Eric Hobsbawm, em seu livro autobiográfico Tempos interessantes, citando sua amiga, a filósofa Agnes Heller, lembra que a história ‘trata do que acontece visto de fora, e as memórias tratam do que acontece visto de dentro’. Esse livro de Miguel Armony – que não é um historiador, mas geoestatístico, hoje lecionando na UFRJ – é um depoimento, sentido e vivido, ‘por dentro’, a respeito de três anos cruciais da vida republicana brasileira. Se o depoimento passou despercebido pelo público em geral, devido não à falta de méritos do trabalho, mas principalmente aos crônicos problemas de distribuição enfrentados pelas nossas editoras, recebeu fartos elogios da crítica quando de seu lançamento. Agora, quando se registram os 40 anos do Movimento de 31 de Março, parece oportuno convidar o público-leitor a procurar esse livro. Os jovens universitários de quatro décadas atrás, e que eram de ‘esquerda’, encontrarão uma excelente ‘matéria de memória’ sobre si mesmos. E os jovens do presente terão oportunidade, ao tomar contato com esse tempo, de avaliar bem o contraste entre aquela época e os dias de hoje.
A década de 60 no século passado no Brasil foi, do ponto de vista político – mas não somente político!, – de tirar o fôlego. Nela o Brasil teve nove presidentes da República e, entre 31/8 e 30/10 de 1969, foi tutelado por uma junta militar. Por um breve período, entre 8/9/61 e 23/1/63, experimentou um regime parlamentarista de ocasião e o governo esteve nas mãos de quatro primeiros-ministros. Em 31 de março de 1964 um levante das forças armadas, pela primeira vez na nossa história, levou os militares diretamente ao poder, estabelecendo uma ditadura castrense que a bibliografia especializada denominou de ‘modelo tecnocrático-militar’. Em 13 de dezembro de 1968 houve o golpe dentro do golpe, e uma emenda constitucional instaurou, também pela primeira vez em nossa história, a pena de morte para crimes políticos.
Na década, foi dramática a cenografia por trás desses fatos. Estado de sítio, intervenção armada, greves, comícios, passeatas, quebra-quebras, confrontos e guerrilhas, prisões e torturas. É em um especial trecho desse período – nos anos de 62, 63 e 64 – que o livro de Miguel Armony se encaixa e se desenrola. Nesses três anos, o Brasil reafirmou o poder conservador de suas elites, justamente porque esteve à beira de promover profundas mudanças na sua estrutura de poder.
Época marcada
Estudante de Física na FNFi da Universidade do Brasil (atual UFRJ) em 1962, o autor era um jovem protagonista engajado. Participante ativo, e sequioso por novos tempos, buscava na ação política os meios para transformar seus sonhos em realidade. De origem judaica, esteve em Israel, onde residiu e estudou por seis anos. Sentiu-se um ‘estrangeiro’ quando ingressou naquela instituição de ensino. Via com perplexidade a liderança de Jânio Quadros, posicionava-se contra Carlos Lacerda, o derrubador de presidentes, era a favor de João Goulart. Em linhas gerais, como se diria depois, podia ser considerado um ‘progressista’. Estava preparado, portanto, subjetivamente, para ser ‘recrutado’ pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB). Seduzido pelas propostas do ‘Partidão’, logo com elas se desencantou, e o seu livro em grande parte é o relato das suas desilusões com a ‘juventude comunista’.
Quando a liderança de Leonel Brizola despontou, e logo depois se afirmou, aderiu às suas propostas. Nelas identificou propósitos sinceros de mudança. E, quando veio o golpe, pensou em se juntar à resistência armada, integrante que era do chamado ‘grupo dos onze’, organizado (sic) pelo então deputado federal pelo antigo Estado da Guanabara.
O relato de Armony não se restringe apenas aos aspectos políticos daquela época. Homem dotado de uma autêntica sinceridade, seu relato tem um inequívoco tom confessional. Seu depoimento é um convite para uma visita ao ‘modo de ser’ dos jovens na primeira metade dos anos 60. Nesses tempos os jovens ‘de esquerda’ precisavam citar Marx e Engels, admirar Mao Tse Tung e ver os filmes de Eisenstein, liam Sartre e Camus. Mas, não podendo escapar ao espírito do tempo, eram também fãs de Marlon Brando e James Dean, Brigitte Bardot e Jeanne Moreau. E quando não se havia ainda inventado as ‘patrulhas ideológicas’, gostavam de chiclete de bola e coca-cola, até mesmo para ridicularizá-los em suas músicas. É um tempo em que as moças começam a exigir a liberdade sexual, mas não usavam biquínis, punham ligas, usavam anáguas e seus sutiãs não eram transparentes. As roupas dos rapazes eram ‘cinza’ (vermelho ou lilás nem pensar!) e as suas cuecas, invariavelmente, do tipo ‘samba-canção’.
No entanto, elas e eles, à esquerda, queriam ‘botar pra quebrar’: o abaixo as falsas ‘convenções burguesas’ era um must! O Movimento de 1964 desfechou um rude golpe político nas instituições brasileiras. Mas ele foi também uma forte reação conservadora, no plano sociocultural, ao processo de profundas mudanças comportamentais que estavam em marcha. E isso não foi, ainda, devidamente analisado.
O livro de Miguel Armony – bem-escrito, rico em detalhes, com preciosas informações – é importante por muitos motivos. Mas um deles é o mais significativo. Registrando a lacuna na bibliografia sobre o assunto, resolveu chamar a si a tarefa de dar seu depoimento sobre um jovem em uma época marcada por grandes expectativas e definitivas mudanças num dos centros acadêmicos mais importantes do Brasil.
Cumpriu a missão. Sobejamente.
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Chefe do Departamento de Ciência Política e coordenador-executivo do Núcleo de Estudos Estratégicos (NEST) da Universidade Federal Fluminense (UFF)