O jornalista Matinas Suzuki Jr. tem sua carreira inevitavelmente associada ao projeto de modernização da Folha de S.Paulo. Até recentemente, dirigiu o grupo Bom Dia, rede de jornais criada pelo empresário J. Hawilla no interior paulista. Matinas é responsável pela série ‘Jornalismo Literário’, da Editora Companhia das Letras, que acaba de lançar Livro das Vidas – Obituários do New York Times, no qual analisa uma tradição da melhor imprensa mundial: os necrológios [ver ‘A arte dos obituários‘]. A entrevista a seguir foi transmitida de 11 a 14/2/2008 pelo programa radiofônico deste Observatório.
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De onde surgiu essa idéia de, digamos, desenterrar o jornalismo de necrologia?
Matinas Suzuki Jr. – A coleção Jornalismo Literário costuma lançar dois livros por ano. E nós ficamos procurando textos jornalísticos que sejam bem escritos. E como os obituários são, sem dúvida, na imprensa diária, os textos mais bem escritos, eles estão muito próximos do melhor texto do jornalismo literário, especialmente, por exemplo, os obituários de um grande obituarista do New York Times chamado Robert McG. Os McGs são uma espécie de clássico do obituário. Ele morreu muito cedo; na verdade, escreveu pouco mais que 400 obituários pra o New York Times. Mas os obituários, os McGs, estão muito próximos de uma crônica, eles chegam às vezes a lembrar Rubem Braga, chegam a lembrar as melhores crônicas que a gente tem no Brasil. Tem tudo a ver com a coleção Jornalismo Literário, então foi essa uma das idéias, foi fazer esse livro na coleção jornalismo literário.
Talvez seja um ponto em que a expressão jornalismo literário caiba bem, não é? Porque se trata de literatura pela qualidade do texto e é jornalismo também; porque, para fazer o texto do obituário perfeito é preciso que se faça uma reportagem muito boa sobre a vida do retratado, não?
M. S. Jr. – É, exatamente. Não se faz um bom obituário sem os fatos da vida da pessoa. E esse fato implica, vamos dizer assim, naquele ‘bater-pé’: tem que ir atrás, fazer entrevistas, ler as biografias – se tiver biografia –, entrevistar parentes, entrevistar amigos, essa coisa toda e, muitas vezes, no caso do New York Times, entrevistar o próprio obituariado, quando há tempo, quando se pega em vida. Esse é um caso clássico. A partir dos anos 1960, o New York Times começou a entrevistar os próprios candidatos a um obituário para checar fatos nebulosos sobre a vida dele. Isso é o exemplo máximo do jornalismo, de procurar precisão jornalística, a meu ver. Havia dúvidas sobre alguns fatos na vida de algumas pessoas, então eles foram a essas pessoas para checar os fatos, para que o obituário fosse o mais preciso possível.
Na sua opinião, por que é que a imprensa brasileira não lida bem com esse tema?
M. S. Jr. – A cultura brasileira não lida bem. Na nossa tradição católica e latina, a morte é viva como silêncio e como dor. Você pode ter a dor da perda, mas isso não impede que você possa também celebrar os fatos importantes relacionados à vida de uma pessoa.
Poderia dar um exemplo do chamado jornalismo literário nos obituários que você analisou?
M. S. Jr. – Posso citar vários, mas eu queria fazer uma observação. Nesse livro, nós procuramos vidas de pessoas que a gente chama de quase-desconhecidas. Porque o obituário de pessoas conhecidas é relativamente fácil de fazer: elas fizeram coisas que as pessoas já sabem mais ou menos sabem que elas fizeram – de uma celebridade, de um político, de um esportista. Porque os fatos falam por si. O obituário difícil de fazer são os de pessoas que fizeram coisas relevantes, mas que não são muito conhecidas do grande público.
Conte uma dessas histórias.
M. S. Jr. – Nesse livro, por exemplo, tem histórias fascinantes. Por exemplo. Um publicitário que todo ano, no Natal, distribuía, luvas para os homeless, para os mendigos, pessoas que viviam nas ruas de Nova York como aquele frio todo de Nova York. E que não tinham luvas, as mãos ficavam muito geladas. Mas ele tinha um aspecto muito interessante – por isso que o jornalismo, quando pega esses detalhes, ele vira uma grande coisa – porque ele não mandava essas luvas para as pessoas, ele ia pessoalmente, toda noite, entregar essas luvas, porque ele dizia que mais importante do que dar uma luva, era o aperto de mão que ele dava depois de dar uma luva. Era o calor humano que contava. Isso é um relato extraordinário. E uma pessoa dessa quando morre, merece que a vida dela seja contada para os leitores de um jornal.
Os grandes jornais brasileiros costumam fazer obituários disfarçados de perfis – mas não deixam de ser obituários.
M. S. Jr. – É. Na verdade, eles não têm uma página de obituários. Essas mortes são relatadas ou na seção de Esportes, ou na seção ou caderno de Cultura, ou na página de Política, dependendo de onde vem a origem da vida daquela pessoa, da seção onde ela se encaixa melhor. Nos jornais americanos e ingleses, não. Necessariamente, a vida dessa pessoa é narrada na página de obituários.
A Folha de S.Paulo também inaugurou recentemente um obituário no estilo literário. Eu gosto muito, sou um dos leitores assíduos. O que você acha desse trabalho?
M. S. Jr. – A Folha começou a fazer essa seção, é um pequeno texto, uma pequena história, muito bem escolhida e muito bem escrita por um jovem jornalista chamado Willian Vieira que vem na tradição do melhor obituário moderno da imprensa anglo-saxã, que é, eu acho, o grande obituário que a imprensa tem hoje.
Falamos da dificuldade que têm os jornais brasileiros para falar dos mortos. A criação de um obituário literário na Folha de S.Paulo é um sinal de mudança?
M. S. Jr. – É essa tradição que eu acho que está na hora de mudar e que eu vejo que está começando a mudar. A gente falou sobre o exemplo da Folha e eu sinto que o sucesso que o obituário da Folha vem fazendo é sinal de que se começa a mudar e eu acho que há um espaço para que se faça, para que se crie a memória de uma pessoa.
Por que você faz a diferença entre os obituários do New York Times e os perfis de celebridades que se fazem na imprensa brasileira?
M. S. Jr. – Porque no livro nós temos o obituário, por exemplo, de professores universitários, temos alguns obituários de pessoas que foram conhecidas pelo menos no meio delas. Então, algumas são bem desconhecidas e algumas são aquilo que a gente diz: são quase desconhecidas. Mas, para ir para as páginas de um jornal no Brasil, até a começar a fazer obituário, a pessoa precisava ser conhecida, muito conhecida. Essa é a grande diferença. E os jornais americanos, a partir dos anos 1980, aprenderam que uma pessoa que teve uma vida extraordinária tem interesse, independentemente de ela ser conhecida ou pouco conhecida. O leitor tem prazer em ler aquela história, independentemente de quão conhecido é o personagem.
Você tem notícia de como está o índice de leitura do obituário da Folha?
M. S. Jr. – Pelos relatos que eu tenho, vai muito bem. É um das seções hoje já mais lidas no jornal.
Esse menino foi um achado entre os estagiários da Folha.
M. S. Jr. – Foi um achado. Pelo que eu sei, o Willian Vieira está há cinco ou seis meses na redação da Folha, e ele acabou de sair do último curso de trainees da Folha.
Você chegou a criar na rede de jornais Bom Dia, do interior de São Paulo, o obituário literário. Isso é uma forma de estreitar o relacionamento com a comunidade e melhorar o desempenho dos jornais?
M. S. Jr. – Exatamente. A nossa experiência na rede Bom Dia foi baseada nos jornalismo regional americano, que usa muito o obituário como uma maneira de se relacionar com a comunidade e é, também no jornalismo regional americano, uma das seções mais lidas dos jornais.
Você entende que é preciso ter um perfil profissional específico para ser um bom obituarista?
M. S. Jr. – Eu acho que sim. Primeiro, precisa gostar de histórias humanas, precisa gostar de detalhes, de saber escolher detalhes (porque não é todo detalhe que interessa), mas precisa pesquisar bastantes detalhes sobre a vida dos obituariados, porque os detalhes fazem a grande diferença. Precisa, evidentemente, ter um bom texto – ter um bom texto é tudo em um obituário. Então, a combinação desses fatores não é muito fácil de achar. Por isso que, hoje em dia, precisa-se garimpar muito para ter um bom profissional na área dos obituários.
Se alguém como você se dá ao trabalho de ler obituários ao longo de décadas, amostras do jornal New York Times, poderia dizer que isso dá ao leitor uma história do comportamento, uma história de personagens que marcaram essa sociedade?
M. S. Jr. – Sem dúvida nenhuma. É uma antropologia. Nos Estados Unidos há muitas teses sobre os obituários do New York Times comprovando. Desde as teses sociológicas mais tradicionais, que eles pegam mais brancos, mais gente rica, mais etc., até perfis mais interessantes, que é, por exemplo: qual a faixa de idade que mais pegam?; qual o tipo de doença de que mais se morre nos Estados Unidos? – essa coisa toda, até dos jornais mais regionais. Você estabelece um comportamento e, ao longo dos anos, como isso vem mudando: como aparecem mais mulheres, como aparecem mais negros, como vão mudando a profissão. Dá para fazer uma antropologia da sociedade através dos obituários muito interessante, com recuo histórico; porque, como as pessoas que morrem são mais velhas, há um vácuo entre o que eles fizeram, o momento mais importante da vida deles, e o momento da morte. Mas, sem dúvida, você consegue estabelecer isso.
E as histórias do obituarista que não sobrevive ao personagem?
M. S. Jr. – Esse é, vamos dizer assim, o momento mais irônico da atividade do obituarista. É quando ele morre e ele deixa na gaveta alguns obituários prontos e o personagem dele não morreu. Eu brinco no posfácio que faço que esse é o momento apropriado para o obituarista se revirar na cova, porque o texto dele vai ser atualizado por uma outra pessoa, porque ele não vai estar aqui – e deu o melhor de si, escreveu, pesquisou, trabalhou, ralou, fez a reportagem, mas o texto final não vai ser dele.
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Jornalista