Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Trabalho, muito trabalho e reconhecimento

É um tanto constrangedor quando o leitor se depara com um editorial que trata do próprio veículo que o publica. Soa cabotino, vaidoso até. Mais parece que o veículo quer ressaltar suas qualidades, esquecendo-se que isso nem sempre interessa às pessoas. Bem, este editorial corre esse risco. Mas de forma assumida.


É que o MONITOR DE MÍDIA tem algumas razões para celebrar e nossa equipe quer dividir com o leitor as boas notícias que circulam pela nossa redação. Não se trata de auto-elogio, mas de uma espécie de prestação de contas. O MONITOR sempre denuncia que a mídia quase não cobre a mídia, e seria incoerente não tornar público o cenário que vem se descortinando a nossa frente nos últimos tempos. Feitas as devidas ressalvas, vamos às boas novas.


No final de maio, a reportagem ‘Qual o futuro da Praia Brava?’ foi a vencedora do Expocom Sul 2009. O evento é a maior vitrine da região para trabalhos acadêmicos, e a reportagem multimídia competiu com produtos das mais importantes instituições de ensino e pesquisa do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. O leitor deve se lembrar que a mesma reportagem foi a segunda colocada no Prêmio Caixa-Unochapecó de Jornalismo Ambiental de 2008, o que já encheu de prestígio a nossa equipe. O reconhecimento dado agora fortalece ainda mais a nossa certeza de que não basta que um observatório como o MONITOR avalie a mídia local; é necessário também experimentar novas linguagens e formatos para contribuir para o aperfeiçoamento do jornalismo.


Para não negar sua vocação, o MONITOR inicia neste mês outras duas pesquisas, com financiamento recentemente aprovado: ‘A pauta local: transformação do conteúdo dos jornais regionais catarinenses em três décadas’ e ‘Jornalismo cultural no sul do Brasil: análise dos três principais jornais diários da região’. Esses estudos se conjugam com o trabalho cotidiano de analisar os meios de comunicação e oferecer ao público diagnósticos de mídia. Neste sentido, estamos prestes a completar 150 edições ininterruptas e oito anos de atuação do MONITOR DE MÍDIA. No próximo mês, para celebrar esses marcos, teremos novidades para o leitor. Mais uma vez, convidamos a ficar conosco nessa aventura de ler a mídia para ler melhor o mundo.


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O que há de popular nos semanários que carregam esse título


A principal função do jornalismo é informar. A questão é: informar a quem? Por muito tempo no Brasil, apenas as classes dominantes se viram retratadas pelos jornais e, portanto, sentia-se que somente elas faziam parte da sociedade. Esta exclusão abriu espaço para o surgimento de um novo segmento de imprensa, parte esta que resolveu pautar a vida do trabalhador simples, os fatos que ocorriam no seu bairro e atender as suas preferências quando o assunto era notícia. Este fenômeno é contextualizado por Luiz Beltrão (2001) da seguinte forma:




A comunicação jornalística é o instrumento básico para promover a interação social com vistas aos programas de desenvolvimento cultural e econômico em qualquer nacionalidade. No caso brasileiro, impõe-se a reunificação do pensamento e da ação das duas camadas distintas da população – as elites intelectuais e o poder, de um lado, sujeitos à influência dos meios convencionais de comunicação; a massa rural e o proletariado urbano, de outro, informando-se e expressando-se em linguagem diversa e através de agentes e veículos próprios (p.225).


Os primeiros jornais voltados às classes C e D que surgiram, possuíam uma linha editorial que ficou conhecida pela expressão ‘espreme que sai sangue’, termo que mais tarde se tornou título da obra de Danilo Angrimani (1995) nos estudos sobre o sensacionalismo. Esta caracterização se deu a partir do conteúdo extremamente sensacionalista e grotesco que compunha principalmente a editoria policial, que era nesta época, o grande destaque destes jornais. Periódicos como Última Hora (Rio de Janeiro, 1951-1964), Notícias Populares (São Paulo, 1963-2001) e o Diário do Litoral – Diarinho (Itajaí, 1980 – ainda em circulação) são exemplos que valorizam o sexo, utilizam linguagem chula e evidenciam a violência. A pecha de sensacionalista é sinônimo de jornalismo de baixa qualidade, como definem Seligman e Cozer (2009, p.5): ‘Não há exceção. Quando uma publicação jornalística é apontada como sensacionalista, a conotação é extremamente negativa. Não há outro significado usado de forma comum que não seja jornalismo de baixa qualidade’.


Em busca de qualidade


Apesar do sucesso considerável de alguns desses jornais, com o decorrer dos anos o seu público leitor foi se cansando e passou a dar preferência a conteúdos mais ligados ao entretenimento (televisão, fofocas e crenças populares). Esta mudança provocou um vazio no mercado, evidenciado pela decadência contínua na tiragem dos jornais (ANJ, 2006).


Esta lacuna fez surgir, mais tarde, um novo segmento que recuperou não só a tiragem, mas por consequência, o número de leitores no Brasil. Além disso, começou a valorizar a prestação de serviço em detrimento das páginas policiais. Este novo segmento denominado pela própria indústria de jornais como ‘os novos populares de qualidade’, é caracterizado por Márcia Franz Amaral (2006 b):




Na imprensa popular, um fato terá mais probabilidade de ser noticiado se: possuir capacidade de entretenimento, for próximo geográfica e culturalmente do leitor, puder ser simplificado, puder ser narrado dramaticamente, tiver identificação dos personagens com os leitores (personalização) ou se for útil. ‘ (p.4)


A autora destaca ainda outras peculiaridades desses jornais: a baixa paginação, o preço acessível, o fato de serem vendidos em bancas e os textos curtos que costumam veicular. A presença desses elementos tem um objetivo bastante claro, que é o de atingir um público de baixa escolaridade e sem tempo disponível para leitura. A publicidade de produtos baratos também denota que o seu alvo é um público de menor poder aquisitivo.


Os novos populares de qualidade, assim como os seus antecessores, ainda perseguem a proximidade com os seus leitores. O que mudou foram as estratégias utilizadas para se alcançar este objetivo. Hoje, ao contrário do que era feito pelos jornais ditos popularescos, ao invés de colocar como manchete uma matéria que envolva sexo, inserem outra que trate sobre o aumento da cesta básica na cidade em que o jornal circula.


Os jornais intitulados populares baseiam-se na valorização do cotidiano, da fruição individual, do sentimento e da subjetividade. Os assuntos públicos são muitas vezes ignorados; o mundo é percebido de maneira personalizada e os fatos são singularizados ao extremo. O enfoque sobre grandes temas recai sobre o ângulo subjetivo e pessoal. O público leitor, distante das esferas de poder, prefere ver sua cotidianidade impressa no jornal, e a informação é sinônimo de sensação e da versão de diferentes realidades individuais em forma de espetáculo (BELTRÃO, 2001 p. 57).


O estilo pragmático que esses jornais empregam as suas matérias é outra forma de fidelizar o seu público, ao se tornarem imprescindíveis no dia-a-dia dos seus leitores. Isto ocorre, por exemplo, quando veiculam matérias que orientam as pessoas sobre como enfrentar a burocracia, conseguir emprego ou exigir melhores serviços públicos.


Periódicos populares no Vale do Itajaí


Esta edição do MONITOR DE MÍDIA verificou se dois novos semanários de Itajaí e Camboriú, os jornais Correio Popular de Itajaí e Linha Popular, pertencem ao segmento como seus títulos afirmam. Para isso, foram analisados três exemplares de cada jornal, nos quais se averiguou a porcentagem de conteúdo local, de prestação de serviço e de cada editoria, com atenção especial em relação à editoria geral (que tem presença majoritária nos ‘novos populares de qualidade’). Também foi observado se havia presença de apelo sensacionalista nas matérias, caracterizado também pelo uso de vocativos, o sexo como temática e presença de conteúdo de entretenimento junto à informação. O estudo compreendeu as edições 9, 10 e 11 do Correio Popular de Itajaí (referente a 16 de abril a 14 de maio) e 10, 11 e 12 do Linha Popular (referentes a 1o a 15 de maio). Vale salientar que a escolha dos exemplares foi feita de maneira aleatória.


Identidade alternativa


O semanário Correio Popular de Itajaí apresentou, em todas as edições analisadas, predominância da foto referente à pessoa que ilustra a manchete e é, em todos os casos, quem concedeu a entrevista principal ao jornal. Apenas na edição de número nove, não foi possível identificar o entrevistado, muito menos o assunto referente a ele, já que não houve legenda para a foto e a manchete não deixou claro quem era o entrevistado, nem mesmo o assunto abordado. Somente na página seis podemos conhecer o entrevistado, professor Paulo Cruz, da Univali. Além disso, as capas analisadas trouxeram duas chamadas na parte superior, ambas com pequenas fotos relacionadas ao tema destacado. Em todas as publicações houve uma inserção a favor da Campanha em Defesa da Obrigatoriedade do Diploma em Jornalismo.


Com relação ao conteúdo interno do jornal, em todas as edições houve predominância de conteúdo local, assim como na capa. A prestação de serviço esteve presente, mas de modo sutil: menos de 10% em cada jornal, se considerarmos que uma das características dos jornais populares é a prestação de serviço ao público, este número é relativamente baixo.


A página três de todas as edições traz uma seção intitulada ‘Semana’. Para cada dia, há um título, uma chamada sobre o destaque daquela data. Apesar da diagramação lembrar uma coluna jornalística, não pode ser considerada desta forma, já que não há informações suficientes, apenas os títulos. Por exemplo, na edição de 08 a 14 de maio, há uma dessas chamadas: ‘Morre dramaturgo Augusto Boal, criador do Teatro do Oprimido’. Na frase não há especificação da naturalidade do dramaturgo (ele é catarinense? brasileiro?) e nem mesmo o que é o teatro citado. Fica comprovado que não é uma nota jornalística, já que não há informações suficientes, obrigando o leitor a buscá-las em outros meios de comunicação.


O mesmo, ocorre nas outras páginas (03,04,08 e 10) do semanário, que trazem essa espécie de ‘chamada’, localizada na parte superior da página (acima da margem da folha do jornal), o que também confunde o leitor, já que não há informações suficientes, pois não é possível encontrar em nenhum local do exemplar, dados sobre o assunto citado. Resta-nos apenas questionar qual foi o critério escolhido para inserir esta ‘chamada’ no jornal.


Os textos geralmente são curtos, com exceção da entrevista que ocupa duas páginas inteiras. A linguagem do jornal é de fácil compreensão, com exceção de alguns artigos de opinião que utilizam uma linguagem mais rebuscada (como, por exemplo, na edição número 10, a palavra ‘frontispício’ apareceu na coluna ‘Paixão pelos livros’). Se considerarmos que o jornal tem intenção de ser popular, haverá dúvidas quando o leitor se deparar com estas palavras. Alguns erros de português também estiveram presentes nas edições, sendo o mais grave deles encontrado na manchete da edição do dia 08 a 14 de maio: ‘Irmã Valci faz uma apelo pelas crianças do Imaruí’.


Com relação às editorias presentes no Correio Popular de Itajaí, houve um equilíbrio entre Geral, Opinião e Política, sendo a edição 10 uma exceção, pois apresentou mais assuntos relacionados ao esporte (20,83%) do que política (16,66%), tendo Opinião e Geral na mesma quantidade de inserções (29,16%) [ver Tabela_1.pdf].


Nessas editorias, não houve presença de reportagens de cunho policial, nem mesmo menção de possíveis ocorrências durante as semanas analisadas. A cultura popular esteve pouco presente nas três edições, porém teve maior destaque na publicação de 16 a 22 de abril, apresentando 15,38% de presença [verTabela_2.pdf].


De modo geral, não foi possível classificar o jornal como popular, já que a grande maioria do seu conteúdo não trouxe as principais características deste segmento: presença significativa de prestação de serviço e entretenimento. Também não foram encontradas reportagens policiais no jornal, nem mesmo características de apelo sensacionalista, como vocativos.


Apesar de trabalhar com matérias próximas geograficamente e culturalmente do leitor e sempre apresentar como destaque um personagem de Itajaí, o semanário peca na forma como distribui os assuntos no jornal e no modo como aborda algumas matérias. O principal pecado está nos critérios de noticiabilidade usados pelo periódico. No lugar da pauta de interesse público, parece haver um jornalismo de oposição, alinhado com interesses político-partidários.


É positiva a abertura de mercado que representa a edição do Correio Popular de Itajaí, porém ele ainda está distante de se tornar uma publicação popular de qualidade, muito menos de referência – são considerados jornais de referência aqueles que possuem linha editorial pautada principalmente na relevância social e interesse público, priorizando, portanto, as editorias de política e economia.


No caminho dos ‘novos populares’


O outro periódico analisado, jornal Linha Popular, apresentou matérias curtas à exceção da reportagem publicada na editoria ‘Especial’, que apesar de possuir tamanho maior, é desmembrada em várias partes, de forma a proporcionar uma leitura de maior fluidez. Com linguagem simples, o conteúdo disponibilizado pelo semanário pode ser compreendido por todas as camadas sociais e por ampla faixa etária.


No que diz respeito às temáticas e angulações das reportagens, não se pode afirmar que elas são apreciadas por todas as camadas sociais, uma vez que o jornal apostou claramente na prestação de serviço e na editoria geral – as classes A e B, por exemplo, preferem notícias sobre política e economia (AMARAL, 2006). Isso pode ser comprovado na edição de n°12, na qual 62,29% [ver Tabela_3.pdf] do conteúdo interno correspondeu à prestação de serviço e 61,29% à editoria geral [ver Tabela_4.pdf].


A editoria de polícia que foi por muito tempo o carro chefe dos jornais populares e ficou conhecida pelo sensacionalismo exacerbado, teve pouco espaço dentro do Linha Popular. A edição de n°12 apresentou apenas 6,45% de conteúdo policial em oposição a 12,90% de conteúdo esportivo [ver Tabela_4.pdf]. Esses números demonstram que o jornal, a exemplo do que vêm fazendo os novos Populares de Qualidade, está investindo em novas estratégias de aproximação com o público. Vale ressaltar que as matérias publicadas na editoria de Polícia são bastante descritivas e não exploram de forma sensacionalista o conteúdo divulgado.


O Linha Popular apresentou mais uma característica dos novos Populares de Qualidade na reportagem ‘Sem ter onde morar’ da edição n° 11, que expôs o problema de moradia enfrentado pela família de Dona Maria Onorato Castilho. O fato de o jornal agregar excessiva dramaticidade e se deter ao problema de apenas uma família, isto é, particularizar o fato ao extremo, denota aproximação do seu leitor. Por outro lado, diminui excessivamente a carga informacional que é a base do jornalismo. Neste caso, faltou ainda, ouvir as fontes oficiais, demonstrar que aquele exemplo se repete em qual intensidade com o resto da população e investigar se o município tem algum programa voltado para habitação. Se o governo não desenvolve, o jornal perdeu uma ótima oportunidade de denúncia.


Um dado que merece destaque por parte dessa análise é que as três capas dos exemplares considerados apresentaram 100% de conteúdo local. Além disso, como pode ser verificado na tabela 3, o jornal ofereceu percentuais significativos de material local também internamente. Foi assim na edição n°10, que proporcionou 78,78% de conteúdo local em oposição a apenas 9,09% de conteúdo sem classificação – que não se enquadrara na classificação de local e nem de prestação de serviço [ver Tabela_5.pdf].


Apesar de esse estudo compreender apenas três edições, o material divulgado pelo Linha Popular deixa claro que o jornal está em busca de qualidade e em muitos quesitos se assemelha aos Populares de Qualidade. A ausência de vocativos, do sexo como temática e o pequeno espaço dedicado à editoria de Polícia são decisões acertadas.


Populares de Qualidade ou qualidade nos populares?


Os dois jornais analisados demonstraram por meio de suas linhas editoriais, o desejo de se aproximar dos seus leitores ao apresentar majoritariamente conteúdos locais em todas as edições avaliadas e distanciamento em relação ao sensacionalismo. Entretanto, os semanários apresentaram características distintas quanto à prestação de serviço, que pode ser encontrada em volume maior no Linha Popular. Em contraposição, o Correio Popular dedicou mais espaço à cultura local, que no jornal de Camboriú praticamente inexistiu.


A editoria de Polícia por sua vez, apareceu timidamente no Linha Popular, contudo, no jornal de Itajaí sequer foi veiculada. Esta ausência somada a chamadas de notícias que não se converteram em matérias, ao grande número de inserções de conteúdos sobre política, ao uso de palavras rebuscadas e à inserção de artigos como o do escritor José Saramago (compilado da internet), distanciam o jornal do segmento popular e sinalizam uma postura mais elitista do mesmo.


Por outro lado, o fato de o Linha Popular apresentar várias características dos jornais Populares de Qualidade não o exime de críticas. Prova disso é que foram publicadas várias fotos sem créditos e algumas informações divulgadas em colunas apareceram também no jornal, descaracterizando a função da mesma que é dar a informação em primeiro lugar. Isso ocorreu na edição de nº11 na ‘Primeira Coluna’, ao ser veiculada a nota ‘Responsabilidade de quem?’ e na mesma página de editoria Geral a matéria ‘Novos pontos de ônibus em Camboriú’. Ambas tratavam da inserção de mais pontos de ônibus na cidade. Erros como esses, no entanto, denotam descuido de uma equipe inexperiente.


A ausência de entretenimento no conteúdo publicado pelo Linha Popular mostra que apesar de o jornal se aproximar dos novos Populares de Qualidade em vários aspectos, ainda precisa trilhar um caminho razoável para pertencer a esse time.


Se a proximidade com o público ainda permanece como um fator imprescindível aos jornais populares, o que esperamos é que a identidade jornalística também seja mantida nos mesmos, independente de o jornal ser oferecido às classes C e D ou para a elite. Conforme ressalta Amaral (2006 b, p.14), ‘um jornalismo Popular de Qualidade só será viável se souber construir os seus contornos sem se subordinar a determinados interesses mercadológicos ou políticos dominantes’.


Referências


AMARAL, Márcia F. Sensacionalismo, um conceito errante. XIV Encontro da Compós, na Universidade Federal Fluminense (UFF) em Niterói, Rio de Janeiro ocorrido de 01 a 04 de junho de 2005.


___. Jornalismo Popular. São Paulo: Contexto, 2006a.


___. Imprensa Popular: sinônimo de jornalismo popular?. Trabalho apresentado no XXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – UnB – 6 a 9 de setembro de 2006b.


ANGRIMANI, Danilo. Espreme que sai sangue. São Paulo. Summus, 1995.


ANJ, Jornal ANJ, novembro de 2006. Disponível em http://www.anj.org.br. Acesso em 12 de março de 2008.


BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação: um estudo dos agentes e dos meios populares de informação de fatos e expressão de idéias. Porto Alegre: Edipucrs, 2001.


SELIGMAN, Laura; COZER, Káris R.B. Jornais Populares de qualidade: ética e sensacionalismo em um novo padrão do jornalismo de interior catarinense. Disponível em http://www.bocc.ubi.pt/pag/bocc-jornais-seligman.pdf, 2009.


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Um show às avessas


Gabriela Forlin e Yana Lima


Naquele sábado, nossa programação soava um tanto excêntrica. Primeiro: iríamos ao show de Roberto Carlos, artista que, apesar de ícone, não está entre os nossos preferidos. Segundo: o espetáculo era grátis e, literalmente, no meio de uma das principais vias de Florianópolis. Terceiro: não iríamos como expectadoras ou fãs, mas como repórteres. O show do dia 19 de maio foi o quinto da turnê em comemoração aos 50 anos de carreira do cantor e o único com entrada gratuita. Além de homenagear o Rei, a festa era também para celebrar os 30 anos do Grupo RBS em Santa Catarina.


Roberto Carlos é o cantor brasileiro que mais vendeu discos no mundo: foram cem milhões de álbuns comercializados no Brasil e em outros 23 países. O capixaba de Cachoeiro do Itapemirim é o único brasileiro a alcançar estes números: são 56 álbuns lançados, oito compactos, 10 filmes e cinco DVDs. São cerca de 500 composições lembradas e repetidas por um número impreciso de fãs. Nem mesmo os Beatles venderam tantos discos na América Latina. É por isso que mesmo quem não gosta, acaba admitindo que o título de Rei é dele. Rei do iê iê iê, rei da Jovem Guarda, rei do romantismo, rei das cinquentonas, enfim, rei da música brasileira.


Mas apesar de majestade, Roberto Carlos não foi o centro das atenções desta cobertura. Naquele sábado, fomos atrás de outras estrelas que fizeram o espetáculo possível. Cerca de 800 pessoas entre seguranças, policiais, médicos, enfermeiros, comerciantes, faxineiros, garçons, recepcionistas, motoristas e técnicos trabalharam pesado para que tudo saísse em sincronia. Acreditem, eles fizeram toda a diferença naquela noite na Via Expressa Sul.


À espera do Rei


Chegamos a Florianópolis às 15h, o dia era ensolarado, céu limpo, e o vento gelado prometia uma noite um tanto fria para o outono. Mesmo assim, já era possível ver um aglomerado de fãs reservando o melhor lugar possível para ver o Rei. Havia de tudo, gente com violão, cadeiras de praia, esteiras, isopor com comes e bebes e cobertores; qualquer coisa que tornasse a espera mais confortável. Também pudera, alguns estavam lá desde as 9 horas.


A organização foi pontual, exatamente às 19h55min, os mestres de cerimônia Angélica e Luciano Huck subiram ao palco. Os globais falaram sobre comunicação e televisão e cantaram parabéns para a RBS junto aos demais apresentadores da retransmissora da Rede Globo. A história de Santa Catarina e o trabalho da RBS foram ilustrados pelo documentário de Carlos Nader, exibido durante essa meia hora que antecedeu a principal atração. O aquecimento serviu para deixar os fãs ainda ansiosos.


O show do Rei e sua orquestra começou às 20h30min e durou pouco mais de hora e meia. Foram 27 canções que embalaram o público.


Os fãs ignoraram o frio de 10º C para poder ver de perto (ou nem tanto) o espetáculo. Observe as fotos abaixo, o primeiro bloco de cadeiras era destinado aos convidados VIPs da RBS; o segundo era para os funcionários do grupo. A grade que separava o público deste espaço reservado estava a aproximadamente 100 metros do palco.


Estrelas dos bastidores


Assim como nossa reportagem, muitos fãs chegaram lá bem mais cedo e puderam acompanhar a movimentação em torno do palco e em volta do espaço restrito. Toda aquela gente com uniforme, crachás e walk-talkies estava trabalhando desde muito antes do show. As luzes, o som, a transmissão, a estrutura, tudo foi resultado do trabalho de várias equipes com diferentes funções. Mas esses detalhes às vezes passam despercebidos, porque estamos mesmo interessados em quem vai subir no palco.


Uma dessas pessoas que estava trabalhando há muito tempo no show do Rei em Florianópolis era Sérgio Korsakoff, empresário da Veritas. A companhia paulista foi a responsável pela organização e execução da produção técnica do evento. Isso quer dizer: analisar o local do show, ver se o vento é bom para propagação do som e para o retorno acústico, pensar no posicionamento do palco, montá-lo e mais um monte de detalhes exigidos pela RBS e pelo pop star da noite (e olha que esse já tem fama de ser mais do que exigente). ‘Prestamos atenção máxima nos detalhes de acesso, no nivelamento do palco, no isolamento do local, enfim, coisas que todo megastar exige’, diz Sérgio Korsakoff. Quase 500 pessoas trabalharam direta e indiretamente nessa etapa desde janeiro.


Para dar uma mãozinha no trabalho de montagem da Veritas, a empresa Ferrão Instalações e Manutenção Elétrica veio de Porto Alegre e trouxe dez homens para fazer o aterramento, a caixa d´agua, as montagens das tendas e dos contêineres para os grupos prestadores de serviços e as demais instalações. Já parou para pensar na trabalheira? Walter Ferrão Severo, responsável pela empresa, disse que a equipe estava trabalhando desde segunda-feira daquela semana (11/05) e eram quase doze horas de serviço por dia. No domingo após o show, a equipe começou a desmontagem para que na segunda-feira tudo estivesse prontinho para a volta a Porto Alegre.


Para que o pessoal do fundão pudesse ver pelo menos um pouquinho o Rei, junto ao palco havia dois telões acoplados. Já para os VIPs, eram telas de plasma e LCD que transmitiam as imagens do público lá atrás e os documentários que foram passados antes do show. Isso foi trabalho para uma outra empresa, a Infoview. William Bueno, um dos técnicos de audiovisual, explicava o que eles faziam por ali enquanto guardava algumas ferramentas. ‘Fazemos toda a parte de informática, de comunicação do show e transmissão do evento. Nós mesmos trouxemos as telas e os computadores’.


A área reservada para os convidados contava com um grupo de apoio. Os casais de camiseta laranja ficaram espalhados por todos os cantos do lugar, recepcionando quem chegava, indicando seus lugares ou simplesmente observando para ver se tudo corria bem por ali. Rodrigo Basílio, professor de educação física e Janaína Livramento, secretária, estavam trabalhando com outros 19 casais no grupo de apoio da Toledo Comunicação e Marketing. Foi um pouco mais de sete horas de serviço para esses 40 jovens recepcionistas que trabalharam no espaço abastecido com aperitivos e espumante. Fã declarado, Rodrigo estava muito feliz de estar em um local privilegiado. ‘Estou trabalhando no que gosto, com uma visão ótima do show e o melhor, estão me pagando por isso’. Janaína também é fã e estava contente de ver o rei tão de perto.


Outra equipe estava por ali, mas essa não cuidava de técnica, de recepção, nada disso. Os grandalhões de preto ficavam nos lugares mais estratégicos do evento, cuidando das entradas. Eram oitenta seguranças da empresa CR Vigilância e dentre eles, conversamos com a única mulher da equipe. Ana Maria Torres estava cuidando da entrada do palco e tinha começado a trabalhar ao meio-dia. O turno era de doze horas e, desde o dia anterior, os seguranças já estavam revezando. Ana Maria contou que gosta do serviço, mas não gosta muito da estrela da noite. Pois é, ela estava ali só pelo trabalho mesmo. ‘Vou gostar de trabalhar até a hora que ele começar a cantar. Se não fosse o trabalho, não viria ao show’ confessa a segurança.


Do outro lado da grade, fora da área dos VIPs, tinha mais gente trabalhando. Era venda de binóculo, pipoca, fitinha de amarrar na cabeça, água, cerveja e até camarote. O primeiro vendedor ambulante com quem conversamos foi Gilmar Livino de Oliveira, vendedor de binóculos e fitinhas com o nome do Rei. O ambulante carioca acompanha a turnê desde o primeiro show que foi dia 19 de abril, em Cachoeiro do Itapemirim, no dia em que Roberto Carlos completou 68 anos, em sua cidade natal.


Na maioria das vezes, Gilmar viaja de ônibus para ir trabalhar nas festas, mas dessa vez ele dividiu a gasolina com um amigo que também veio para vender. Os dois saíram de São Paulo e a viagem durou 11 horas. Naquele dia, as fitinhas eram de Roberto Carlos, mas Gilmar já vendeu também nos show de Bruno e Marrone, Zezé Di Camargo e Luciano, Elton John, Madonna e outros tantos. Ele fala com gosto do trabalho, mas também com pressa, já que enquanto perguntávamos Gilmar chamava a clientela pra não perder nenhuma venda. No final do show, ele disse conseguir ganhar entre 250 a 300 reais, ‘quando a fiscalização deixa a gente trabalhar’.


Mais perto do horário do show, ali por volta das 18 horas, já havia muita gente esperando pelo show e foi a hora que os vendedores fizeram ‘a festa’. A água, o refrigerante e a cerveja foram vendidos a 3 reais, mas quem pechinchava tirava por menos. Havia também o vendedor de camarote que custava 10 reais e tinham cores variadas: laranja, roxo e preto. O vendedor de banquinhos, Henrique Silva, andava no meio da multidão anunciando sua mercadoria que prometia ajudar o pessoal a ver um pouquinho melhor o show, talvez uns 50 centímetros mais alto. Henrique não era o único que trabalhava no ramo dos camarotes.


Voltando para o lado de dentro da área VIP, já durante o show, mais gente trabalhava. Era o pessoal da limpeza. A prestadora de serviços Apoi-se estava no ali para resolver esse problema. Uma média de 45 pessoas cuidou dos serviços de carregamento de equipamentos e materiais e limpeza. Desde terça-feira (12 de maio), a equipe coordenada por Daniel Barua trabalhou no local e continuou na labuta após o show. Daniel disse que no dia seguinte o trabalho recomeçaria às 9 horas da manhã. Ia ser a hora de limpar todo o resto e carregar a parafernália.


Andréa Maria Cordeiro era uma das mulheres que cuidavam do recolhimento do lixo. A história de como conseguiu esse serviço extra para a noite daquele sábado é longa, mas foi com a ajuda da irmã de uma amiga, que trabalhou com o dono da empresa num supermercado da cidade. Bom, não importa como conseguiu, o que valeu mesmo para Andréa foi poder ver o Rei tão de perto: ‘Gosto muito dele e nunca tive uma oportunidade assim tão maravilhosa’. Durante a conversa, as amigas de Andréa estavam ao redor, alvoroçadas com o show, mas com um bocado de trabalho para o resto da noite.


Policiamento e emergências


Para os pedestres: ônibus coletivo gratuito. Para os motoristas: alteração no sentido das ruas e um bocado de engarrafamento. Para os policiais: trabalho. O policiamento do evento foi uma operação conjunta entre 80 Policiais Civis e 600 Policiais Militares, e que contou ainda com um reforço do Batalhão de Operações Policiais Especiais, o BOPE.


Na Avenida Jorge Lacerda e na Via Expressa Sul, o trânsito mudou de sentido e a rota foi desviada para melhor fluência dos veículos, mesmo assim as filas foram inevitáveis. Segundo o tenente Marco Antônio Brito, desde o centro da ilha já existiam equipes trabalhando para a segurança e organização do evento.


O cadete Carlos Alberto Mafra Júnior explicou que o Morro da Costeira de Pirajubaé foi fechado pelo BOPE. ‘Trabalhamos com a prevenção de ocorrências. O morro foi bloqueado e caso alguém queira descer, vai ser revistado’. O tenente Brito explicou que em cada uma das quatro entradas do evento estavam trabalhando aproximadamente 20 policiais responsáveis por revistar as pessoas. Vale ressaltar que não fomos revistadas e nem vimos nenhuma pessoa que entrava passar pelo procedimento.


Por trás da farda, o tenente Brito confessa que não estaria ali se não tivesse sido convocado para o plantão. ‘Já tinha planos de passar este final de semana em Curitiba com a minha esposa. Se eu estivesse de folga, este seria o último lugar que eu estaria’. Em relação às ocorrências policiais, Brito afirma que não houve nenhuma. Contudo, um caso chamou atenção: um casal muito embriagado deixou o filho de 10 meses abandonado. Segundo Brito, o pai e a mãe do bebê não conseguiam nem se levantar, foram presos em flagrante e o bebê foi levado ao Conselho Tutelar.


Para atender as emergências, havia uma unidade móvel da Unimed formada por 40 plantonistas entre médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem e socorristas. Para os casos mais graves, havia duas ambulâncias para transportar os pacientes.


De acordo com Janine Cardozo, enfermeira responsável pela unidade móvel, eles estavam prontos para atender oito mil pessoas. Se fizermos um calculo rápido, cada profissional atenderia 200 pessoas, caso as oito mil precisassem de atendimento. Haja agilidade! A equipe estava preparada também para atender qualquer emergência. ‘Acredito que os casos mais comuns que podem acontecer nesse evento, levando em conta o público diferenciado, são casos de hipertensão e casos relacionados a doenças crônicas’ diz Janine.


No final do evento, por volta das 23h, os dados fornecidos por Janine contabilizavam ao todo 52 atendimentos. A maioria das ocorrências eram fãs emocionados demais e que precisaram dar uma checada na pressão sanguínea e nos batimentos cardíacos. Apenas um caso de suspeita de infarto foi identificado; o paciente foi transferido para o hospital mais próximo.


Além do horizonte


Enquanto esse povo todo trabalhava, outros saiam do emprego correndo para pegar um bom lugar e esperar por Roberto Carlos. Para muitas pessoas que estavam ali, aquilo não era só um show, mas a realização de um sonho. Foi a chance de ver o rei do iê iê iê, o cara boa pinta do anos 60 e que marcou gerações.


Aos 52 anos, Maria Catarina Demétrio veio sozinha de manhã cedo para esperar o Rei encostada à grade, o melhor lugar que o público conseguia chegar. Maria Catarina é mais uma das pessoas que aproveitaram o show de graça. A fã conta com carinho da época em que era ‘moça’ e brincava com bonecos de Roberto Carlos, Erasmo e Wanderléia. Mas só podia brincar quando a amiga emprestava, por que ela não podia comprar, assim como os discos do Rei, porque é tudo ‘muito caro’, disse ela. Maria Catarina, assim como outras que estavam ali, queria pegar uma das rosas lançadas pelo cantor ou tirar uma foto, mas só os convidados VIPs tiveram esse chance. Para ver Roberto Carlos de onde estava, Maria Catarina ou assistia no telão, ou ia precisar de um binóculo, como os vendidos por Gilmar Livino, o vendedor ambulante com o qual conversamos antes.


Ao contrário do que muita gente pensa, não era só a geração dos vovôs e vovós que estava por lá. Tinha gente que não sabia nem falar, mas estava presente acompanhando mães e pais fãs de carteirinha. Além de bebês, algumas crianças também faziam parte da platéia. Não dava para calcular as idades, mas Roberto Carlos atraiu universitários, idosos e até mesmo famílias inteiras para aquela noite. A enfermeira Noemi Goulart, que trabalhou de plantão na noite anterior, só conseguiu chegar em casa, descansar um pouquinho e sair com o pai para pegar mais um dos lugares disputados próximos a grade. O pai dela é o grande fã e a filha lembra que foi o disco do Rei, o primeiro que ele colocou quando comprou o tocador de cd do carro.


Para outros fãs, o bom tempo na noite do show era resultado de muita oração. As amigas Elisa Soares e Fátima Vieira estavam sentadas na área reservada para pessoas com necessidades especiais. O espaço ficava à direita da área dos convidados. Elas acham que só não estava chovendo porque todos os fãs, assim como elas, tinham rezado muito para àquela noite. Fizemos um vídeo com as duas e mais um casal que sentava próximo, Antônio Pádua e Nanci Azevedo Souza.


O pessoal soltou a voz para nossa câmera digital e mostraram um pouquinho do que era estar ali para ver Roberto Carlos.


Toda essa gente tinha muita coisa para contar e muitas dessas histórias de vida tiveram como trilha sonora as canções do Rei. Não nos arriscamos a conversar com ninguém durante o show, não queríamos interromper o momento tão esperado. Uma coisa é certa, mesmo para quem não era fã, o clima naquela noite foi de muitas emoções.

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