O busto do escritor está atrás, num dos pequenos gramados da Praça Dom José Gaspar, quase escondido entre as árvores, quase invisível para desabrigados e transeuntes, com uma pichação indecifrável na lateral da base de pedra – e de costas para a torre art déco de 22 andares da biblioteca que leva seu nome, na esquina da Avenida São Luís com a Rua da Consolação, poucos metros acima da Ladeira da Memória. Mesmo assim, ele poderia sorrir. Erguida para conservar a memória cultural de São Paulo, a Biblioteca Mário de Andrade será reaberta na íntegra no aniversário da cidade, em 25 de janeiro, depois de passar décadas sofrendo ‘deterioração crônica’.
A expressão é da atual diretora, Maria Christina Barbosa de Almeida, no cargo desde 2009. Ela não está exagerando quando diz que a biblioteca estava ‘quase morta’, apesar de uma pequena reforma realizada em 1992, na gestão de Luiza Erundina (1989-1993). Nos anos seguintes, a instituição parou de adquirir títulos e, pior, não tinha nem sequer condições de manter bem seu acervo de mais de 320 mil livros, dos quais 51 mil classificados como raros. Foi só com o investimento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) de R$ 23 milhões (R$ 13 milhões para o prédio principal e R$ 10 milhões para o anexo, na Rua 7 de Abril), que a reforma pôde ser iniciada, em 2007.
A Biblioteca Circulante, que tem 42 mil livros para empréstimo e consulta de qualquer cidadão que faça um cadastro, já foi reinaugurada em 21 de julho; depois disso, foi visitada por mais de 83 mil usuários, que retiraram obras clássicas como Capitães de Areia, de Jorge Amado, e recentes como 1808, de Laurentino Gomes. O setor tem entrada pela Avenida São Luís, 235, mas também pode ser acessado por um corredor fechado a vidro que passa defronte da fachada – uma das mudanças feitas pela arquiteta Renata Semin, do escritório Piratininga. A sala de leitura, ainda mais quente do que se esperaria, ganhou um mezanino com estrutura de ferro e outras melhorias. As mesas e cadeiras passaram por restauro. Dali se vê outra estátua, a de Camões, olhando os carros que descem a Consolação.
Acervo
A reabertura da torre daqui a menos de um mês é ainda mais aguardada porque envolve a recuperação do principal acervo de livros da cidade, cuja história começa em 1925, quando foi criada a Biblioteca Municipal. Eram 15 mil volumes em um casarão na Rua 7 de Abril. Dez anos depois, com a chegada de Mário de Andrade (1893-1945), já o consagrado autor de Pauliceia Desvairada e Macunaíma, a coisa acelerou. Acervos foram adquiridos, como o do bibliófilo Félix Pacheco, e em 1939 houve a fusão com a biblioteca estadual, levando o volume para mais de 100 mil exemplares. Foi então que surgiu o projeto de um novo prédio, capaz de abrigar até dez vezes mais livros, por iniciativa do sucessor de Mário na direção, Rubens Borba de Moraes.
Não sem algum ciúme do arquiteto mais presente nas obras públicas de São Paulo, Ramos de Azevedo, o projeto foi parar nas mãos de Jacques Pilon (1905-1962), um francês que passou a infância no Rio de Janeiro, estudou na Escola de Belas Artes de Paris e, formado no auge do movimento art déco, retornou ao Brasil para seguir carreira. A isso se deve o ar elegante, quase austero, do edifício, com inscrições na característica tipografia (uma delas, justamente a da biblioteca circulante, foi extinta na reforma anterior), e os interiores com madeiras e pilotis. Pilon criou as mesas e cadeiras, com um design que lembra o do artista John Graz, com quem trabalhou em um dos primeiros edifícios de Higienópolis.
Curiosamente, o projeto original previa duas torres, mas houve recursos para a construção de apenas uma. O prédio foi aberto oficialmente em 1942, e no ano seguinte a biblioteca passou a ter como diretor o escritor Sérgio Milliet (1898-1966), que exerceu o cargo até 1959, um ano antes de ela passar a ter o nome de Mário de Andrade. Nesse período, importantes doações foram feitas, a começar pela do precioso acervo particular do diretor; também o de um dos patrocinadores da Semana de 22, Paulo Prado, está aqui. Do crítico cultural de origem austríaca Otto Maria Carpeaux (1900-78), por exemplo, há exemplares com dedicatórias como a do poeta Carlos Drummond de Andrade e uma edição alemã de 1925 de O Processo, de Franz Kafka.
Como nunca antes ou depois, nos anos 40 a 60 ela entrou na circulação cultural paulistana: além dos livros, era local para palestras de intelectuais como Roger Bastide e Lourival Gomes Machado; acolheu pesquisadores acadêmicos como Fernando Henrique Cardoso, Bento Prado e Marilena Chauí; fez convênios com a Biblioteca de Paris e com a ONU; publicou revistas de ensaios (ainda publica uma, todo ano); transferiu para a Rua Maria Antônia a Biblioteca Monteiro Lobato (criada por Mário para reunir títulos infanto-juvenis); e até montou coleção com pinturas modernas – de artistas como Tarsila do Amaral, Portinari e Goeldi, entre outros, além dos álbuns da série Jazz de Matisse – transferida para a Pinacoteca do Estado.
A reforma não apenas reorganizou esse acervo e adaptou o prédio. Cerca de 250 mil exemplares passaram por desinfestação, num processo que utiliza nitrogênio para eliminar cupins e outros intrusos. Prevista para ser concluída no início de 2009, a obra atrasou porque, segundo a diretora, havia problemas sérios como a ausência de um cálculo de peso. Mas ainda há muito o que fazer. A conclusão da obra do anexo, onde ficarão os quase 3 milhões de periódicos do acervo (incluindo revistas ilustradas do século 19, principalmente francesas, e muitas publicações científicas), está prevista para julho – mas sem a passagem subterrânea que consta do projeto, e a diretora considera fundamental para os deslocamentos operacionais de um prédio a outro.
Projetos
Há também a expectativa da aprovação de uma verba de R$ 2 milhões do Ministério da Cultura para recuperar o miolo da biblioteca, não só sua casca: o restauro dos 200 livros mais importantes do acervo. Na sala das raridades, o responsável pelo setor, Rizio Bruno Sant’Ana, mostra obras capazes de abrir o apetite de qualquer rato de biblioteca. Os relatos de viajantes sobre o Brasil são muitos, como o de François Roger sobre a Bahia, de 1698, que traz um desenho de capivara na capa. Há cartas de jesuítas do século 16 como Manuel da Nóbrega e José de Anchieta e nove incunábulos (livros impressos até 1500), como a Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino. E também itens modernos, como a edição francesa das Flores do Mal, de Baudelaire, que pertenceu a um dos juízes que fizeram proibições ao livro por poemas ‘imorais’.
Tais iguarias literárias, porém, não podem ser vistas pelo grande público, a não ser aquelas poucas digitalizadas na íntegra. Ao vivo, não existe intenção de exibi-las, como se faz em bibliotecas famosas como as de Milão e Paris ou a Morgan, de Nova York, em proteções de vidro, para deleite visual dos visitantes. Com apenas 102 funcionários e 15 estagiários, dos quais 11 contratados recentemente, a biblioteca ainda não tem condições de oferecer esse tipo de serviço. Mas que tenha voltado a cuidar de seu acervo e a adquirir e emprestar títulos, certamente, é algo que a cidade vai comemorar.