Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Sobre livros perdidos e encalhados

O modismo chamado O Código Da Vinci, o romance histórico-policial de Dan Brown, estava no auge quando o Eurostar, serviço europeu de trens de alta velocidade, divulgou a notícia de que, ao cabo de um ano, quase mil exemplares do best-seller haviam sido deixados na linha Londres-Paris.

‘O que pensar disso?’, perguntou-se uma colunista, chocada. ‘Devemos achar que as pessoas jogam livros fora como se fossem lenços de papel?’, perguntou outro articulista -ambos na França. ‘Sinal da má qualidade da trama’, concluiu viperinamente um suplemento cultural. ‘Quantos exemplares não foram atirados pela janela ou descartados no vaso do toillette!?’, debochou o colunista.

Os promotores do filme baseado no livro não demoraram a usar a notícia a seu favor. O mistério dos livros perdidos se converteu em jogada de marketing. O fenômeno seria um sinal do envolvimento dos tantos leitores que, no embalo de Dan Brown, pegavam o trem para visitar o Museu do Louvre para ver de perto a tela do pintor renascentista.

Superoferta

O descarte de tantos Código Da Vinci, por um motivo ou outro, trazia de volta, porém, o antigo debate -que data do século 18- sobre a superoferta de títulos. O mal-estar com o excesso de informação só se intensificou no começo do 21, como lembra à Folha o historiador Robert Darnton, autor de A Questão dos Livros – Passado, Presente e Futuro (trad. Daniel Pellizzari, Companhia das Letras). No início do mês, ele foi uma das atrações da Flip.

Quando tantos anunciam o fim do livro, nunca se publicou tanto: a cada ano, são cerca de 1 milhão de títulos, com milhares de exemplares por tiragem, acrescenta Darnton. Ele adora repetir esses números quando lhe perguntam sobre o ‘fim’ do livro.

Não é outra a reflexão de Michel Melot, historiador francês, autor de ‘Livre’, ainda sem tradução no país. Desde 1880, lembra ele, anuncia-se o fim do livro. ‘Mas a única crise, hoje, parece ser a de superprodução’, afirmou, por e-mail, de Paris. Como conta Melot, de 1980 a 2000, o número de títulos lançados dobrou na França. O fenômeno também pode ser observado no mercado anglo-saxão ou latino-americano. ‘O livro não desaparece: está se tornando comum. Pode ser encontrado em qualquer momento da vida cotidiana e em cada mão.’

Livros demais

Até o último domingo, o Google contabilizava, em todo o mundo, 129.864.880 de títulos, numa consulta a cerca de 150 fontes (bibliotecas, livrarias, catálogos e fornecedores). Na mesma semana, às vésperas da abertura da 21ª Bienal do Livro de São Paulo, a Câmara Brasileira do Livro, o sindicato dos editores e a Fipe divulgaram que, em 2009, foram publicados no país 52.509 títulos (2,7% a mais do que em 2008), com um total de 386.367.136 exemplares (aumento de 13, 5%). As vendas em 2009 atingiram 228.704.288 exemplares.

Não que as 157.662.848 cópias não absorvidas sejam encalhe. Mas, se não forem compradas, poderão vagar entre depósitos de editoras e livrarias, sem jamais serem abertas, até serem liquidadas em saldões ou virar aparas e confetes literários. Destruir livros é mais barato do que mantê-los no estoque.

Editoras são reticentes quando o tema é encalhe, fenômeno que ocorre mesmo em países com público leitor ainda em expansão, como o Brasil. Sob críticas, o grupo Ediouro, o maior do país, viu-se recentemente obrigado a voltar atrás na orientação que passou a livrarias sobre o que fazer com os livros não vendidos. Um e-mail orientava livreiros a não mais enviá-los de volta, como de costume: bastava devolver ‘a capa, quarta capa e ficha catalográfica […]. O miolo deverá ser descartado’.

‘Sim, há uma superprodução’, confirma por e-mail Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras, a única a se pronunciar sobre o assunto. A editora registra um crescimento de 25% em títulos lançados de 2005 a 2009 -fazer o mercado absorver esse acréscimo torna-se um desafio de divulgação e vendas. ‘No Brasil, a situação se encaixa com alguns dos mesmos problemas que acontecem em todos os âmbitos – livros que vendem menos, vendem muito menos’, analisa Schwarcz. ‘Mas, se o editor souber aproveitar nichos que estão em expansão, pode conseguir um equilíbrio.’

Os números corroboram a tese do ensaísta mexicano Gabriel Zaid em Livros demais!, de 1972 (trad. Felipe Lindoso, Summus, 2004): a leitura de livros cresce aritmeticamente, enquanto a escrita de livros cresce exponencialmente.

Achados e perdidos

Nunca houve contagem por títulos, mas logo se vê que O Código Da Vinci não é o campeão de perdas numa visita ao setor de achados e perdidos do Metrô de São Paulo. Apenas um exemplar da obra se encontrava entre os 110 livros que aguardavam seus donos distraídos na manhã de 10 de junho -ao final de três meses, os que não são buscados seguem para doação.

A leitura preferida, ao menos dos que perdem livros, é a Bíblia. Havia 14 delas, completas ou apenas o Novo Testamento. Duas autoras aparecem duas vezes, com títulos diferentes: a médium brasileira Zibia Gasparetto, campeã de vendas com suas histórias psicografadas, e a britânica J.K. Rowling, da série Harry Potter.

Oito dezenas dividem-se entre os gêneros de autoajuda, romance best-seller e técnico-didático. Estavam lá, por exemplo, O Segredo, de Rhonda Byrne, A Cabana, de William P. Young, e O Vendedor de Sonhos, de Augusto Cury -líderes das listas de mais vendidos nos últimos anos-, mas também Polyanna, de Eleanor H. Porter, sucesso juvenil por diversas gerações.

Entre os técnico-didáticos, há obras de administração, direito, contabilidade, manual de corte e costura e um guia astrológico sobre comportamento sexual conforme o signo. No amontoado, apenas três clássicos: Suave é a Noite, de F. Scott Fitzgerald, Madame Bovary, de Gustave Flaubert, ambos em edições antigas, da década de 1980, e Crime e Castigo, de Dostoiévski, em novíssima versão de banca. Nenhum de poesia. Nenhum de ficção brasileira ou estrangeira contemporânea. Nenhum de crítica literária. Nenhum filósofo, nem mesmo morto.

Cada vez mais coisas são perdidas no Metrô de São Paulo, diz Maria Beatriz Barbosa, 44, funcionária há 22 anos, hoje gerente de relacionamento com a comunidade. Em 2005, 18.700 objetos e documentos foram cadastrados. Em 2009, o número saltou para 33.800. ‘Há mais gente no metrô e há também mais pressa’, diz, sobre esse crescimento de mais de 80%.

Livros perdidos podem ter crescido na mesma proporção, mas não se pode dizer ao certo, pois entram numa categoria que inclui também material escolar e de escritório. Os campeões de perdas são documentos (7.964), seguidos de cartões (5.863). Na categoria onde estão os livros, foram 2.936 registros, também até maio, terceiro lugar em perdas.

Há uma coincidência entre os livros mais esquecidos pelos passageiros do Metrô de São Paulo e aqueles indicados nos estudos sobre o comportamento de leitor dos brasileiros, avalia Galeno Amorim, coordenador da pesquisa ‘Retratos da Leitura no Brasil’, a mais abrangente sobre o tema, cuja segunda edição saiu em 2008.

O mais perdido

Em Londres, onde o consumo de livros chega, por ano, a 18 por habitante, 36,8 mil exemplares foram perdidos (ou descartados?) no sistema de transportes (metrô, trens e ônibus). (A Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, acaba de reabrir com apenas 42 mil exemplares na seção circulante). O livro é o campeão entre os objetos reunidos no cafarnaum londrino, superando roupas, bolsas e bizarrices como implantes de seios, cortador de grama e até cinzas humanas, informa Ronnie Mirza, assessora de imprensa do departamento de transporte.

Podemos dizer que seremos um país de leitores quando mais livros forem perdidos no metrô? Ou tantos livros perdidos em grandes cidades desenvolvidas são o sintoma de algo ruim?

‘A pergunta é muito interessante e eu não sei como respondê-la, mas posso tentar’, diz Darnton. Há a resposta otimista e a pessimista, afirma. A otimista -a que ele prefere, pois, segundo explica, ‘americanos são otimistas’- é que mais gente lê e carrega livros por aí. E a resposta pessimista? Tantos novos títulos estariam banalizando a relação dos leitores com o objeto.

‘Nunca joguei um livro fora, isso seria contra minha sensibilidade’, conta Darnton. ‘Quando quero descartar livros, ponho em sacolas para doar.’ Michel Melot diz que não se lembra de ter jogado livros no lixo. Mas confessa que ‘esqueceu’ voluntariamente um pacote de livros num vagão de trem. O presente foi dado a ele, como para outros convidados, por organizadores de um evento numa cidade cujo nome, por motivos óbvios, prefere omitir.

‘Pareciam tão vazios quanto pesados’, conta Melot, ‘e decidi me livrar deles antes de continuar a jornada, esperando que outros passageiros se interessassem.’