Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Será que o homem era um santo?

Millôr Fernandes tem uma historinha ou um cartum, não me lembro bem, em que seres interplanetários baixam de disco voador num cemitério, lêem as coisas escritas nos túmulos (epitáfios e lembranças) e um pergunta ao outro algo do tipo: ‘Onde será que enterram os homens maus neste planeta?’.

Realmente, os mortos são todos ‘bons’. Inimigos que tentam matar um ao outro o tempo todo, se um morre, o outro só tem boas lembranças dele, só fala bem do defunto. Não sei se existe algo de cristianismo nisso ou o que é, mas é um fato curioso. Só os jornais lembram fatos negativos da vida de um defunto qualquer. Alguns jornais até exageram nisso, parece que ficam procurando defeitos para macular a imagem de defuntos benquistos. Para falar a verdade, nem só dos mortos. Qualquer pessoa que vira notícia, alguns jornais partem imediatamente para cavoucar seu passado à procura de defeitos e escândalos. A Folha de S.Paulo não é exceção nisso. Basta alguém ser chamado para ocupar um posto qualquer no governo, por exemplo, que ela esquadrinha a vida do sujeito. Talvez – apesar de ser jornalista não tenho muita convicção sobre isso – seja função da imprensa levantar mesmo os podres de qualquer pessoa que se torne figura pública.

E para falar a verdade, sempre acham. Ninguém é perfeito, não há ninguém que nunca tenha dado uma mancada na vida. Então, lembrar alguns defeitos das figuras públicas, inclusive mortas, faz bem para baixar um pouco a bola, não beatificar ninguém só porque morreu.

Mas a notícia da morte de Octavio Frias de Oliveira, publisher da Folha, me fez parecer que ele era uma exceção. Não teve defeitos, nunca vacilou, foi um santo homem 24 horas por dia. O noticiário foi recheado com o maior festival de bajulação que já vi. Do presidente da República – ele mesmo e seu partido sempre se consideraram vítimas da parcialidade da imprensa, inclusive e especialmente da Folha – até acadêmicos, cientistas e jornalistas, só falaram e escreveram maravilhas do finado. Colunistas da Folha – inclusive os mais respeitáveis – derramaram elogios ao ‘seu Frias’, tratado com intimidade. Só lembraram atitudes e comportamentos elogiáveis, admiráveis, dele.

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Não duvido que ele tivesse tido ótimas qualidades e que pessoas que conviveram com ele tenham boas lembranças. Afinal, vi entre os elogiadores gente como Oscar Niemeyer, Antonio Candido, Dom Paulo Evaristo Arns e outras figuras pra lá de respeitáveis. Não incluo entre estas os políticos em geral (do Executivo ou do Legislativo, do nível federal ao municipal), que talvez esperem que o jornal se lembre de seus elogios em outros momentos, nem os jornalistas que sempre vêem num grande órgão de imprensa uma possibilidade de bom emprego. Esses políticos e esses jornalistas não transpiram nenhuma credibilidade.

É claro que eu não esperava que a Folha fosse remexer o passado de Frias à procura de defeitos. Nenhum jornal faria isso. Mas sinceramente, esperava uma biografia mais completa. A biografia publicada pula os anos da ditadura, especialmente os que vão até a repressão violenta à esquerda. Só diz que a partir do final de 1973 a Folha adotou uma linha mais independente, abandonando uma ‘imparcialidade acrítica’ que durou de 1968 a 1973. E é aí que a coisa pega.

Os anos de 1968 a 1973 foram os de maior repressão, em que outros jornais eram censurados, o Estado de S.Paulo publicava poemas de Camões no lugar de matérias censuradas, como protesto. E a minha lembrança não é de uma imparcialidade acrítica, mas de uma aceitação total da versão dos ditadores sobre os fatos ocorridos. A Folha da Tarde, diziam (eu ainda não era jornalista e não sabia o que se passava lá dentro), substituiu jornalistas por policiais e noticiava que presos políticos sabidamente mortos na tortura haviam sido mortos em tiroteio com a polícia. E ia por aí afora, a ponto deste jornal ser chamado de ‘Oban News’ e de dizerem que era o jornal de maior tiragem: tinha o maior número de tiras na redação. Não sei o que se passou nos bastidores, mas gostaria de ler a versão dos que mandavam no jornal nessa época, saber que tipo de pressões sofreram, se poderiam adotar outra postura, se resistiram a fazer coisas piores.

O estranho é que vi um único comentário relembrando esse tempo, e foi de Fábio Konder Comparato (homem respeitável, opositor da ditadura) que nos informa que Frias ‘manteve uma resistência respeitável à censura’. Sinceramente, uma informação que eu não tinha. E nem sei como ocorreu essa resistência, já que ele não contou (ou não publicaram) algum episódio relacionado a isso. Por que não falaram mais sobre isso?

Momentos ‘humanos’

Todo mundo sabe que a Folha teve importância em certos momentos da vida política do Brasil, mas será que só houve acertos? Diretas Já, impeachment… Sim, foi importante. Mas em 1964, por exemplo, quase toda a imprensa ficou a favor do golpe, e parte se arrependeu e houve alguns jornais golpistas que até tiveram atitudes muito decentes depois. Como foi com a Folha? Não consta, assim como parece ter sido apagado da memória como o jornal se comportou durante o auge da ditadura. Acredito que se seus editores contassem o que ocorreu lá durante esse tempo, tendo ou não vacilado em certos momentos, a gente encararia numa boa. Autocrítica honesta faz bem. E, lembro mais uma vez, ninguém é perfeito e nenhum jornal é perfeito.

Mais tarde, a Folha foi apontada como o jornal que mais violentou a profissão de jornalista, não respeitando a legislação existente. Mas isso tudo foi esquecido.

Enfim, que Octavio Frias de Oliveira transformou a Folha numa grande potência, é inegável. Ele está aí, como jornal de maior tiragem (agora sem trocadilhos) do Brasil. A imparcialidade proclamada, já não acho tanta, mas leio. Só que continuo pasmo com o festival de bajulação publicado no jornal nestes dias, com uma louvação e ausência de crítica que não engrandece Otavio Frias de Oliveira, ao contrário, faz a gente torcer o nariz para tanta badalação e suspeitar que estão escondendo algo. Continuo querendo saber – sem demonizá-lo nem beatificá-lo – os momentos ‘humanos’ de Frias, em que ele teve que ceder e por quê, e também os momentos em que ele não cedeu, e como fez isso.

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Jornalista, São Paulo, SP