Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Sem as quotas, mas não sem controvérsia

Uma das grandes obras de Machado de Assis, a Academia Brasileira de Letras, não tem sido muito bem entendida por seus sucessores, à semelhança do que ocorreu com sua obra propriamente literária.

Um bom exemplo de tais desentendimentos é o romance Dom Casmurro, sobre cuja suposta ambigüidade narrativa ainda hoje persistem controvérsias que levam respeitáveis personalidades literárias a negar o adultério mais comprovado do mundo.

Com efeito, a Casa de Machado de Assis acolheu escritores cujo maior talento foi a capacidade de articulação, e rejeitou outros, que lá bateram, mas tiveram a entrada negada (Mário Quintana), sem contar aqueles que nem se candidataram (Carlos Drummond de Andrade, Erico Verissimo).

Todavia ninguém precisa de muita formação literária para saber que, como nos hospícios, muitos do que lá estão, não são, e muitos dos que são, não estão, como de resto ocorre em qualquer outra academia de Letras, onde verdadeiros imortais – quem dá a imortalidade ao escritor é sua obra, não sua capacidade de articular-se ou de engolir sapo – são obrigados a conviver com conhecidas mediocridades.

Estilo sintético

Como vivemos a Era da Esperteza, há sempre quem queira nos convencer de fugazes excertos de prosa ou de poesia de políticos têm qualidades literárias iguais ou superiores à obra de Mário Quintana ou de Carlos Drummond de Andrade. Ou de Cruz e Sousa, Lima Barreto e tantos outros que lá não entraram.

Naturalmente, há também alguns silêncios. Que se diz de não estarem na Academia dois de nossos maiores contistas de todos os tempos, Rubem Fonseca e Dalton Trevisan? Eles não estão, mas José Sarney e Marco Maciel estão. O Brasil poderia ficar divertido se, para compensar, Rubem Fonseca e Dalton Trevisan passassem a fazer alguns pronunciamentos no Senado, com o fim de homenagear o fundador da ABL, que tanto se ocupou da política em seus escritos.

Entretanto alguns clarões fulguram de vez em quando, como no caderno ‘Cultura’ do Estado de S.Paulo de domingo (27/1, pág. D14), no depoimento de Lygia Fagundes Telles ao jornalista Ubiratan Brasil em ‘Meu Machado de Assis’, seção criada por aquele caderno literário para, no último domingo de cada mês, neste 2008, ano do centenário da morte do escritor, saber o que pensam alguns criadores a respeito da obra do Bruxo do Cosme Velho e grande mestre da literatura brasileira.

A escritora responde assim à pergunta ‘E hoje: Capitu traiu Bentinho?’:

‘Eu já não sei mais (risos) (…) No começo (nas primeiras leituras), ela era uma santa; na segunda, um monstro. Agora na velhice eu não sei’.

Além do signatário (‘Dom Casmurro: o adultério mais comprovado do mundo’, in Revista da Biblioteca Nacional, número 44), Otto Lara Resende e Dalton Trevisan insurgiram-se contra a tese da suposta ambigüidade de Dom Casmurro.

Então cronista da Folha de S. Paulo, Otto deflagrou com seu texto uma chuva de cartas de leitores, sobretudo de leitoras, quase todos indignados com a condenação de Capitu. A maioria das cartas não fazia interpretação literária, fazia a defesa de Capitu, personagem emblemática para caracterizar uma mulher que, dividida entre dois homens, fica com os dois.

Dalton Trevisan, com seu proverbial estilo sintético, fez o resumo da ópera:

‘Se Capitu não traiu Bentinho, então Machado de Assis é José de Alencar’.

Um a zero

O caso é que no centenário da morte de Machado de Assis, é mais uma vez tempo de celebrar a vitória do talento, que floresce nas condições mais adversas.

Quis a caprichosa História que o maior escritor brasileiro de todos os tempos fosse órfão (outros cuidaram dele que não seus pais), voluntariamente estéril (num país que valorizava por demais as genealogias), preto (num país escravocrata), pobre (ou ‘sem berço’, como então se dizia), epiléptico (doença que era tida como um castigo Deus), casasse com uma solteirona (desprezada por outrem ou a quem outros desprezara, a sua amada Carolina), e gago (num país que sempre valorizou mais a capacidade de dizer do que a de escrever, mais a fala do que a escrita).

Machado tinha tudo para perder uma partida por sete a zero, portanto. Mas venceu por um a zero. O gol solitário foi o talento: ele sabia escrever. Seu saber era este. Não era apenas isso que sabia fazer, mas era o que sabia fazer melhor.

******

Doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é vice-reitor de pesquisa e pós-graduação e coordenador de Letras; seus livros mais recentes são Os Segredos do Baú (Peirópolis) é A Língua Nossa de Cada Dia (Novo Século); www.deonisio.com.br