo’ de Veja é que o Brasil se torne indígena, e que a nação perca sua verdadeira identidade (e qual é ela, mesmo?).

Entretanto, esse movimento não é nem novo, nem particular. Para lembrar de uma parábola de Sahlins comentada por Eduardo Viveiros de Castro, um grupo de povos misturados que falavam diversas línguas híbridas e que vivia há mais de 600 anos no extremo ocidente do mundo, achava-se desprovido de cultura. Haviam perdido sua verdadeira identidade por conta de sucessivas catástrofes, pestes, mudanças climáticas, invasões bárbaras. Em uma tomada política, esses povos estranhos começaram a se reinventar, colocar as coisas nos trilhos, através de manuscritos antigos, documentos, monumentos que eles não conheciam bem e assim faziam traduções de línguas mortas e recuperavam sua cultura ancestral que eles puderam descobrir a partir dos árabes. Inventavam assim, coisas inexistentes, tiraram conclusões delirantes e inventavam antigos segredos sobre eles mesmos. Isso é o que conhecemos como Renascimento, o que marca o início do Ocidente Moderno, do nosso progresso, de nossas ‘luzes’.

‘Renascimento’, para nós, e artificialismo de ‘espertinhos e espertalhões’, para os outros.

Uma reflexão pausada e concreta

Aqui é preciso lembrar Lévi-Strauss que escreveu um belíssimo livro (Raça e história), aliás, encomendado pela Unesco como forma de combater o racismo e o etnocentrismo, no qual ele mostrava a inexistência de qualquer possibilidade de uma cultura pura e original. Toda cultura é sempre uma miscelânea de outras culturas, inclusive a nossa. É nesse sentido que poderíamos parafrasear Eduardo Viveiros de Castro e dizer que ‘no Brasil todo mundo é índio (também): exceto quem não é’. Falso problema decidir quem são os ‘índios verdadeiros e mais originais’ e quais são das ‘Organizações Tabajara’. Porque além dessa distinção não existir (se tomássemos o modo de pensar da Veja, certamente não existiriam índios no Brasil, e nem mesmo o Brasil), sabemos dos efeitos peremptórios e perversos do que significa fixar uma identidade alheia (ou preciso lembrar dos teóricos da raça?).

No mais, e para ser sincero, não se poderia esperar outra coisa da Veja.

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Nota: recomendo a leitura da entrevista de Viveiros de Castro a respeito dessa problemática para conhecer uma reflexão mais pausada e concreta da questão indígena no Brasil (é verdade, a mesma entrevista que a Veja tomou como base para fazer uma fraude).

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Mestre em Antropologia Social, graduado em Ciências Sociais, professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fespsp)