A auspiciosa novidade no mundo das letras é que depois de mais de meio século da estréia em livro com Velhice e outros contos (Edições Sul, Florianópolis, 1951), o catarinense Salim Miguel teve seu primeiro romance de impacto – Vida breve de Sezefredo das Neves, poeta – lançado por editora do porte da Record, num prenúncio do que poderia ser a reedição de sua obra mais importante. A Record havia publicado, em 2004, Mare nostrum, romance desmontável, e agora entrega ao leitor brasileiro, em especial à pletora de admiradores de Salim Miguel, essa genuína autobiografia precoce, que apareceu em 1987 com o selo da porto-alegrense Tchê!
O lançamento deve ser comemorado pelos amantes da literatura, em particular da brasileira, porquanto o leitor que não se contenta com platitudes e repetições terá diante dos olhos palavras de um escritor que passou a vida a construir, com base em dados reais ou da ficção, tratados com a competência de paciente escultor, seu próprio ‘condado faulkneriano’, localizado por feliz acaso na bucólica Biguaçu, na Grande Florianópolis.
A acurada alusão foi feita por Fausto Cunha, no prefácio do volume A morte do tenente e outras mortes (Antares/MEC, RJ, 1979), fruto de clarividente percepção das intenções de Salim Miguel ao imortalizar em escritura marcadamente pessoal o pequeno burgo que abriu as portas para a família de imigrantes no distante ano de 1931. Na verdade, a família havia desembarcado no porto do Rio em 1927, quando Salim contava três anos de idade, nascido em Kfarsouroun, Líbano, indo residir primeiro na colônia alemã de São Pedro de Alcântara, também próxima à capital de Santa Catarina.
O verídico e o sonho
Sabe-se que a entrega de Salim Miguel à literatura deu-se muito cedo, aos dez anos se tanto, quando passou a ler com sofreguidão qualquer impresso que lhe chegasse às mãos. Em Biguaçu havia pequena livraria de propriedade de um certo João Mendes, poeta apaixonado por livros, posto que impedido de lê-los por si mesmo porque era cego. Alguém semelhante a Jorge Luis Borges, a quem Deus concedera os livros e a noite eterna. Um dos seus potenciais clientes é o menino Salim, filho de Yussef Miguel, o Zé-Gringo, dono de pequena venda de secos e molhados, mascate de sal, fumo e tecidos nos tantos lugarejos perdidos nos socavões da serra do Mar.
Como nunca tivesse dinheiro, Salim aceitou a oferta de João Mendes e tornou-se leitor em voz alta do estoque aninhado nas escassas prateleiras do estabelecimento. Foi quando descobriu Eça de Queirós, Machado de Assis, Cruz e Sousa, entre tantos outros, como os vibrantes folhetins de Michael Zevaco. Pasmem os leitores de hoje, mas naqueles idos, mal-saído da infância, o futuro homem de letras mergulhava sob profunda concentração de João Mendes no intrincado labirinto de As dores do mundo, de Schopenhauer.
Já se pode antever a espinha dorsal, creio que a expressão cai bem no contexto, do romance lançado agora pela Record. Por suas páginas desfilam os moradores do condado do Faulkner/Salim, na moldura dos ditos e feitos irradiados do pequeno mundo da farmácia e dos raros botequins, da pompa cívica da Câmara Municipal, das aulas no Grupo Escolar Professor José Brasilício, do movimento na vendola do pai, das enchentes e banhos no rio, das pescarias de espinhel na praia de Cachoeira do Bom Jesus. Ante esse pano de fundo evoluem personagens como Ti Adão, preto velho benzedor, e o prefeito Fedoca, o delegado João-Dedinho, Jesualdo Martins, colecionador de gravatas borboletas, Muniz de Souza Melo, professor, Lauro-barbeiro e outros, não se sabe se reais ou inventados, tal é a cumplicidade entre o verídico e o sonho.
Sombra fatal
‘Desde pequeno esses causos me impressionam. Fixo-os, gravo-os. Com que finalidade? Eles me perseguem, se alojam no subconsciente. Utilizá-los mais tarde talvez. Em quê? Na minha literatura’, monologa Sezefredo sem assimilar a inteireza da vocação que se lhe despertou desde a escola primária: ‘Desde pequeno articulo versos, parentes me rodeiam, gosto de inventar historietas’.
Sezefredo das Neves, poeta, é propriamente dito o heterônimo de Salim Miguel, também ele morador de Biguaçu e sombra fatal do filho do Zé-Gringo, de quem não disfarça incontida inveja.
Esgotadas as possibilidades oferecidas pela cidadezinha a um jovem cheio de idéias, Salim tomou a decisão de mudar-se para Florianópolis (a sombra foi atrás), com o intuito de completar os estudos, arranjar emprego, casar, fazer a vida.
Gênese do Sul
Destarte, franqueia a função de narrador dos fatos do período ao poetastro Sezefredo das Neves, que não estuda e tampouco tem emprego, quase sempre se esquivando da italiana dona da pensão onde mora, pois jamais tem dinheiro suficiente para pagar o aluguel. E pior, deu para desfrutar um bando de literatos de fancaria, esboços de romancistas, poetas, pintores, teatrólogos e cineastas que gastam as madrugadas a se embebedar nas mesas do Miramar, ou a esgrimir sobre o modernismo dos Andrade, Tarsila ou Pagu, ao abrigo da centenária figueira plantada no centro da praça 15 de Novembro.
A ambrosia da malta era malhar os arautos do beletrismo no final da primeira metade do século 20, que sequer tinham ouvido falar da Semana de Arte Moderna de 1922, que caíra de pau no ambiente artístico do eixo Rio-São Paulo e, pouco depois de Belo Horizonte, onde despontavam talentos como Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava.
Voltando à realidade, isso aconteceu na Florianópolis dos anos 40, quando um grupo de jovens intelectuais, um deles o próprio Salim, começou a pensar com seriedade na aeração do panorama literário da Ilha de Santa Catarina. Foi a gênese do Grupo Sul, da revista do mesmo nome e do lançamento dos primeiros livros que escreveram, sem medo de encarar o novo. Desse movimento brotaram autores importantes da literatura catarinense como Salim Miguel, Guido Wilmar Sassi, Silveira de Souza, Aníbal Nunes Pires, Antonio Paladino, Adolfo Boos Júnior, Hugo Mund Júnior, Alcides Buss, Almiro Caldeira e Eglê Malheiros, com quem Salim viria a se casar mais tarde.
Velharia em polvorosa
Essa turma lia demais e bem: Machado e Eça, Simões Lopes Neto, Graciliano Ramos e Marques Rebelo, os Andrade e Dyonélio Machado. A descoberta de Murilo Rubião, Clarice Lispector, João Guimarães Rosa e Dalton Trevisan foi um deslumbramento. Dentre os estrangeiros passavam de mão em mão, na biblioteca pública, Dostoievski, Tolstoi, Tchecov, Conrad, Shaw, Pirandelo, Svevo e Joyce, com o seminal e devastador fluxo da consciência do Ulisses na versão espanhola de J. Sallas Subirat, publicada em Buenos Aires.
É nesse redemoinho que vai topando com a vida o personagem Salim/Sezefredo, agregado ao grupo que deblatera a ranhetice que assombra a Ilha, como nos versos do biguaçuense: ‘Tédio/rostos tristonhos/rostos cansados/o desespero/corroendo a alma/minando o corpo’. Decerto, um tédio que estava mais para o intelectualismo duma vanguarda que procurava distinguir-se pelo que havia de mais avançado. Tanto é que o grupo logo passa a discutir – levando a efeito – a montagem de uma peça de ninguém menos que Jean-Paul Sartre, autor literalmente deglutido mediante a leitura dos contos de O muro, que alguém conseguira adquirir.
Sezefredo lembra com certa empolgação ressabiada o aparecimento do primeiro número da revista Sul, que não saiu grande coisa, mas levou à ebulição a igrejinha dos literatos ilhéus. A velharia, não apenas em termos de idade, entrou em polvorosa e a confusão foi tamanha que descambou na troca de insultos e sopapos entre os mais exaltados de ambos os lados. Entre uma refrega e outra, que ninguém é de ferro, os doidivanas faziam a ronda noturna dos bares da moda: Filinto, Gato Preto, Poema, Miramar, o sem nome perto da cabeceira da ponte Hercílio Luz, quando o dinheiro era escasso, e o do restaurante Pérola, ‘onde numa noite Pascoal Carlos Magno causou furor abraçado a um recém-descoberto amiguinho’.
Um mistério
O livro de Salim Miguel transformou-se num privilegiado ponto de observação do mundo a partir de Biguaçu e Florianópolis, estratificando a descoberta da magia da leitura e da escrita do conto e do romance, o trabalho compartilhado na edição da Sul, a co-propriedade da livraria Anita Garibaldi e o ingresso no jornalismo profissional, enfim os ciclos mais destacados da vida do intelectual em sua fase de formação até meados dos anos 60, quando ocorre uma brusca interrupção. Salim foi preso na manhã de 2 de abril de 1964, acusado como subversivo, no ponto mais freqüentado de Florianópolis, o lendário Ponto Chic, café onde se encontravam a nata da sociedade e da política, jornalistas, funcionários públicos, empregados do comércio e desocupados.
O tempo descrito no romance vai dos anos 30 ao final dos anos 60, época marcada por vários acontecimentos de impacto, dentre eles a Revolução de 30, que mereceu um conto genial, o Estado Novo, a Guerra Civil Espanhola, à qual Sezefredo dedicaria o poema Espanha, a Segunda Guerra Mundial e o suicídio de Vargas, além do golpe de 1964. Sobre esse período específico Salim escreveria o livro Primeiro de Abril, narrativas da cadeia (José Olympio, RJ, 1994), exatos trinta anos depois.
O romance narrado por Sezefredo carrega um mistério que ninguém foi capaz de resolver até hoje, e nem o próprio Salim mostrou disposição de ajudar a desfazer a maçaroca: quem era ele? Aliás o termo maçaroca passou a designar a pilha de cadernos e papéis avulsos cobertos de garatujas, muitos dos quais borrados a tal ponto de não se conseguir ler o que fora escrito. Na leitura do material encontrado numa mala abandonada por Sezefredo no quarto da pensão, ao que parece entregue aos cuidados de Salim Miguel, foram encontradas duas notas de falecimento em amarelados recortes de jornal. Uma do indigitado poeta Sezefredo das Neves, cujo passamento deu-se no dia 24 de agosto de 1954 – mesmo dia da morte de Vargas – e a outra de igual teor dando conta da morte do poderoso empresário Antero das Neves, capitão de indústrias e latifundiário no longínquo oeste de Santa Catarina. Coincidência ou não, Antero morreu no dia 24 de agosto de 1984. Muitos passaram a supor que Sezefredo e Antero fossem a mesma pessoa e que as notas de falecimento, embora com trinta anos de intervalo, eram meros despistes utilizados pelo poeta frustrado que abortou a carreira sequer iniciada.
Ressuscitando o poeta
Nos depoimentos que Salim pediu aos demais companheiros do grupo Sul, alguns dos quais lembravam vagamente do esquisito rapaz de Biguaçu, arredio e de poucas palavras, mas com os bolsos sempre atulhados de papéis, quem fez a síntese mais perfeita do mistério foi Eglê Malheiros. Não por casualidade esse foi o fecho do depoimento e do próprio romance:
‘Pobre Sezefredo, rico coronel Antero, tão longe da gente e ao mesmo tempo tão perto, de nós e de qualquer intelectual desse gigante subdesenvolvido. Por quanto tempo, viver a vida adulta representará o enterro dos sonhos juvenis e a negação dos sentimentos generosos’?
Salim, no entanto, confessou não ter tido como fugir da tarefa imposta não por amizade ou simples ligação protocolar com quem freqüentara tantas tertúlias do grupo Sul e era seu conhecido de vista dos tempos de Biguaçu, onde o vira muitas vezes na livraria de João Mendes. ‘Acabei largando tudo e me debrucei sobre a informe papelada que me desafiava. Reconstruir aquele mundo perdido e dele deixar uma imagem’. Um trabalho fatigante e não poucas vezes desanimador: ‘Terei dado um retrato ao menos plausível do Sezefredo das Neves, poeta – e através dele da época e do meio em que (con)vivíamos’? E a conclusão: ‘Espero , depois da morte-morte do empresário, ter ajudado a ressuscitar o poeta’.
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Jornalista, autor de Edgar Allan Poe, Nunca estive realmente louco