Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Reinaldo Azevedo

‘O QUE É, O QUE É? É um pássaro? É um avião? É só uma teoria conspiratória? Seria a inépcia do governo Lula?

O jornal O Estado de S. Paulo publica um editorial, nesta sexta-feira, à pagina A-3, em que contesta abertamente a interpretação deste Primeira Leitura para o que teria sido a ‘derrota’ do governo na votação da MP dos Bingos, determinada, segundo diz, pela ‘inépcia’ oficial. O texto, claro!, não cita o nome deste modesto site, mas chega a pôr entre aspas os termos com os quais nos referimos àquele episódio: o governo ‘fez corpo mole’. Se o Estadão não cita a planície, não vejo problema, e até me honra, em dialogar com o planalto, citando o Estadão. Como devem ter acompanhado os nossos internautas, sustentou-se aqui, o que reitero, que o governo optou pela derrota como cálculo, embora o método semelhe, e seja mesmo, puro destrambelho.

Quer o Estadão que tal leitura dos fatos constitua a defesa de uma ‘teoria conspiratória’. A propósito, antes que siga, destaco que, em outro editorial, na mesma página, igualmente bem articulado, este sobre ‘As fundações da USP’, o jornal volta a contestar uma opinião contrária à sua com a mesma pecha: ‘teoria conspiratória’. Ora, tanta ‘teoria conspiratória’ numa mesma página ou indica excesso de conspirações ou excesso de facilidades para contestar aquilo de que se discorda. E eu aposto na segunda hipótese.

Não! Primeira Leitura não investe em teorias conspiratórias. Aqui, aliás, já se escreveu sobre isso. Não raro, estas se alimentam da ausência de provas ou, pior ainda, das provas contrárias à tese que se sustenta. O emblema desse tipo particular de maluquice se dá com os discos voadores: como não há evidências materiais de sua existência, conclui-se que é porque a Nasa as esconde. De sorte que se está diante de um paradoxo estupendo: os discos existem porque as provas inexistem; se invertidos os termos da proposição, forçoso seria concluir que, existindo as provas, o que inexiste são os discos… Terá sido assim com a MP dos Bingos?

Transcrevo, a seguir, trecho colhido num jornal sobre o que se deu naquela quarta-feira, dia 5. Peço ao internauta que leia o que segue com todo o cuidado. ‘É inconcebível que o governo ignorasse que, ali [no Senado], a resistência à proibição dos bingos e caça-níqueis seria incomparavelmente maior do que na Câmara (…). É inconcebível que o governo tampouco levasse em conta a incerteza adicional decorrente da crise na bancada peemedebista (…). É inconcebível, por fim, que, ciente da precariedade de sua vantagem no Senado (…), o governo deixasse de recorrer aos bons ofícios de seu aliado Sarney a fim de adiar a votação para um dia em que a base não estivesse desfalcada. Afinal, sabia-se de antemão da ausência de 9 de seus integrantes, entre eles 4 petistas (…). E não havia razão nenhuma para correr: a MP poderia ser votada até 18 de junho’.

Sabem de onde se extraí o trecho que mais exemplar e cabalmente evidencia que o governo ‘fez corpo mole’? Do próprio editorial do Estadão, aquele mesmo desta sexta, em que se contesta a interpretação de Primeira Leitura. Ora, não sei o que entende exatamente o texto pelo adjetivo ‘inconcebível’. A estar a palavra empregada em sentido estritamente denotativo, com efeito, nada do que vai acima se pode conceber sem que se conclua o óbvio: o governo sabia que iria perder e optou pela derrota. O governo pode ser, e eu avalio que é, inepto, como quer o jornal. Mas daí a julgar que seja estúpido a ponto de não perceber que tal cenário estava pronto para abrigar o drama da ‘derrota’ vai grande diferença. O editorial foi ao ponto: por que não se adiou a votação?

Se a estratégia nos parece exótica ou amalucada, isso é outra coisa. O Estadão contesta ainda o que seria uma ‘versão maquiavélica’ dos fatos, juntando o que todo mundo sabe com o que ninguém disse para tentar ridicularizá-la. Apelo, de saída, à larga tradição daquele veículo e à histórica sapiência de seus editoriais para que não se empregue o termo ‘maquiavélico’ como sinônimo de trapaça política, o que não faz justiça nem a Maquiavel nem ao jornal. Em segundo lugar, destaco um trecho que me parece exemplar do que chamaria, no editorial, o momento de equívoco: ‘Segundo tal raciocínio [o da teoria conspiratória], tendo editado a MP só para abafar o Waldogate – antes do escândalo, o objetivo era regulamentar o bingo -, o governo queria se livrar da pecha de contribuir para o desemprego, o principal argumento da tavolagem em campanha pela volta do bingo’.

Pergunto, ainda que retoricamente, ao Estadão: considera ele falso que Lula tenha baixado a MP só para tentar abafar o Waldogate? O jornal considera falso que, antes, ‘o objetivo [do governo] era regulamentar o bingo’? Não fora apenas para abafar o caso, o que fazia a proposta de regulamentação na mensagem que o governo enviara ao Congresso? Não tivesse ele o objetivo de ‘regulamentar o bingo’, por que a senadora Ideli Salvatti (PT-SC), esta mesma que representou a defesa da MP, assinou o projeto? Teria a senadora descoberto, só mais tarde, as artimanhas da ‘tavolagem’ (saúdo a volta do vocábulo ao texto corrente)?

Ademais, o desemprego decorrente do fechamento do bingo não depende da opinião dos ‘tavolageiros’. É um dado da realidade. Tampouco se viu algum crítico da MP recorrer a tal questão para justificar seu voto contrário à medida – se o fizesse, não estaria inventando um problema, mas apontando uma evidência. O contra-argumento, tomado emprestado ao presidente Lula – ‘se é para criar empregos, se legalize a prostituição infantil’ -, é uma aberração no princípio e na ordem dos fatos. Espanta-me um pouco que o Estadão se dedique a citar filósofo tão precário.

Quem joga ou abre um bingo não está especialmente propenso a molestar crianças. Países há aos montes em que a atividade é legalizada, sem que se seja leniente com crimes daquela natureza. Está-se também diante de uma perigosa armadilha. Muita atenção nesta hora: promover a prostituição infantil, parece-me, agride um valor humano fundamental. O jogo certamente não é matéria de mesma natureza. Se se igualam na conjuntura da ilegalidade, não se igualam nos valores a que remetem. Igualá-los na esfera dos princípios ou é magnificar a gravidade de um ou é subestimar a gravidade do outro. De resto, estivesse Lula certo no princípio, poderia a Caixa Econômica Federal ser equiparada a um prostíbulo estatal? Ou a legalidade de um procedimento tem o poder de mudar a sua essência? A que tipo de depredação teórica estão se entregando ‘este país’ e ‘este planetinha’ – como costuma se referir o nosso presidente, cheio de intimidade, a larguezas territoriais que espelham sua largueza de pensamento?

Há um hiato claro, evidente – e isso não é problema meu -, entre a tese do editorial e a sua demonstração. Os fatos arrolados pelo jornal, que resultaram na ‘derrota’ do governo, são, de fato, ‘inconcebíveis’ se o Planalto tivesse entrado na disputa para ganhar. Como avaliou – e ‘isso é fato, isso é verdade’ – que a derrota lhe seria mais útil, marchou de peito aberto contra aquele que seria o seu interesse. Vai ver esperava, no que foi bem-sucedido – e o editorial do Estadão o prova, bem como a cobertura do Jornal Nacional -, que a responsabilidade pela derrota da MP recaísse toda sobre as costas da oposição. Não por acaso, os oposicionistas são acusados, no editorial, de ‘oposicionismo raso’. Ainda segundo o texto, ‘Para fazer mal ao governo, PSDB e PFL (…) fizeram mal ao país’. Não entendi por que o jornal considera que só se pode fazer bem ao país votando a favor da MP. Quisessem os oposicionistas ‘fazer mal ao governo’ – ao país, talvez -, não teriam eles derrotado a emenda na reforma da Previdência já na primeira votação da Câmara? Ou será que o ‘mal’ acaba sendo apanágio de quem vota contra o governo, sendo o bem o seu exato contrário?

Ademais, não custa lembrar, o que se votou ali foi se uma MP era ou não instrumento pertinente para o caso. Como pode atender aos requisitos de ‘urgência e relevância’ matéria que, até havia dias, contava com entusiastas no próprio Palácio do Planalto? A descoberta de que o governo tinha um ‘tavolageiro’ como seu operador político não faz do jogo objeto de Medida Provisória. Se os que votaram contra a MP estavam ou não mancomunados com os bingueiros, isso é matéria a se provar, não a se presumir. Já o que está provado, e não precisa ser presumido, é que atuais e supostos defensores da proibição dos bingos estavam, sim, de braços dados com a ‘tavolagem’. E isso é fato, isso é verdade.

Caminho para a conclusão dizendo que o medo de aderir a supostas teorias conspiratórias não nos deve levar a conspirar contra as evidências e, no que respeita a um texto, contra os próprios argumentos. Endosso a leitura do Estadão de que é este, com efeito, um governo ‘inepto’. Essa barafunda dos bingos é também inépcia sem deixar de ser o que os fatos provam com descarada evidência: truque, marotagem, cálculo – ainda que desastrado. Ademais, tudo indica, o Planalto estuda uma saída (não se sabe se MP ou outro expediente) que coíba os jogos eletrônicos e caça-níqueis, preservando os de cartela. Ora, se o presidente estiver certo, isso significa que aceitará só meia prostituição? Como Lula e quem lhe compra os argumentos estão errados, talvez se possa agora trilhar um caminho mais razoável. A propósito, o Planalto poderia endossar a proposta da oposição, que já está pronta.

O jornal conclui o seu editorial fazendo votos de que os senadores ‘se reconciliem com os interesses nacionais quando tratarem do salário mínimo’. Não fica claro se isso implica, necessariamente, endossar a proposta oficial, de R$ 260. Só me resta concluir que os ‘interesses nacionais’ são um território bastante vasto, certamente ainda não capturado por um grupo de sábios, e sua coreografia sempre cambiante, que pode se dispensar de fazer política em nome das restrições orçamentárias.

Pessoalmente – e é este o pensamento de Primeira Leitura -, espero que os senadores, de oposição ou não, defendam os ‘interesses nacionais’ não se abstendo de votar segundo o que for política e tecnicamente viável. Como não há nenhum nexo causal entre a MP dos Bingos e o valor do mínimo, não me parece correto cobrar que o voto de uma causa sirva para determinar ou corrigir o de outra. De resto, haver jogo no Brasil não é necessariamente um mal. O mal está em o Poder Público entregar-se à corrupção e à leniência com a lavagem de dinheiro. Num ambiente de permissividade, em que ‘tavolageiros’ são nomeados operadores políticos, até as igrejas servem como lupanar da moralidade.’

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‘A verdade fora do consenso’, copyright Primeira Leitura, 6/05/04

‘JORNALISMO? Cena do seriado ER (Plantão Médico, no Brasil). São médicos, mas também são jornalistas, perscrutando os fatos, tentando entender como os sintomas respondem a um sistema e a uma ciência

Caminhar contra consensos e verdades coletivamente estabelecidas é sempre tarefa das mais delicadas, especialmente no jornalismo, que lida com matéria tão fluida, área em que a interpretação tem sempre peso relevante. Antes que digam que me contradigo, observo: o consenso acaba sendo uma rede de segurança, de proteção. Se estivermos errados, consola-nos ao menos não estarmos sozinhos. Algo nos diz que a quase-unanimidade é vizinha da verdade – e assim se consumam as fraudes históricas.

Vamos ver: de nenhum outro profissional, talvez, esperamos tanta objetividade e tanta razão científica quanto dos médicos – se não dos nossos, daqueles que cuidam, por exemplo, de nossos filhos. Deles queremos respostas, certezas, procedimentos acima das suspeitas e das hesitações. Basta que se reúnam dois, no entanto, e as divergências sobre diagnósticos, prognósticos e profilaxias se estabelecem. Imaginem quão dramático deve ser uma junta médica, diante de um paciente já com as vísceras à mostra, numa sala de cirurgia, e uma divergência fundamental a distinguir os profissionais.

Podemos presumir quantas vidas se perderam em nome da objetividade médica possível. E quanto elas foram úteis para salvar milhões de outras, à medida que se vão refinando os critérios, que se vai aprendendo mais, tendo maior clareza sobre a natureza do corpo humano. Se não se pode falar nem mesmo numa objetividade médica, o que não dizer da dita objetividade jornalística, que lida com fatos, claro!, mas sobretudo com conceitos. São estes que lêem aqueles, e não o contrário. Derivo um pouco, mas quero, na verdade, falar de jornalismo e da cobertura dispensada pela imprensa à suposta derrota sofrida pelo governo na MP dos Bingos. Quando menos, se os ‘derrotados’ estão fazendo festa, algo de errado há no diagnóstico.

É sempre uma decisão delicada fazer o que fez Primeira Leitura na edição anterior – vale a pena voltar a ela, leitor. Apresentamos ao internauta uma interpretação dos fatos que sabíamos, de antemão, dado o noticiário eletrônico em tempo real, divergia da larga maioria da imprensa, se não da totalidade. A nós nos pareceu, desde o primeiro momento em que se falou de ‘derrota’ do governo na MP dos Bingos (no que insistiu largamente o Jornal Nacional nesta quinta), que a questão se resolvia, de cara, pela simples aritmética. Se o governo sabia, e sabia, que a votação estava apertada, a única saída era fazer o que fez, por exemplo, durante as reformas: dar uma blitz na base, especialmente a do Senado, tão pequena, e garantir os votos. Mais: ainda que se pudessem alegar dificuldades com o PMDB, ao menos seria de rigor que os petistas estivessem todos presentes. E, no entanto, viu-se o quê?

Ocorre que a aritmética e o jogo político se tornam irrelevantes se postos num deserto conceitual ou, pior, filtrados por um conjunto de valores que distorcem, de saída, os fatos. Não se pode entender direito a derrota da MP dos Bingos se não se entende o que foi a MP dos Bingos. Convenhamos: ela era em si mesma um absurdo, medida tomada de afogadilho, mero ‘véu diáfano da fantasia’ (com a licença de Eça…) a cobrir a realidade, sem nem cumprir sequer os pré-requisitos necessários da urgência e da relevância. Mas assim não foi lida: ao contrário, o texto foi considerado, de fato, ação moralizadora, na qual o governo estaria interessado. E, no entanto, seja pela intimidade óbvia que o petismo mantinha, ao que se percebe, com os ‘empresários do jogo’, seja pela reação nada amistosa do ‘povão’, Lula e o Planalto estavam doidos para se livrar da proibição. Faltava a justa manobra para encontrar os ombros em que largar a carga.

Reparem: Primeira Leitura não está sugerindo que, na calada da noite, nos corredores escuros de um romance policial B, esgueiravam-se pérfidas figuras do governismo para enganar a patuléia. Nada disso. Num dado momento do jogo – desse jogo brasiliense, não aquele da dupla Cachoeira/Waldomiro -, percebeu-se que a ‘derrota’ trazia mais vantagens do que a vitória. Como bem revelaram Renan Calheiros e, de certo modo, Aldo Rebelo, a ter o governo de negociar condições para o funcionamento dos bingos, menos desgastante seria voltar ao status anterior. Por isso, Lula, mesmo tendo prazo e advertido de que iria perder, decretou o ‘vote-se’. Por isso, mesmo sabedor o governo de que a votação estava apertada, permitiu que os seus, com especial destaque para os petistas, se ausentassem.

Cara-de-pau

A cara-de-pau de alguns governistas, na seqüência dos fatos, é de assustar. Sarney, cujos liderados votaram contra a MP, não teve dúvida: considerou, segundo se lê no Painel da Folha, a derrota da MP ‘lamentável, o maior erro cometido pela oposição’. Ocorre que Roseana, a sua Palas Atena, a deusa dos olhos glaucos parida em sua cabeça, absteve-se. Tem ele a ambição de continuar a ser o vice-rei no país, no comando do Congresso, e quer nos fazer crer que não tem como influenciar nem mesmo o seu olimpo familiar?

Aldo Rebelo, o ministro da Coordenação Política, aquele mesmo que foi avisar o presidente Lula da ‘derrota iminente’, vem a público com uma fala maviosa, mansa na aparência, para dizer que o governo continua empenhado em combater o jogo etc. Tenho simpatias pessoais por Rebelo, por sua lhaneza, embora avultem discordâncias em quase tudo. E até por isso lhe dou uma dica: ministro, talvez o senhor não tenha percebido, mas, enquanto falava na TV, parecia fazer esforço para conter o riso. Ria do jornalismo, profissão que o senhor conhece bem.

Uma das chamadas do Jornal Nacional anunciava, em tom evidente de certa desconfiança e num clima de ironia, as razões por que a ‘oposição’ (sic) rejeitou a MP. E entraram, então, para falar senadores do PMDB! Os dez faltosos da base, bem como os quatro petistas que teriam dado a vitória ao governo ficaram, claro!, longe do noticiário.

Medo ou o quê?

O mais fantástico é que, ao menos em um dos casos, noticiou-se tudo o que era preciso ser noticiado para que se concluísse que o governo optou pela derrota. Lá estavam as advertências de Aldo, a votação apertada, de resultado incerto, as ausências da base, a desnecessidade de votar a MP na quarta-feira. Tudo. E então se deu o maravilhoso: o corpo do bicho tinha algumas toneladas, lembrando um elefante; havia uma longa tromba usada pelo animal para levar alimento e água à boca, outro forte indício de que era mesmo um elefante; as patas tinham todas as características paquidérmicas daquela alimária. Até banho de lama a criatura se esmerava em tomar. Na hora da conclusão, não se hesitou: parece elefante, mas, na verdade, é pavão. E se chamou de derrota inesperada aquele resultado que, proclamado, levou o senador Tião Viana (PT-AC) ao riso.

A oposição se deu conta, um pouco tarde, mas a tempo, do que estava em curso. Nesta quinta, o senador Arthur Virgílio (PSDB-AM) apresentou uma proposta que, com efeito, pode testar a disposição do governo de combater, se quiser, a face podre do jogo, aquela que mais facilmente se deixa contaminar pelo crime organizado, sem os malefícios sociais óbvios que embutia a MP baixada por Lula.

Por que o jornalismo faz isso? Em parte, porque está viciado na intimidade com o poder, daí as muitas e reiteradas vezes em que lemos que o ‘presidente pensa isso, avalia aquilo, considera que…, aposta em tal coisa’. Os que têm alguma intimidade com a literatura sabem que isso caracterizaria o chamado ‘narrador onisciente’, aquele que revela as intenções das personagens, suas vontades secretas, o que lhes vai pela alma. No mais das vezes, está se repetindo o que se ouviu de uma fonte qualificada. Pode-se fazê-lo evidenciando-se as contradições do discurso e incongruências com os fatos. Pode-se fazê-lo no intuito apenas de revelar o que vai nas entranhas do poder, deixando que o leitor tire as próprias conclusões – o que lustraria o primado da objetividade. Ocorre que não se pode esperar que o pobre leitor faça milagres se o que lhe é oferecido é nada além de um recorte oficial.

E o faz também porque, é preciso que se diga, boa parte do jornalismo político opera, se me permitem a metáfora, com o mesmo disco rígido do petismo, especialmente daquele que advoga para si certo exclusivismo moral. Admitir que o governo partiu de forma consciente, clara e organizada para a derrota implica admitir toda uma outra cadeia de eventos que põe em dúvida, sim, o exclusivismo moral do PT, mas, sobretudo, as crenças, convicções e valores ideológicos também de quem dá a notícia. E essas são as hipóteses generosas.

Já no que respeita à chicana televisiva, bem, aí, meus caros, é preciso encontrar as razões no BNDES.’



O Estado de S. Paulo

‘As derrotas de um governo inepto’, Edtiorial copyright O Estado de S. Paulo, 8/05/04

‘A incompetência administrativa do governo já está mais do que demonstrada. Nem seria preciso o presidente Lula admitir de público alguns dos erros mais notórios de sua gestão, citando as mudanças na arrecadação da Cofins e o alardeado programa Primeiro Emprego. O que ainda não tinha ficado claro é que essa incompetência não é menor no plano legislativo. Entre a manhã e o anoitecer da quarta-feira, mesmo dia do mea-culpa de Lula numa inauguração em Goiás, o Planalto sofreu no Congresso duas derrotas humilhantes – ambas perfeitamente evitáveis se os operadores parlamentares do Planalto não fossem tão ineptos.

Logo cedo, os líderes do governo perderam a hora, deixando que a oposição instalasse e controlasse a comissão mista que apreciará a medida provisória do salário mínimo de R$ 260. A presidência da comissão ficou com um senador do PSDB, Tasso Jereissati, e a relatoria com um deputado do PFL, Rodrigo Maia. A muito custo, os governistas conseguiram amenizar o fiasco, negociando um arranjo com os adversários pelo qual a MP será votada diretamente na Câmara, com um relator petista. Nada, porém, haveria de mitigar o desastre sem precedentes para o Planalto que foi a derrubada da MP dos Bingos, no Senado.

É inconcebível que o governo ignorasse que, ali, a resistência à proibição dos bingos e caça-níqueis seria incomparavelmente maior do que na Câmara (onde a medida passou com 222 votos de folga), devido à força concentrada do lobby da batota, combinada com os interesses pessoais de um número suficiente de senadores para tornar incerto o destino da MP. É inconcebível que o governo tampouco levasse em conta a incerteza adicional decorrente da crise na bancada peemedebista, o eixo de sua base no Senado, motivada pelo projeto da reeleição dos dirigentes das duas Casas, que opõe o líder partidário Renan Calheiros ao presidente José Sarney, a quem ele quer suceder.

É inconcebível, por fim, que, ciente da precariedade de sua vantagem no Senado – apenas uma semana antes, o trem da alegria de quase 2.800 cargos no Executivo foi aprovado por meros 3 votos -, o governo deixasse de recorrer aos bons ofícios do seu aliado Sarney a fim de adiar a votação para um dia em que a base não estivesse desfalcada. Afinal, sabia-se de antemão da ausência de 9 de seus integrantes, entre eles 4 petistas, a começar do próprio líder da maioria, Aloizio Mercadante, por indeclinável dever familiar. E não havia razão alguma para correr: a MP poderia ser votada até 18 de junho.

Diante desse volume de inépcias, há até quem defenda a teoria conspiratória de que o governo ou quis que a medida fosse rejeitada ou não se importaria que fosse (aliás, o que o Senado rejeitou, por 33 a 31 votos, com duas abstenções, foi a premissa de que se tratava de matéria urgente, portanto passível de ser legislada por MP). Segundo tal raciocínio, tendo editado a medida só para abafar o Waldogate – antes do escândalo, a intenção era regulamentar o bingo -, o governo queria se livrar da pecha de contribuir para o desemprego, o principal argumento da tavolagem em campanha pela volta da jogatina.

Por isso, o próprio Lula teria recusado a proposta de alteração da MP para limitar a proibição aos caça-níqueis, que teria garantido a sua aprovação. A versão maquiavélica omite a recente tirada de Lula de que, se é para criar empregos, se legalize então a prostituição infantil. Omite ainda que, se a reabertura dos bingos tem apoio popular, a queda da MP beneficia os políticos que a derrubaram e não o presidente que a assinou. E omite que a mudança sugerida, além de desmoralizante para Lula, representaria um desprestígio para a Câmara. Na realidade, a tese de que o Planalto ‘fez corpo mole’ só parece crível porque a incompetência do governo chega a ser incrível.

E por isso o presidente foi atropelado pelo voto contrário, abstenção ou fuga do plenário de 19 presumíveis aliados firmes, como Aelton Freitas (o suplente do vice José Alencar), Roseana Sarney e Antonio Carlos Magalhães.

Difícil saber quem agiu pior: os senadores da base cujo populismo os levou a trair, os senadores cujos vínculos com a batota ditaram o seu voto, ou os senadores cujo oposicionismo raso os fez imitar os petistas de antes da eleição de Lula. Para fazer mal ao governo, PFL e PSDB – com a solitária exceção do tucano Antero Paes de Barros – fizeram mal ao País, sabotando a proibição de um negócio que pode parecer inocente, mas tem sólidas pontes com o banditismo e o narcotráfico.

Esperemos que se reconciliem com os interesses nacionais quando tratarem do salário mínimo.’