Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Revoluções em fotografia

Você já imaginou como eram, fisicamente, os participantes da Comuna de Paris (1871)? Ou como era a capital francesa naquela época, como as pessoas se vestiam, qual a aparência dos prédios, monumentos e vias públicas que serviram de cenário aos grandes momentos do ‘assalto aos céus’? Tudo isso ficou registrado como fotografia, e agora está à disposição dos leitores brasileiros no livro Revoluções, organizado por Michael Löwy e editado pela Boitempo (São Paulo). Lançada em Paris, no ano 2000, a primeira edição foi rapidamente esgotada, relata Luiz Bernardo Pericás, e não sem motivo: trata-se de uma fantástica pesquisa histórica e iconográfica, que abarca até a revolução cubana (1953-1967). Felizmente para o leitor brasileiro, o tratamento editorial dado pela Boitempo é primoroso.

Basta percorrer o índice da obra para ter uma ideia de sua importância e extensão: além da Comuna de Paris, somos brindados com fotos de cenas e pessoas que participaram das seguintes revoluções: Russa (1905), Russa (1917), Húngara (1919), Alemã (1918-19), Mexicana (1910-20), Chinesa (1911-49), Espanhola (1936) e a já mencionada cubana. O leitor mais atento notará que não estão na relação alguns movimentos extremamente importantes, como a revolução húngara (1956) e as lutas de libertação nacional (por exemplo, na Indochina e na Argélia).

Leitura crítica das fotos

O critério para a seleção é explicado numa página de ‘advertência’, logo no início do livro:

‘Por uma questão de coerência, escolhemos as revoluções `clássicas´, revoluções sociais de inspiração igualitária que visavam a distribuir as terras e riquezas, abolir as classes e entregar o poder aos trabalhadores. […] Portanto, fomos obrigados a deixar de lado outros movimentos revolucionários não menos importantes: as revoluções democráticas, antiburocráticas e antitotalitárias. […] O último capítulo passa em revista uma série de eventos revolucionários – distintos, em certa medida, das revoluções no sentido pleno do termo – dos últimos trinta anos: Maio de 1968, a Revolução dos Cravos em Portugal (1974-1975), a Revolução Nicaraguense (1978-1979), a queda do Muro de Berlim (1989) e a sublevação zapatista de Chiapas (1994-1995).’

Cada revolução coberta pelo livro é comentada por um especialista, que trata de contextualizar os acontecimentos e permitir uma leitura crítica das fotos. Temos, então, a sensação de que a própria história se desenvolve diante de nossos olhos.

Cenas do universo imaginário

Mas o valor documental da fotografia é discutido por Löwy, no capítulo introdutório, fazendo eco a um complicado debate entre historiadores. Até que ponto a fotografia pode e deve ser aceita como um ‘registro da história’?

‘É claro que as fotografias não podem substituir a historiografia, mas elas captam o que nenhum texto escrito pode transmitir: certos rostos, certos gestos, certas situações, certos movimentos. A fotografia possibilita que se veja, de modo concreto, o que constitui o espírito único e singular de cada revolução. Alguns críticos negam o valor cognitivo das fotografias de acontecimentos. Por exemplo, o grande teórico do cinema Siegfried Kracauer tinha convicção de que a foto não permite conhecer o passado, mas somente a `configuração espacial de um instante´. (…) Esse ponto de vista me parece discutível. É verdade que a fotografia não pode substituir a narrativa histórica, mas isso não a impede de ser um instrumento insubstituível de conhecimento histórico, que torna visíveis aspectos da realidade que frequentemente escapam aos historiadores.’

Para além do debate teórico sobre o valor documental da fotografia, o livro oferece, no mínimo, o prazer proporcionado pelo acesso a cenas que, até então, faziam parte unicamente do universo imaginário e algo mitológico das revoluções. Se fosse apenas por isso, sua leitura já valeria muito a pena.

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Jornalista, professor da PUC-SP, doutor em História pela USP