Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Repórter escancara trapalhadas trágicas dos EUA no Afeganistão

“Somos amigos!!”, gritava o afegão desarmado, braços erguidos em desespero diante da invasão noturna da delegacia de polícia de Khas Uruzgan, sul do Afeganistão.

Seus gritos de nada adiantaram. Foi derrubado, chutado pelos soldados norte-americanos e manietado com tiras de plástico. Outros não tiveram essa sorte: foram mortos sem chance de defesa.

A poucos metros do conjunto de prédios do governo do vilarejo, uma escola era o alvo de um grupo de elite dos soldados norte-americanos. Os invasores eram comandados pelo sargento Anthony Prior, ex-boina verde famoso entre os pares pela habilidade para invasões-relâmpago.

Tampouco deixou testemunhas. Disse que houve resistência e que os soldados tiveram de matar em defesa própria. Mas os cadáveres achados estavam algemados.

Em menos de 30 minutos, as duas operações provocaram 21 mortes. Os norte-americanos fizeram 28 prisioneiros, e alguns dos homens que estavam na escola e nos prédios da administração pública local desapareceram.

Todos os mortos, feridos e presos faziam parte de grupos pró-EUA, que tratavam de reorganizar as estruturas de governo do Afeganistão naquele janeiro de 2002.

A operação é uma das tantas trapalhadas dos EUA expostas em “No Good Men Among The Living” (Não há homens bons entre os vivos), livro do jornalista Anand Gopal, que por anos foi correspondente do “The Wall Street Journal” no Afeganistão.

Editado nos EUA em 2014, “No Good Men…” volta aos holofotes por ter sido um dos três finalistas do prêmio Pulitzer de não ficção.

O destaque é merecido. O trabalho jornalístico resulta de mais de três anos de imersão de Gopal no país.

Para melhor realizar seu mister, ele aprendeu o idioma, deixou crescer a barba e cultivou fontes nos diversos grupos e facções que se enfrentam e se associam na intrincada teia do mundo político afegão.

Mundo que o livro tenta tornar mais compreensível a olhos ocidentais.

Para isso, o autor acompanha três personagens: um combatente afegão, líder guerreiro do Taleban; um chefe político e militar pró-EUA; e uma viúva, mãe de quatro filhos, que se tornou uma das primeiras senadoras do país.

Traz ainda registros históricos, dados da economia e números sobre os gastos dos EUA e da ex-URSS no país.

O texto se desenrola em ritmo de aventura, mostrando tramoias, ações violentas, torturas e traições, machismo e intolerância religiosa.

Tudo na voz, nas ações e nas armas dos personagens, que são os “donos” da história –ainda que Gopal por diversas vezes se inclua no cenário, descrevendo ambientes de encontros com entrevistados e visitas que fez a regiões conturbadas do país.

Da trajetória de cada um, emerge a história do Afeganistão pós-11 de Setembro. Uma história marcada pela ocupação dos EUA e das forças aliadas, cujo poderio supostamente inquestionável é minado por falhas internas, erros brutais de informação e por idas e vindas políticas.

Semanas depois da mortal trapalhada descrita no início deste texto, por exemplo, os EUA timidamente reconheceram o erro. Os afegão mortos, eram, de fato, amigos.

No ano seguinte, porém, sete soldados envolvidos no ataque receberam a Estrela de Bronze por valor em combate; o sargento Pryor ganhou uma Estrela de Prata.

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Rodolfo Lucena, da Folha de S.Paulo