Roberto Pompeu de Toledo, com seu A Capital da Solidão (Editora Objetiva, 558 páginas), fez bem mais que homenagear os 450 anos de São Paulo, afinal uma encomenda do seu editor – soberbamente atendida, diga-se – que lhe valeu quatro anos de pesquisa. O autor logrou a proeza de fazer algo como uma reportagem retroativa. Visto assim, na conta de uma obra jornalística, se isto não afronta os mais ortodoxos do ramo de dar e comentar notícias (coisa medularmente ligada à contemporaneidade), o livro nos traz, em primeiríssimo lugar, preciosa revelação: jornalistas escrevem. Ou, numa acepção mais rigorosa, jornalistas produzem texto. Não é pouco, se levarmos em conta a opção preferencial pelo estilo telegráfico, supostamente objetivo mas pavorosamente seco e desidratado dos dias e das folhas que correm, bem típico de séria carência de leituras.Antes que algum apressadinho corra a desqualificar comparações entre um livro (este entendido como a representação física da imensurável liberdade desfrutada pelo autor e de sua criatividade) e a exigüidade de tempo e espaço relativa a um jornal, cumpre lembrar que só escreve bem (inclusos os escrevinhadores jornalistas) quem lê bem. Vale a lição, ou o escrito, quando menos para nos lembrar da dureza, ou da impossibilidade, que é essa mixórdia de limitar o noticiário, dia após dia, às interpretações das bulas – ou atas, no jargão oficial, tão passivamente engolido – do Banco Central e demais secreções, humores e papiros emitidos pelo tal mercado, do qual o mesmo BC é atenta embaixada. Há bem mais, no que toca a nós, jornalistas, na retroativa viagem profissional de Roberto Pompeu de Toledo à São Paulo de antanho. Esta, conforme se viu (ou se leu), não apenas demorou uma barbaridade a vingar, teimosamente se portando como delicada avenca exposta a ventos e serenos e golpes de ar, como também se mostrou desde o berço de uma rebeldia sem par, lambedora mesmo do mais deslavado anarquismo. Padres, bispos, prelados e demais representantes da Igreja foram postos a correr vezes sem fim, por insistir em impor ordens e recatos despachados pelo poder, fosse este o da Metrópole ou das instâncias domésticas. Semelhante disposição em devolvê-los não se arrefecia nem mesmo perante o pavoroso instituto da excomunhão, usado e abusado pelos enxotados inutilmente. Dá para se ter uma idéia da força e do poder de intimidação de um Manoel da Nóbrega, de um José de Anchieta e de todos os seus seguidores, solenemente esnobado pelo peladão e polígamo João Ramalho.Tal rebeldia, reconheçamos, é de despertar a mais travosa das invejas, se confrontada com a pasmaceira atual, na qual, no sábio e repetido dizer de João Ubaldo Ribeiro (atenção, trata-se de um jornalista), sobra-nos protagonizar o papel de comportados, mudos e estóicos carneiros. Transgredir, o quanto ainda é preciso, nesse mar oceano de milhões de universitários que mais se assemelham a seres catatônicos que morrem numa nota preta a cada mensalidade?
Miserê citadino
A incursão jornalístico-literária de Roberto Pompeu de Toledo também remete a uma indagação: como andamos tratando as cidades nos jornais? É certo que qualquer calouro sabe que bíblias e gurus do Primeiro Mundo estão roucos de recomendar que os jornais dêem força total aos cadernos ditos ‘cidades’. Mas a realidade é bem outra, muito abaixo das expectativas. Razões para tanto não faltam, graves o suficiente para dispensar interpretações que acusem mera má vontade dos senhores editores.A começar pelo incurável tropismo – exaustivamente comentado e criticado cá no Observatório da Imprensa – pelo poder, que fez das primeiras páginas sempiternas e irrevogáveis capitanias. A favor ou contra, as capas são oficiais e ninguém tasca. E como o poder aqui é entendido como federal (a ponto de inspirar respeitado provérbio mineiro segundo o qual com este ninguém pode), resulta que Brasília exerce sobre as redações uma influência que bem lembra a ação da lua sobre as marés. Sendo que os fenômenos de vazante e de enchente destas se fazem em poderoso e irresistível instrumento de sugação exercido pela Corte planaltina, findando num refluxo quase que permanente nos domínios das remotas redações. Cidades, ou os cadernos relativos a estas, só têm assim a perder e a secar. Dia desses, aqui mesmo no OI, José Carlos Marão ensinava a receita de sucesso de um bem-sucedido diário de Campinas, que cultua os leitores (da terra) a ponto de publicar-lhes as cartas na primeira página. Brilhante e bem lembrada exceção [veja remissão abaixo]. A pobreza, ou a secura, das editorias de cidades tem, porém, outro motivo: a indômita, irrefreável e tumoral favelização em curso. Uma coisa é cobrir a imensidão urbana de miséria via televisiva ou radiofônica. Tudo se resume a flashes e takes rápidos e efêmeros, é certo que com alguma morbidez, que tanto ceva apresentadores picaretas, mas vira o dial ou troca o canal e pronto. Já no jornal, complica. Como ‘repercutir’ (as aspas clamam perdão pelo clichê horroroso), ainda mais no outro dia, um neto danado de droga que sangrou a avó como um porco? Por melhor que seja o texto ou contundente a foto, não vai sair nada que preste. Vai daí que acabamos, ou pelo menos reduzimos, o miserê citadino – ou este, feito saúva, acaba com os cadernos de cidades. Diagnóstico: exaustão de leitura, ao qual estão imunes o rádio e a TV.
Gosto pela leitura
Outro fator de corrosão da mídia local foi, bem a propósito, explicitado na coluna ‘Painel’, da Folha de S. Paulo (24/1/04): a dita coluna, de praxe exportada para jornais do interior do país, foi miseravelmente mutilada em três notas pela Gazeta do Povo,maior jornal do Paraná. Obra e graça do governador Roberto Requião. Na lavra do ‘Painel’ original: ‘Foram suprimidas informações sobre a indicação de Requião para a TV Educativa e os ataques a ele feitos pelo peemedebista em 2000’. Apenas para sacudir os moradores de São Paulo e demais metrópoles, tal feito é prática comum Brasil adentro. Donos de jornais pura e simplesmente debruçam-se sobre o cangote do infeliz jornalista (?) que está a digitar e mudam tudo, como se tivessem a tratar com um escravo de época descrita por Roberto Pompeu de Toledo. Nem se preocupam em desviar o bafo podre.Se é que a truculência de Requião ainda precisa de referenciais, a quem compará-lo, se ainda se sustenta a tese pela qual tudo que é passado é ruim e incivilizado? Como na provinciana e infecta São Paulo de Piratininga, suja, lamacenta e sujeita a devastadoras epidemias… Em A Capital da Solidão sobram tiradas e ironias a respeito de práticas e manias remanescentes daqueles tempos tão ignotos, como se dizia então. Um francês ilustre, Saint-Hilaire, competente cronista da época, chama a atenção para o estranho costume nativo em exaltar virtudes e qualidades do mundo civilizado (Europa) e sistematicamente desmoralizá-los na prática – atavismo é isso aí.Não deixa de ser uma ironia, reconheça-se que trágica, que rodovias importantes da modernidade tenham sido batizadas de Raposo Tavares, Fernão Dias e Anhangüera. Ler o livro de Roberto Pompeu de Toledo talvez seja uma maneira de entender por que estes asfaltos tanto sangram e matam. No futuro próximo pode ser que a sala da chefia de uma redação importante seja batizada com a alcunha de Roberto Requião.A Capital da Solidão expõe também sinceras motivações urbanísticas. A descrição do surgimento e dos nomes das ruas do centro, por competente e até romântica, bem merecia alguns croquis, para moradores turistas mais atentos. Provavelmente foram descartados face ao respeitável volume do livro. É necessário, à página 308, que trata das andanças e proezas do marechal Arouche de Toledo Rendon, retroceder em um século a data, ali impressa, de 1921. Um descuido da revisão que em nada embaça a precisão histórica da obra.No mais, recomenda-se a releitura (ou a leitura, para os não-iniciados), simultaneamente ao deleite de correr as páginas de A Capital da Solidão, de Meu Querido Canibal, de Antônio Torres (Record, 188 páginas). Nomes de personagens, de índios, brancos e negros, de padres e bispos, assim com fatos e eventos, coincidem nas duas obras. A comparação, longe de resultar em avaliações que sobreponham uma à outra ou vice-versa, presta-se extraordinariamente a estimular o gosto pela leitura, a avidez pela história brasileira e a resgatar a nossa memória, sempre tão desprezada. A diferença básica a permear os dois livros diz de uma abordagem mais imparcial de Roberto Pompeu de Toledo, por jornalística, e do franco engajamento de Antônio Torres.
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(*) Médico e jornalista