Comentando o romance O Silêncio do Delator, do jornalista José Nêumanne, que recebeu da Academia Brasileira de Letras (ABL) o Prêmio Senador José Ermírio de Moraes, o terceiro maior prêmio literário do país, no valor de 75 mil reais – os prêmios Portugal Telecom e Passo Fundo dão, respectivamente, 100 mil reais – escreveu Antonio Olinto (Tribuna da Imprensa, 19/7/05):
‘Existe uma relação entre a história de um povo e a ficção desse mesmo povo. Sob este aspecto, mostra-se o romancista como autor de uma reafirmação, uma confirmação (até ao sentido litúrgico do termo) de um tempo vivido. É assim que percebo, na mais íntima e científica acepção do verbo ‘perceber’, os enredos que os melhores romancistas brasileiros de hoje arrancam do tempo real para com eles retratar o país e sua gente. Como compreender a Inglaterra do século XVIII sem a leitura de Tom Jones? Ou a Rússia do século XIX sem a obra de Dostoievsky? Ou a França de Louis Philippe sem a Comédia humana de Balzac? Ou a Terceira República sem Proust? Como entender qualquer realidade sem a sua correspondente ficção?’
Contudo vozes autorizadas como de Antonio Olinto estão cada vez mais solitárias nas resenhas e comentários publicados nas páginas ditas especializadas de jornais e revistas. As evidências são tantas que dispensam amostras, mas não custa aludir a duas ou três.
De repente, Affonso Romano de Sant’Anna e Wilson Martins, dois dos melhores intérpretes de nossas letras, sem contar que o primeiro é essencialmente um grande poeta e o segundo é basicamente um crítico literário dos mais aparelhados que temos, tiveram suas colunas semanais retiradas de O Globo. Mas em nome de que e quem entrou no lugar? Em nome de nada, não veio ninguém: a partir desta semana as colunas serão interrompidas – e o jornal empobrece seu caderno Prosa & Verso, é lógico. O motivo: ‘redução de custos’.
Depois, a imprensa quer leitores! Mas será que quer mesmo? Como? O leitor quer textos, fotos, notícias, opiniões, café no bule! Até hoje a MPB faz sucesso porque seus cantores procuraram o circuito escolar, principalmente os campi universitários, para mostrar o que cantavam, já que outros caminhos estavam intoxicados. A censura fez O Estado de S.Paulo esgotar receitas culinárias alternadas com estrofes inteiras de Os Lusíadas para enviar recados sutis aos leitores: ali deveriam estar outros textos!
Coisa semelhante aconteceu na literatura nos anos 1970, que não teria consolidado os nomes referenciais da produção literária, caso os escritores apenas escrevessem! Não, eles foram abrir novos caminhos, ainda mais que a censura fechara todos os outros.
Não precisa citar muitos exemplos: a própria ABL elegeu um dos autores do AI-5, um general-de-exército, para figurar entre os ícones de nossas letras, ao tempo em que por baixo do pano celebrava as exclusões de Carlos Drummond de Andrade e Mário Quintana, por exemplo.
Há várias estratégias de processar exclusões. Observador atento da vida nacional, Drummond, poeta e cronista, que trabalhara no gabinete do ministro da Educação Gustavo Capanema e vira Getúlio Vargas ser eleito para a ABL, jamais se candidatou. E a ABL bateu a porta na cara de ninguém menos do que Mário Quintana. E na seqüência recebeu Ivo Pitanguy, José Sarney, Marco Maciel, Roberto Marinho e outros luminares de nossas letras.
Resenha bem-feita
A literatura do mundo inteiro deve muito a militares. No Brasil, por exemplo, alguns foram simplesmente indispensáveis: o Visconde Taunay cobrindo a Retirada da Laguna, na Guerra do Paraguai, na segunda metade do século 19, e Euclides da Cunha, a campanha de Canudos, na década final do mesmo século.
Mas Aurélio de Lyra Tavares, com o livro de poesia Adelita, entrar para a ABL, ‘cousa é que admira e consterna’, como diria o fundador da Casa, Machado de Assis. E Getúlio Vargas não foi eleito por seus escritos sobre a Revolução de 1930, de que foi o líder máximo. O Brasil, até em suas glórias literárias, mostra os dedos finos da corrupção que campeia em outros níveis.
O ‘claro raio ordenador’ de Antonio Olinto é a cada dia mais raro. E contra não apenas a pasmaceira, mas a mediocridade que campeia junto a um alheamento que já beira a suspeita (afinal, entre três mil editoras, apenas uma meia dúzia delas têm livros resenhados em todos os grandes jornais e revistas, com os autores dizendo as mesmas coisas – parece release), vozes, ainda isoladas, começam a ser ouvidas, desejados lampejos na escuridão.
O escritor Nelson Oliveira, autor de um de nossos textos mais bem cuidados (recebeu o Prêmio Casa de las Américas, em júri integrado por Rubem Fonseca), publicou no caderno Idéias (Jornal do Brasil, 23/7/05), um ‘Decálogo do Resenhista’. Vale a pena citar dois dos mandamentos de Nelson: ‘leia o livro todo‘ e ‘colete o maior número de informações sobre o livro‘.
Sobre o primeiro mandamento: ‘Não, esse imperativo não é piada’, diz ele, ‘a pressa e a baixa remuneração fazem com que muitos resenhistas somente cheirem os livros’. E o segundo: ‘Procure tudo o que de relevante já foi publicado sobre a obra e seu autor’.
Complexidades sutis
Agora vamos a um exemplo emblemático, que é o de Rubem Fonseca. A pressa de jornais e revistas para dar primeiro algum texto sobre Mandrake: a Bíblia e bengala (Companhia das Letras, 196 pp., impresso em julho de 2005 e lançado no fim do mês) fez com que o distinto público mais uma vez comprasse lebre por gato.
Sim, gatos em primeiro lugar, e não lebres, e esta pode ser uma boa metáfora para deixarmos de ler os resenhistas-lebres, apressadíssimos, que aliás adoram Paulo Coelho e similares, não para discernir o que neles há de literatura, como é o caso de Verônica decide morrer, um belo romance, mas para misturar alhos e bugalhos, fazendo-nos crer que é tudo a mesma coisa, ele e os outros, aquele romance e todos os outros etc.
Já os resenhistas-gatos estão lendo o novo livro de Rubem Fonseca com aquela calma que é indispensável à leitura, como ao amor, sem pressa de desempenho, de ‘gozar’ primeiro, de evitar a ‘brochada’ humilhante e infeliz, evitar principalmente que o outro goze antes de você; leia primeiro, comente primeiro, corra primeiro, apareça primeiro.
Ai, meu Deus, a literatura não pode ser enredada na velocidade que nos impuseram ex abrupto esses tempos globalizados online, 24h, 30h e quejandos, tudo delivery. Aliás, que critério a editora e as editorias utilizaram para entregar o livro a quem entregaram em avant première? Os de mercado, é claro, ao que tudo está submetido. Mas não se faz isso com boa literatura. E Rubem Fonseca todo mundo vai procurar nas livrarias.
Como ocorre com a obra de bons escritores, a editora deve providenciar é que esteja ao alcance dos leitores, entre os quais, como lembra Nelson de Oliveira, devem estar resenhistas e críticos. A maioria deles, seja relevada a sinceridade, quer enganar a quem? Muitos deles não cumpriram os dois mandamentos dos dez que Nelson de Oliveira oportunamente reuniu: não leram o livro, apenas passaram os olhos, o que podemos fazer para ler as resenhas deles, mas não para ler RF, cheio de sutis complexidades e finas alusões, algumas destinadas e leitores sofisticados, como faz desde os primeiros contos, de que são exemplos as duas homenagens num dos contos de Feliz Ano Novo, quando o narrador diz em Corações Solitários: ‘(Nathanael Lessa) é um nome como outro qualquer. E estou prestando duas homenagens’.
Em boa hora
Estava mesmo, mas era necessário conferir fora do texto: Ivan Lessa e Clarice Lispector. A escritora, aliás, andava preocupada com a avalanche de novos leitores à ficção de Rubem Fonseca e lhe perguntara diante do signatário destas linhas, algo como se ele não se preocupava com aquele sinal, ao que Rubem Fonseca respondera, humilde e gentil: ‘Estou, sim, penso muito nisso, Clarice!’.
Mas, vejam os leitores, e leiam o livro: Rubem Fonseca não merece certas opiniões. Simplesmente não merece. Principalmente a da Veja que está nas bancas.
Não merece também que seus Contos Reunidos, e reunidos por ninguém menos do que Boris Schnairderman, em 1994, não traga justamente um conto magistral, que explica um dado essencial de sua obra: a auto-entrevista que ele faz permanentemente na prosa de ficção, negando-a sistematicamente para a imprensa, há décadas.
Rubem Fonseca, que desde os anos 1970 não dá mais entrevistas, é o mais entrevistado de nossos autores. Entrevistado por si mesmo, dentro de contos e romances. A Revista Brasileira de Letras, do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Carlos, está com o dito conto no prelo, aliás. Vem em boa hora, pois o conto desapareceu das antologias de Rubem Fonseca.
Mais ética
Para concluir, citemos um trechinho do novo livro do autor que antecipou a violência urbana com Feliz Ano Novo (13 anos censurado, de 1976 a 1989). Neste Mandrake: a Bíblia e a bengala, há um trechinho que lembra os dias que correm, José Genoino, Delúbio, o advogado Malheiros, a turma toda que hoje está em rede nacional por força da CPI. Senão vejamos:
‘Gagliardi era mesmo um parvo. Vamos estabelecer uma estratégia e o senhor vai ter de seguir à risca o que dissermos, do contrário não assumiremos a sua defesa. Estamos combinados? Como assim?, ele perguntou. Para absolvê-lo teremos que usar todos os recursos possíveis, e o senhor já demonstrou de maneira lamentável sua incapacidade de se proteger. Mas vamos encontrar uma saída, desde que siga nossas instruções com exatidão’.
Para mostrar o pau com que se mata a cobra, diga-se que Veja denonima O Caso Morel uma ‘competente novelinha policial’; diz que ‘o novo livro parece exangue’, lançando por fim a pá de cal: ‘Ele não faz mais que repetir seus truques. Sua literatura está envelhecendo mal’.
Invertamos os mandamentos de Nelson Oliveira: depois de ler a obra do autor da resenha – é curta e grossa, pode-se ler várias vezes em poucos minutos – vejamos quem é seu autor: foi irresponsabilidade do editor pautar quem pautou para comentar o livro de um autor credenciado como Rubem Fonseca, não apenas por ter recebido recentemente o prêmio Camões e o Prêmio Juan Rulfo, mas porque o autor, ao contrário do resenhista, tem percurso e nome consolidados em vasta e complexa obra literária, impossível de ser reduzida, justamente quando ele está num dos melhores momentos, a poucas linhas insustentáveis sob qualquer critério de qualidade, publicados na maior revista do país.
Veja anda simplesmente irresponsável com a literatura brasileira, não por criticá-la, é seu dever, mas por desaboná-la da forma como vem fazendo, enquanto pauta quem elogia livro do próprio editor da página a livros dedicada.
Ética, meus senhores, ética! O lodaçal não é privativo das falcatruas denunciadas nas capas de Veja e objeto das atuais CPIs. Como a imprensa resistiria, aliás, a uma CPI?