Em Vicente Viciado (2012), o poeta Renato Negrão se destaca como crítico do mundo da propaganda embalada em promover somente a felicidade como acontecimento de suma importância vital: “ÁL/cool/&/Ai/ds/&/nem/h/uma/ass/oci&/ação/em/cam/panh/as/pub/licit/árias”. Entre a felicidade (solução) e a tristeza (problema), a publicidade se alinha ideologicamente à primeira, evitando a todo o custo à segunda. Por que ocorre esta opção? Um dos mitos em que se assenta o discurso da cultura de consumo é o mito da felicidade que, segundo Jean Baudrillard, em Sociedade de Consumo (1995), incorpora em seu sentido também o mito da igualdade e da democracia. Afinal, em tese, na sociedade da abundância todos têm o direito de consumir e alcançar a felicidade: “A felicidade constitui a referência absoluta da sociedade de consumo, revelando-se como equivalente autêntico da salvação”.
O consumo está profundamente ligado à emergência de um consumidor voltado para as satisfações pessoais, individuais, cujo discurso se apoia na busca pelo bem-estar e pelo conforto. A voz poética de Renato Negrão, em contrapartida, reivindica espaço publicitário para assuntos de interesse social no tocante aos cuidados com a saúde pública. Isto é, o autor chama a atenção para a cidadania enquanto valor publicitário, questionando, por consequência, a supremacia do consumo como alvo preferencial das ações propagandísticas.
Renato Negrão elege temáticas (álcool & Aids) estigmatizadas como experiências do desprazer, enquanto hegemonicamente a publicidade prefere virar as costas para esta realidade crítica no intuito de legitimar o hedonismo, sob o imprudente lema “viva intensamente”, sem maiores ponderações. A publicidade atua globalmente na cultura, ao colocar o consumo como sentido maior da existência. Enquanto isso, a voz poética de Negrão endereça outro sentido para a publicidade: contribuir para a qualidade de vida humana em sua dinâmica saudável, contemplando, com igual zelo, os caminhos e os descaminhos existenciais do sujeito.
O individualismo como apelo social
Culturalmente, convém salientar, diferentes ordens de valores competem pela primazia na atribuição de um sentido para a existência. Max Weber, em A ciência como vocação (1992), nomeou tal fenômeno como “politeísmo de valores”, responsável pela coexistência de diferentes orientadores de conduta no interior de uma mesma cultura. Todos esses vetores merecedores da mesma atenção e do mesmo respeito, considerando o princípio humanista da expressão da alteridade. Acontece que historicamente a publicidade ressaltou especificamente um vetor cultural, colocando-o como aspecto fundamental da cultura contemporânea: o seu hedonismo. Melhor explica Everardo Rocha, em A sociedade do sonho: comunicação, cultura e consumo (1995), como se dá a relação entre prazer e consumo: “O consumo possui uma óbvia presença – tanto ideológica quanto prática – no mundo em que vivemos, pois é um fato social que atravessa a cena contemporânea de forma inapelável. Ele é algo central na vida cotidiana, ocupando, constantemente (mais mesmo do que gostaríamos), nosso imaginário. O consumo assume lugar primordial como estruturador dos valores e práticas que regulam relações sociais, que constroem identidades e definem mapas culturais.”
Neste âmbito, deparamo-nos com a sociedade do sonho. Ainda segundo Everardo Rocha, os Meios de Comunicação penetram nosso cotidiano através do mundo mágico criado pela Indústria do Entretenimento, onde imagens, sons e cores são dispostos de tal modo que nos transportam para outra dimensão. Nesta dimensão, a razão prática não existe, fica do lado de fora, junto com a lógica produtiva. O reino mágico da indústria cultural, desdobrado e consumido nos finais habitualmente felizes das novelas e filmes, na vitória costumeira do bem contra o mal, na aura utópica da publicidade, onde tudo é passível de ser comprado e nada está fora do alcance do consumidor, não admite a frieza das relações de mercado. Como uma caixa de Pandora às avessas, na sociedade do sonho só é permitido sonhar – pesadelos, por mais reais e frutos da realidade concreta em que vivemos, são proibidos de entrar. Desse modo, é possível perceber com maior riqueza de detalhes a razão cínica que blinda a publicidade convencional acerca da exposição dos problemas sociais. Ciente de tal mazela, Renato Negrão desmistifica as pitadas de encanto do universo publicitário, expondo sua falta de prioridade em destacar as questões humanitárias de grande relevância.
Pelo poema de Renato Negrão, percebem-se dois tipos de felicidade: uma felicidade publicitária e uma felicidade filosófica. A felicidade filosófica é a felicidade da eudaimonia, que desde os gregos significa a ideia da vida justa em que a interioridade individual e as necessidades da vida exterior entrariam em harmonia. Felicidade era o nome dado ao sentido da pensante existência humana. Estado natural do pensamento reflexivo, ela seria o oposto da alienação em relação a si mesmo, ao outro, à história e à natureza. Na verdade, o que se promove na propaganda é uma nova sacralização da felicidade pela pronta imagem plastificada que, enchendo os olhos, invade o espírito ou o que sobrou dele. A felicidade capitalista é a morte da felicidade por plastificação. Sacralizar, sabemos, é o ato de tornar inacessível, de separar, de retirar do contato.
Marcada por um exímio valor de solidariedade social, a voz poética de Renato Negrão propõe desarticular o individualismo incrustado como apelo social e publicitário. Não interessa, nesse contexto, a promoção dos protegidos socialmente, mas a proteção dos desamparados historicamente. Em seu texto, o autor mineiro abre também caminho para pensar que existe um tipo de tristeza atuando nos subterrâneos publicitários: a “neurose feliz”.
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Marcos Fabrício Lopes da Silva é professor da Faculdade JK, jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários