Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Retratos finos de perfis e entrevistas

O começo do século 21 deve ser lembrado de várias maneiras. Uma delas, no limiar da ficção e realidade, ressalta a importância de toda uma gama textual, andarilha, contaminada pela criatividade e o frescor convincente advindos de uma boa matéria jornalística. Se algo parece estar escondido – no fundo de nossas memórias desmemoriadas – e imerso na trama diária de uma redação, a relevância do detalhe equivale ao olhar atento e investigativo sobre algumas personalidades que fizeram e fazem a história na literatura, música, artes plásticas e outras variantes das contemporaneidades.

Uma preciosidade de relações pertinentes, diálogos, averiguações, reflexões e arquivos refinados, aliados à consistência da publicação, fazem de Retratos Erráticos: imagem, perfil e personagem na imprensa (Oiti Editora e Comunicação, Belo Horizonte, 2010, 311 páginas, R$ 40,00), autoria de Regis Gonçalves, um dos melhores lançamentos de 2010. O autor é jornalista, escritor e graduado em ciências sociais pela UFMG. O escritor mineiro, sempre antenado, conserva-se pleno, ousado e mais lúcido que muitos numa coletânea de jornalismo cultural – textos de mais de 10 anos para cá – publicados no jornal O Tempo, de Belo Horizonte. Intercala 39 perfis biográficos e entrevistas de maneira sofisticada.

Eis o requinte do testamento: começa com Adélia Prado, o segundo é Affonso Ávila, o terceiro Amílcar de Castro, e na leitura prazerosa já estamos em Armando Freitas Filho, na argentina Beatriz Sarlo, Décio Pignatari, Ferreira Gullar e, quem mais?, Francisco Alvim, outro Francisco, o Iglésias, Guimarães Rosa, Henriqueta Lisboa, José Murilo de Carvalho, outro José, o Saramago, Lótus Lobo, Manoel de Barros, Oswaldo França Júnior, Sérgio Sant´Anna, Silviano Santiago, Tavinho Moura, Toninho Horta, dentre outros, e o falecido recentemente, um dos maiores contistas/cronistas brasileiro dos últimos tempos, Wander Piroli.

Achados inimagináveis

Vale destacar as palavras de Humberto Werneck no penúltimo parágrafo da apresentação do exemplar:

‘Atento também ao que está menos visível, o repórter nos trouxe o João Guimarães Rosa nada ficcionista que transparece nas páginas de um inédito Diário de guerra, no qual, anos antes de estrear em livro, o jovem diplomata documentou a experiência de servir na Alemanha nazista nos começos da Segunda Guerra Mundial. Trouxe igualmente, aliás, uma parenta do escritor, Calina Guimarães, personagem tão cativante quanto até então obscura, e que nos anos 1990 se pôs a serviço da memória de Rosa. `Foi ela a responsável pela revitalização do museu Casa de Guimarães Rosa e criadora do grupo Miguilim, de meninos contadores de estórias, hoje conhecido em todo o país´, apresentou-a o repórter num perfil de 2003.’

Repleto de episódios curiosos, confissões que poucos sabem (pensavam que sabiam ou tinham dúvidas!) e achados inimagináveis, cada parte do todo, num excelente conjunto e projeto gráfico-editorial, inicia-se sempre com uma citação do contemplado numa página destacada em tom mostarda. O poeta carioca Armando Freitas Filho deixa a sua marca: ‘Quando a coisa fica boa, quando a gente acerta a mão é quando assaltou a fronteira. Ela é movediça, como a linha do horizonte, está sempre fugindo.’ Beatriz Sarlo também não deixa por menos:

‘Quando falo de literatura, falo disso: da radicalidade de uma experiência, da radicalidade de um trabalho sobre a linguagem.’ Décio Pignatari indaga, de modo cortante: ‘Quero que me digam por que, entre dez escritores escrevendo sobre o mesmo tema, um deles é melhor que os outros.’

E vamos adiante, numa afirmação de Frederico Morais que dá pano pra manga sobre a estética e artes plásticas: ‘A vanguarda não é só um movimento para frente, pode ser também para trás, porque o que foi feito está aberto.’ Também a presença luminosa de Silviano Santiago: ‘As melhores respostas dos países periféricos ou colonizados, do ponto de vista artístico, não são cópias das metrópoles, mas transgressões ao modelo metropolitano.’ Poderíamos ficar aqui citando as outras falas, porém vamos terminar este parágrafo com José Saramago (também falecido recentemente), de maneira (e)terna: ‘O único lugar onde efetivamente se passam coisas importantes é dentro de cada um de nós.’

Prato principal e sobremesa

Como observou Sebastião Nunes em sua coluna dominical no jornal O Tempo em 4 de julho de 2010, ‘o livro de Regis está na cabeceira. Pelo passado, e também pelo futuro’. Indo além, muito além de reencontrar com o passado e acabar deparando com a devastação e a ruína de um futuro incerto não muito distante, o melhor – estar vivo – é ter a calma oportunidade e alcançar o estado de satisfação do presente para o jornalismo e a literatura, e dar a eles a fecundação errante da leitura deste exemplar memorável. Sobre o livro de Regis, memorável é apenas uma simples formalidade.

Um detalhe importante: não são escritos requentados, muito menos mornos. A temperatura do volume vai ao ponto: a qualidade da linguagem que rege o todo das composições deve ser consumida calmamente, pela preservação de sua existência, tempero em primeiro plano, sequioso e capaz de dar vida aos olhos e causar no estômago (com direito a ruminações) a sensação agradável de saciar aquilo que vem do bom jornalismo. Como agora, em novembro de 2010, entre as nuvens, mesmo na poltrona de um avião, a caminho de Recife. Retratos erráticos são retratos finos de perfis e entrevista. Prato principal e sobremesa. Não esquecendo das orelhas, uma orquestra afinada, cujo tom mavioso é o ser humano.

Trechos de uma entrevista

Abaixo, trechos do livro. De modo específico, trechos da entrevista com José Saramago, também publicada no jornal O Tempo, de Belo Horizonte, MG, no dia 5 de dezembro de 2000:

A caverna encerra, segundo suas próprias palavras, uma ‘trilogia involuntária’, escrita em forma de parábola. Gostaria que explicasse a escolha desse tipo de narrativa.

José Saramago – Essa designação de trilogia involuntária, que depois ganhou foros de caso público, aparece só quando eu tive a ideia que me levou a esse último romance, e que começou com o Ensaio sobre a cegueira. Mas quando escrevi não estava pensando em trilogia, assim também quando escrevi Todos os nomes; são dois livros de temas completamente diferentes. Mas, como disse, é somente quando me aparece a ideia que depois se converteu nesse último romance, que se chama A caverna, que eu percebi que os três livros, os que já estavam publicados e esse que eu me propunha a escrever, não sendo exatamente trilogia com uma unidade temática – cada um trata de assunto que não tem nada a ver com os outros livros – pelo menos assim entendi eu, havia uma unidade de intenção. Esses três livros – Ensaio sobre a cegueira, Todos os nomes e A caverna – mostram de alguma maneira a visão que o autor tem do mundo atual.

É curioso que o senhor tenha escolhido esse gênero de narrativa, a parábola.

J.S. – Mais a alegoria do que a parábola, embora, como nós sabemos, são conceitos muito próximos. Efetivamente, a alegoria, sendo uma expressão literária, e não só literária, mas artística – no campo das artes plásticas, por exemplo, foi utilizadíssima –, estava associada a uma ideia de um mundo clássico, com figuras que são representativas. Pode-se pensar, então, que a alegoria é um modo de narrar que já teve a sua época e que hoje não teria sentido. Eu acho que não, porque efetivamente esses três livros, sobretudo o Ensaio sobre a cegueira e este último, são obras que se expressam diretamente como alegorias. Ora, eu creio que se tivesse escrito, por exemplo, o Ensaio sobre a cegueira de uma maneira mais realista, no sentido mais comum do conceito, creio que a impressão que teria produzido no espírito do leitor não seria tão forte. É exatamente pelo fato de eu estar a dizer uma coisa para dizer outra que inquieta o espírito do leitor, essa ideia de estar a contar uma história que, além de significar o que significa – e isso que é o mais importante –, tem por detrás um significado segundo. Do mesmo modo, com A caverna, ao imaginar uma situação que uma referência histórica e filosófica, precisamente no mito platônico da caverna, eu creio que com essa relação direta o livro ganha uma dimensão diferente do que seria a mera descrição da vida atual. Dessa espécie de fuga à realidade em que todos mais ou menos nos encontramos. Isso não quer dizer que um livro assim não pudesse ser escrito, ou não pudesse ser um bom livro, mas creio que essa referência explícita à caverna de Platão confere-lhe uma outra dimensão e possivelmente atinge o espírito do leitor com mais força. Isso significa que provavelmente os processos narrativos que nós julgávamos ultrapassados podem ser retomados, e com vantagem.

Em A caverna o senhor dedica uma atenção afetuosa ao oleiro Cipriano Algor, um homem entrado em anos. Quanto de si mesmo o senhor colocou nesse personagem?

J.S. – Não creio ter colocado muito de mim mesmo no Cipriano Algor, mas alguma coisa esse Algor evidentemente tem de mim, como também todas as outras personagens, não só desse romance como dos demais. De qualquer forma, nenhum deles é meu alter ego, mas claro que nós construímos personagens com aquilo que sabemos de nós próprios. Quando a personagem é construída a partir da observação exterior, eu tenho muitas dúvidas sobre isso, por que quando observamos o exterior estamos a observar o exterior do exterior. Então, o único lugar onde efetivamente se passam coisas importantes é dentro de cada um de nós. Eu creio que o que há dentro de cada um de nós é suficiente para alimentar e para criar não quatro ou cinco figuras de romance, mas dez mil.

O que mudou em sua rotina com o Prêmio Nobel? O senhor vai se dedicar agora ao projeto de um romance autobiográfico, como se anuncia?

J.S. – Meus hábitos pessoais não mudaram muito, mudou muito foi o emprego de meu tempo, mas, mais importante do que isso – e creio que nesse ponto os amigos estão todos de acordo, e quando os amigos estão de acordo é porque se pode acreditar –, o José Saramago que era antes do prêmio continua a ser exatamente o que é depois, nesse aspecto não mudei nada. Quanto ao novo livro, é um projeto que tenho já há alguns anos e de que tenho muita coisa já escrita, mas que ainda não pude levar ao fim, que é uma autobiografia, mas que é uma autobiografia estranha porque chega até os 14 anos. Não estou nada interessado em escrever uma autobiografia geral de minha vida até agora, o que eu quero saber é que criança eu fui.

Observação: nesta pergunta/resposta acima, o livro que José Saramago faz menção é o notável As pequenas memórias (Cia. das Letras: São Paulo, 2006).

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Jornalista, escritor, pesquisador, ensaísta, crítico de artes plásticas e literatura, Belo Horizonte, MG