A mesmice das discussões sobre a mídia foi felizmente atalhada com a publicação de um livro de pequeno formato, e apenas 190 páginas, do jornalista Arthur Dapieve (colunista de O Globo e professor da PUC-Rio).
Original, oportuno e extremamente conciso (apesar de originar-se de uma dissertação de mestrado). Também macabro e perturbador. Traz a discussão da ética e deontologia jornalísticas – hoje tão viciada e apequenada pelos vieses partidários – ao problema que Albert Camus considerou o único ‘verdadeiramente sério’ na filosofia: o suicídio.
Prova desta seriedade está no fato de que no Brasil, muito antes do modismo dos manuais de conduta, as redações dos grandes jornais já haviam consolidado suas doutrinas particulares a respeito dos procedimentos diante do noticiário sobre mortes voluntárias.
Quando este observador chegou ao Jornal do Brasil, em janeiro de 1962, encontrou um postulado rigoroso: ‘Não publicamos tentativas de suicídio’. Fazia sentido: era imperioso salvar o quase-suicida, oferecer-lhe uma chance de reinserção na comunidade humana e no processo de viver e morrer naturalmente. Com a divulgação do seu intento, na condição de morto-vivo, seria impossível.
Esta solidariedade com o sobrevivente escapava do debate de certa forma estéril sobre o absurdo das ‘modas’, iniciado antes mesmo da Era da Comunicação de Massa, no início do Romantismo, quando se tentou barrar a epidemia de suicídios entre os jovens europeus provocada pelo primeiro best-seller da história – Die Leiden des junges Werthers (‘Os sofrimentos do jovem Werther’), de Johann Wolfgang von Goethe, publicado em 1774.
O postulado estava tão arraigado na redação do JB que, em meados dos 1960, quando o grande repórter Otávio Ribeiro (o famoso ‘Pena Branca’) subiu ao terraço de um edifício no bairro do Catete para convencer um bancário desempregado a não saltar, todos os jornalistas, editores e o próprio repórter autor da façanha conformaram-se com a decisão de publicar apenas uma discreta notícia em página interna, sem fotos e, as iniciais do infeliz protagonista. O fato não poderia ser omitido já que causara grande confusão no trânsito e o leitor não poderia ser privado desta informação. Foi arquivado o farto material que renderia uma primeira página sensacional.
Ódio à História
Do sublime suicídio ficcional de Werther à covardia do assassinato-suicídio praticado por Cho Seung-Hui na segunda-feira (16/4) transcorreram 233 anos. No intervalo, evaporou-se a nobreza do gesto extremo que atravessou a história da civilização ocidental, dos estóicos gregos aos neuróticos vienenses.
Na Segunda Guerra Mundial, o suicídio transformou-se em arma de guerra com os kamikazes japoneses. Hoje, os homens/mulheres-bomba são mais letais do que mísseis. Dapieve trata disso com muita acuidade e, obviamente, não poderia incluir o episódio da Politécnica da Virgínia. Mas o traço básico das obras sensíveis e verdadeiras é provocar continuações.
Morrer na contramão é uma inspirada e dolorida figura poética sugerida por Chico Buarque em Construção (que Dapieve, não menos inspirado, inclui como epígrafe). Mas a contramão do terrorismo moderno é outra, pretensamente política e rigorosamente desalmada.
A honra dos kamikazes exigia alvos militares (eram samurais, escolheram uma forma gloriosa de combater), mas a honra dos jihadistas e de outras facções fanáticas exige justamente o contrário – grandes aglomerações urbanas, preferencialmente de inocentes, para multiplicar a revolta e o ódio. Se a vida merece ou não merece ser vivida até os últimos momentos, como reflete Camus, é uma questão de livre-arbítrio. Mas o terrorista-suicida não admite dúvidas – quer companhia numa contramão que é apenas sua.
O mesmo fez Cho Seung-Hui: a sua contramão é ideológica, nada tem a ver com ele mesmo, é uma resposta aos outros. Juntou-se aos demais terroristas americanos dos últimos 15 anos que não sonham em tomar o poder, querem apenas ferir a Humanidade (o conjunto de seres humanos) e a humanidade (seu ideário). Odeiam a história, suas heranças e controvérsias. Querem recomeçar da estaca zero.
Caminho tortuoso
Embora os escritos de Cho não contenham referências racistas, há traços hitleristas tanto no seu perfil, nos desabafos como nas opções finais. Adolf também era um artista medíocre e delirante. Vendeu pouquíssimas aquarelas e falhou todas as vezes em que tentou ser aceito na Academia de Artes. Ambos preferiram expressar-se e impor-se através de outros meios: a contramão da violência. E quando verificaram que não servia, mataram-se.
A ‘farda’ de guerreiro moderno, tipo ninja, que Cho usou no material publicitário enviado à NBC, pouco antes de completar os assassinatos e se matar, é uma caricatura militar. O ‘artista’ incompreendido precisava do pedestal de combatente e herói. Era a sua forma de trombetear a sua desgraçada contramão.
Certamente não usou o traje nem as armas quando atravessou o campus depois da primeira fase da matança: chamaria a atenção, poderia ser preso. Mas antes de deformar o rosto e acabar literalmente, registrou a imagem do lutador devidamente uniformizado. Esta será a efígie com que entrará na galeria dos kamikazes sem nobreza.
O americano Alfred Alvarez publicou em 1971 um estudo sobre o suicídio, hoje clássico, ao qual intitulou The Savage God, Deus Selvagem, na verdade o anti-Deus. Contramão demoníaca sobre a qual todos os jornalistas – e não apenas aqueles que trabalham nas editorias de polícia ou de comportamento – deveriam debruçar-se.
Da contramão de Sócrates à de Cho Seung-Hui há um longo e tortuoso caminho que alguns chamam de história da civilização. Penoso, é verdade, mas de mão dupla.