Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Sem moral da história

[Entrevista distribuída pela Editora Record para a divulgação do livro]

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Meu nome não é Johnny é a história de um sucesso ou de um fracasso?

Guilherme Fiúza – O livro não separa seus personagens em heróis e vilões. Não tem moral da história. Não é uma denúncia de corrupção, não diz que a polícia perdeu ou venceu, não encerra uma lição sobre o que fazer com pessoas de ‘bom berço’ que consomem drogas e vão para a delinqüência. Quer dizer, o livro não encerra nenhuma lição moral em relação a todos esses temas que são tabus.

Ele chega a tangenciar uma moral da história, que é a possibilidade de o sistema recuperar uma pessoa. Pode uma pessoa que comete um crime grave ser presa, julgada, condenada, encarcerada, cumprir pena e se recuperar? A estatística diz que isso é pouco provável. A sociedade também é cética quanto a essa possibilidade. E esse livro, de certa forma, desmente o senso comum. Mostra alguém atravessando o mundo cão do tráfico e da cadeia sem ser devorado por ele (embora levando boas mordidas).

O combalido sistema brasileiro de repressão e punição desta vez fica bem na foto?

G.F. – Acho que a Justiça atuou bem no caso. O sistema recupera? O que sei é que o Judiciário, na pessoa da juíza Marilena Soares Reis Franco, fez o seu papel com equilíbrio e perspicácia. A juíza poderia ter aplicado a pena máxima a João Guilherme, mas não o fez, de certa forma apostando nele como pessoa. João ficou preso em lugares problemáticos, é verdade, cheios de distorções e perversões, correndo riscos. Quase foi morto. Mas o sistema também lhe deu chances de recuperação, como quando foi aceito para trabalhar na administração do Complexo Frei Caneca.

Também não há moral da história quanto às drogas?

G.F. – Uma coisa que me animou muito nesse trabalho foi a abordagem da relação do ser humano com as drogas: de uma maneira muito franca, sincera, sem tabu, sem estigma – e sem moral da história. Nós estamos falando de uma pessoa que movimentava uma quantidade enorme de drogas. Que receptava cargas de mais de quinze quilos de cocaína sozinha. Era um esquema muito grande. E o livro fala também de pessoas consumindo cocaína, maconha e LSD. Mas ele não diz que essas pessoas estão erradas ou certas. Ele é útil para falar do seguinte: usa-se drogas desde a Antigüidade, em várias faixas etárias e em culturas diversas, e vai-se usar drogas, provavelmente, durante muito tempo. Acho que ele é muito honesto ao falar um pouco do que é a convivência com as drogas, sem tabus.

Não estamos aqui tentando fazer um projeto de lei nem um editorial. Acho que o livro talvez tenha o mérito de mostrar o seguinte: o uso de drogas é mortal para umas pessoas, significa perdição para outras pessoas, prejuízos enormes, e também significa apenas diversão para algumas. Estamos falando de uma geração carioca que buscou liberdade a qualquer preço, e dentro dessa busca de liberdade havia droga no meio. A droga fez parte da busca de liberdade e do prazer. O livro não faz apologia dessas drogas. E não condena. Não me preocupei se estaria ajudando as pessoas a se afastarem do vício, ou se estaria motivando pessoas a se drogarem. As pessoas vão continuar sendo auto-determinadas. E têm direito a lidar de maneira franca com um assunto em que há sempre alguém dizendo a elas o que devem ou não devem fazer.

Como surgiu o livro?

G.F. – Eu sabia da história de João Guilherme e, a princípio, não me senti à vontade para propor que fizéssemos um livro. Talvez por certo pudor de me sentir como o jornalista que quer explorar a vivência, a tragédia e o sofrimento de uma pessoa. Mas um dia acabei procurando-o e sondando-o sobre o projeto. Estabeleci duas condições básicas: a primeira, de que seria sob a forma de reportagem, ou seja, eu não colheria apenas o depoimento dele, mas ouviria também quem o prendeu, os colegas de prisão, o advogado, enfim, todos os personagens envolvidos em seu drama. A segunda, foi a dele usar o nome real. Perguntei o que ele achava disso e disse que se ele não quisesse se expor dessa forma, o projeto não me interessava. Eu achava que a história seria boa de qualquer forma, mas o grande trunfo era o de ser uma história real, por isso insisti no nome verdadeiro. Essa pessoa existiu, existe, está aí. Foi um cara que sobreviveu, não estava preso nem foragido, e poderia contar seu drama.

Como ele reagiu?

G.F. – Para a minha surpresa ele se animou e não demonstrou qualquer tipo de pudor em se expor. Quis logo começar a gravar. Uma coisa interessante foi que ele tinha uma memória muito boa. Pedi que começasse pelo primeiro fato que lhe viesse à cabeça. No início, não tivemos nenhuma preocupação em ordenar os assuntos. O seu primeiro relato foi de um episódio impressionante, quando ele foi ‘seqüestrado’ por policiais civis, que o pegaram com dois quilos de cocaína. Os caras foram até o seu apartamento e não o levaram preso. Ficaram rodando com ele pela orla da Zona Sul, enquanto faziam uma série de ameaças. No carro havia fuzis e granadas. Quer dizer, tudo podia acontecer. Eles chegaram a propor que todos se internassem em um apart hotel e passassem um final de semana lá. João achou que poderia ser morto ali dentro, que daria tudo errado, e conseguiu convencê-los de negociar em liberdade. Um pesadelo real, embora não seja um capítulo decisivo no livro.

Você diz que não é um livro denúncia, mas episódios como esse desnudam um sistema policial corrupto…

G.F. – A minha opinião sincera é de que o livro não desmascara nada. O livro mostra vários episódios de corrupção, de desvios como esses, de extorsão, cárcere privado etc, mas esse tipo de situação é mais ou menos o que se sabe que existe. Há uma parcela da sociedade que acha que a maioria da polícia é assim, outra acha que não, que isso não é a maioria. Então, eu não considero que o livro desmascare nada, e não tive esse objetivo ao escrevê-lo. Uma coisa muito importante de ser compreendida é que ele não é uma denúncia, não é um panfleto, e não segue os códigos mais comuns de histórias do tráfico, mundo cão, e livros policiais. Apesar de ter passagens como o momento em que João, dentro da Polícia Federal, compra uma visita íntima com a mulher dele – e está claro que isso é corrupção – ao mesmo tempo quem foi corrompido foi um arraia miúda de lá. Eu não estou denunciando a instituição Polícia Federal. E, por outro lado, o delegado que foi responsável pela prisão me pareceu, até onde eu consegui apurar, uma autoridade muito transparente, e até muito hábil no seu trabalho.

Você considera que nesse caso da prisão do João Guilherme Estrella a polícia trabalhou bem?

G.F. – O trabalho para o cerco e prisão do João Guilherme foi razoavelmente bem feito, de inteligência e de investigação. Eu entrevistei o delegado titular, o Dr. Flávio Furtado, e me pareceu uma pessoa de princípios, interessada mesmo na informação. É claro que na instituição onde ele está existe também truculência e corrupção, mas o livro mostra os dois lados. Também mostra o lado saudável da instituição. Vejo esse livro muito mais como um retrato 3×4, um close up de uma pessoa com seus erros, seus acertos, seus deslizes, seus crimes voluntários ou não, e tudo o que acontece à sua volta relacionado com a polícia, com o sistema carcerário, com a cidade etc. A preocupação foi dizer o seguinte: não vamos mostrar a história de um traficante, vamos mostrar a história de um cara comum, que podia ser qualquer um de nós, e o caminho alucinante que sua vida tomou.. Os amores, o carisma, suas loucuras, a falta de ética, o busca de ética, a relação dele com as drogas, e o que resultou de tudo isso.

O que você acha que impediu que o seu personagem se tornasse um traficante irrecuperável?

G.F. – O tráfico praticado pelo João Guilherme Estrella não tem características violentas. Quer dizer, ele não é um chefão convencional. Há em sua trajetória dois momentos em que a sua cama está feita para ele se tornar um traficante com todo o aparato que sabemos existir, aí incluída a violência. Um deles, o momento em que é oferecida a ele a receptação de armas, para que entre no tráfico de armamentos, e ele não aceita. Nesse caso ele estaria abastecendo a violência, mas não necessariamente fazendo uso dela. E numa outra ocasião, em que ele, já preso, percebe que os integrantes de uma facção criminosa do Rio de Janeiro, que estão naquela cadeia, já atribuem a ele um certo cartaz, um certo respeito. Ele poderia, se associando, ou utilizando daquela reputação dentro do mundo do crime, se tornar um chefão com mais poder. Ele já tinha, digamos, o poder econômico, e passaria a ter também o poder bélico, militar. E essa escolha ele não fez – provavelmente por conta da índole, que não era violenta.

Você identificou a origem desse lado não-violento dele?

G.F. – Acho que isso vem do berço. Conversando com ele e com os seus familiares eu fui percebendo que na hora de decidir se ia ser bandido ou não, alguma coisa do berço dele falava mais alto. Tanto que tem uma passagem curiosa, ligada ao título do livro. É comum bandido ter apelido. E também é comum, quando não tem, a polícia ou a imprensa arranjar um para ele, porque bandido importante tem que ter apelido. E ele foi batizado como Johnny, pela Polícia, ou pela imprensa, não sei. E quando ele lê a notícia sobre a prisão, onde consta o apelido, reage. Bate um escrúpulo e ele implica com o apelido. Naquele momento, ao se sentir vulgarizado, provavelmente ressurgiram dentro dele alguns valores e princípios de berço – que afinal, era um bom berço. Ele é um cara que teve uma família educada, amorosa, e que tinha lhe transmitido os melhores princípios da vida em sociedade.

Como a família reagiu ao projeto do livro?

G.F. – A mãe dele, Maria Luiza, colaborou 100%, mas confessou que era muito sofrido repassar aquilo tudo, e mesmo comentando ser essa uma oportunidade de digerir a história, disse que preferia não ter que passar nada a limpo. Aquilo já a tinha feito sofrer o suficiente e ela preferia olhar para frente. O irmão dele, André, também demonstrou uma certa ‘ressaca’ do episódio, cujo desfecho poderia ter sido mais trágico. Todos sofreram muito. Não vi a família entusiasmada com o livro, mas todos colaboraram.

No meio policial, como foi a receptividade?

G.F. – Boa. Existia uma preocupação da minha parte de colher a visão da polícia. Eu recebia notícias de que o João Guilherme Estrella havia tido uma importância grande na distribuição de cocaína na Zona Sul do Rio de Janeiro, na primeira metade dos anos 90. Mas eu queria saber da polícia qual era a verdadeira importância dele. Fui muito bem recebido pelo delegado Flávio Furtado. Ele não só concordou em falar do caso, como também lembrava muito bem, de tudo, alguns anos depois. Inclusive dos agentes que estavam ligados diretamente à investigação, e se mostrou inteiramente solícito e transparente para falar do caso e de como havia sido feita a operação toda.

O que ele contou de relevante?

G.F. – Contou pormenores, como por exemplo, que o João Guilherme, apesar de grande traficante, tinha uma atividade totalmente precária e desleixada. A tal ponto que levou os agentes a perceberem que seria razoavelmente fácil fazer um cerco, embora ele fosse um personagem potencialmente perigoso, pela quantidade de cocaína que movimentava, e pela conexão que desaguava nele. Foram relatos que ajudaram a mostrar quem era João Guilherme no tráfico do Rio de Janeiro naquela época, qual a sua dimensão. O Flávio Furtado me deu inclusive a visão que se tinha de João no bastidor da polícia. A partir de um certo momento os agentes só se referiam a ele como o bola da vez. Era ponto de honra pegá-lo.

A polícia concentrou esforços na captura dele…

G.F. – Era a prioridade, a investigação já estava madura e eles perceberam que era questão de tempo apanhá-lo. Em entrevistas à imprensa, o então superintendente da Polícia Federal no Rio, o Dr. Jairo Kullman, declarou que naquele momento, em 1995, aquele tinha sido o desmonte mais completo de uma quadrilha já feito pela PF. Do laboratório de refino à ponta, que era o João Guilherme, e também a ponta de lança para a Europa. Eles conseguiram prender todo mundo. Na verdade eles só não prenderam o receptador na Holanda, que eu chamo de Felipe. Ele era o braço europeu do que eu chamei de Conexão Nelore, porque a cocaína tinha um selo denominado Nelore puro, em referência ao gado criado na fazenda onde ficava o laboratório, em Rondonópolis. O Felipe pulou fora quando percebeu que a polícia brasileira estava mais atenta, com as tais forças-tarefas, mais cooperação, grandes apreensões de droga. Ele continua vivendo lá, casado e trabalhando normalmente numa empresa de informática. Se safou completamente.

Como ficou a relação do Estrella com você, depois do livro?

G.F. – Muito boa. Para ele foi uma espécie de terapia, porque eu acabei puxando muito pelo lado biográfico dele. Ele teve a chance de repassar praticamente a vida toda, parar para pensar mesmo. Foi uma convivência intensa, com mais de 30 horas de gravação, fora as conversas não gravadas, intermediárias.

Ele ficava à vontade, falou numa boa?

G.F. – Ele se desgastava muito. Primeiro porque essa boa memória que ele demonstrou era também resultado de muita concentração para recuperar fatos, todos muito emocionantes. A vida dele é muito turbulenta. O rigor com que recuperou toda a história é muito impressionante. No início eu o alertei para a questão do nome, pois significaria um alto grau de exposição, e ele precisava decidir se queria assumir isso. Dei seis meses para ele refletir e pedi que conversasse com os amigos, com o advogado, para ver se realmente queria tornar pública essa história. Por um lado ela significa também encarar um estigma. Eu queria ter a certeza de que ele estava à vontade e decidido de forma madura a colocar o nome naquela história. Um outro ponto era de que ele fosse verdadeiramente fiel aos fatos que viveu. Eu não queria nenhum grau de fantasia. O que ele não tivesse absoluta certeza eu não queria saber, porque a nossa matéria-prima, o nosso patrimônio era a história real.

Ele seguiu esse rigor?

G.F. – Em vários momentos das entrevistas – nós tivemos muitas, às vezes com grandes intervalos entre uma e outra – quando voltávamos ao assunto ele reproduzia do mesmo jeito, com as mesmas informações. Acabou servindo para verificar que o relato estava ok. Ele estava falando seis meses depois sobre aquele mesmo assunto e eu tinha tudo gravado e anotado. Dava para confrontar os detalhes sobre que data, que mês, que quantidade da droga, quem estava envolvido na operação, quantas pessoas, e o relato voltava exatamente da mesma forma. Isso me deu uma grande segurança de que ele realmente estava conseguindo recuperar a história real.

Sendo seu primeiro livro, que método ou técnica você procurou seguir?

G.F. – O livro foi escrito de forma jornalística, que é o que eu sei fazer. Depois de concluir a apuração e ter as informações todas na mão, fui montar e comecei a escrever sem respeitar ordem cronológica e sem roteiro pré-definido. Comecei escrevendo cada capítulo como se escreve uma matéria. Inclusive, mesmo depois de estruturado o livro, você pode observar que cada capítulo conserva começo, meio e fim, como se fossem reportagens encadeadas. De certa forma, parece uma sucessão de contos – pequenas histórias que, nesse caso, contam uma mesma história maior..

Qual foi a maior dificuldade?

G.F. – Fechei com 20 capítulos, mas só depois de ter escrito uns seis consegui ter uma idéia clara de como seria a estrutura do livro. Depois de esquematizar como ele começaria e como acabaria, passei a escrever já com a visão global. Mas até chegar a esse ponto, era uma visão fragmentada. Foi a fase mais difícil. Jornalista é treinado para tentar segurar o leitor, não deixá-lo ir embora até o fim do primeiro parágrafo, depois até o fim do segundo, e se ele passar do terceiro talvez não largue mais o texto. Isso te obriga a tentar manter uma certa pegada, não afrouxar o encadeamento. Por isso mesmo, aliás, sou otimista e favorável a livros escritos por jornalistas. Seja literatura, seja reportagem, seja uma mistura dos dois. Acho que, de uma maneira geral, o leitor acaba agradecido por certas facilidades que o jornalista lhe proporciona.