A tradução é, tradicionalmente, um exercício difícil e ardiloso. Requer, no mínimo, o conhecimento de dois idiomas – aquele do qual se traduz e aquele para o qual o texto é vertido. A fluência em mais línguas ajuda, evidentemente, pois muitas vezes é num vocábulo de outro idioma que se encontra a solução adequada; e, sem dúvida, o conhecimento de latim ajuda muito. Requer também alguma cultura geral, bastante leitura, bons dicionários e uma boa dose de curiosidade.
Estes requisitos nem sempre são preenchidos – nem na literatura, nem no cinema, nem no jornalismo, nem nos filmes de televisão. Há casos espantosos de ignorância, como o do famoso romance policial (‘traduzido’ do inglês) em que, durante uma partida de tênis, um dos protagonistas indaga qual é o placar e o outro responde: ‘Quinze para o amor!’ (fifteen love, ou seja, quinze a zero…).
Num capítulo recentemente exibido de um seriado de televisão americano, uma das personagens perguntava a outra qual era sua profissão. A legenda que acompanhava a resposta (I work with forensic law), além de ignorante, era pleonástica: ‘Trabalho com direito forense…’ (Um forensic doctor é um legista.)
O espanhol é um dos idiomas que mais sofrem com as traduções, especialmente por ser bastante similar ao português. Suceso é ‘sucesso’, naturalmente, e por supuesto quase sempre é ‘supostamente’. Mas os tradittori do francês não ficam atrás. Um texto que relatava o sofrimento de um combatente basco, preso e torturado, dizia que ‘il s’est fait sauter la cervelle dans sa cellule‘ (deu um tiro na cabeça), o que foi curiosamente ‘traduzido’ para ‘ele pulou na cela com uma banana de dinamite’.
Falta de idéias
Hoje, entretanto, o assunto em pauta é um livro. Livro editado por um dos maiores jornais do país, a Folha de S.Paulo, incluído numa série de obras reunidas na ‘Biblioteca Folha’: Nosso homem em Havana, de Graham Greene. Na folha de rosto consta, em corpo 12, itálico, o nome do tradutor que perpetrou o trabalho. Inicialmente, o leitor é levado a pensar que se trata de uma tradução feita em Portugal, pois inúmeras palavras são traduzidas para um português, digamos, fora de moda, quase arcaico. Avião, por exemplo, é aeroplano. Mas não é o caso. A tradução pretende ser feita para o português falado e escrito no Brasil, mesmo.
Assim, à página 46, temos, por exemplo: ‘Um homem achava-se sentado na guia da calçada, exibindo, preso à camisa, como um convicto, um único número’ [este os demais grifos são meus]. Tranqüilamente, o convict (condenado, presidiário) virou ‘convicto’.
Mais adiante, o nosso herói conversa com sua assessora sobre medidas de segurança a serem adotadas em caso de perigo. E pergunta-lhe o que deveria ser feito em determinada situação. Ela não hesita: ‘Dir-lhe-ia que enviasse uma mensagem para Londres, informando que havíamos sido descobertos e que iríamos agir subterraneamente.’
Go underground (passar à clandestinidade) transforma-se alegremente em uma atividade que envolve escavação, assim como, quem sabe, poderia ter sido ‘iríamos de metrô’, já que o metrô londrino é conhecido como underground.
Jacket é, evidentemente, ‘jaqueta’, em hipótese alguma seria ‘paletó’. Durante uma conversa entre o nosso homem e um cidadão que, como ele, vende aspiradores de pó, este revela que sua empresa tem um novo modelo, revolucionário. Ao que seu interlocutor exclama: ‘Really?‘, o que se poderia traduzir por ‘É mesmo?’. Adivinhe se não é ‘Realmente?’…
Alguma páginas depois, deparamos com: ‘Esse negócio de microfotografia é uma idéia hábil.’ Uma ingenious idea (idéia engenhosa, ou inteligente) transforma-se num teste de coordenação motora.
Ipsis litteris
Nosso homem tem um problema na perna, o que o leva a mancar, ou coxear. Explicação: ‘Ignoravam-no como a gente ignora a presença de um homem aleijado. Talvez não fosse devido ao fato de ele claudicar.’ Duas páginas adiante, ele explica que o dinheiro está curto. ‘Não creio que possa oferecer-lhe um drinque – disse ele. Estamos numa época de temperança‘.
O congresso sindical que anualmente ocorre na Inglaterra é o ‘Congresso das Trade-Union’, com hífen e tudo. Na penúltima página do livro do pobre Greene, o nosso herói acaba declarando seu amor pela fiel assessora, a qual pondera, entretanto, que isso poderá não dar certo. Ele lasca: ‘Tem de dar. Não posso amá-la como um tráfego numa só direção‘. Que beleza!
Para terminar, um curioso relato que me foi transmitido, ipsis litteris, por uma competentíssima tradutora:
‘Carol Gilligan é autora de uma teoria do desenvolvimento moral em crianças. A técnica de pesquisa usada, seguindo os passos de seu mestre Kohlberg, é a de propor a crianças situações-dilema imaginárias (a análise das opções e explicações infantis revela os valores em que se apóia sua maior ou menor autonomia moral). Num livro publicado pela Rosa dos Tempos (acho que de 1991), relata-se uma dessas situações-dilema meio clichê: na escola, um aluno comete uma falta grave e, se não se apresentar, a classe inteira será punida; o culpado não se apresenta e a questão que se coloca é ‘Você sabe quem foi? Você delataria o colega?’ Mas aqui a história prossegue. O leitor brasileiro é em seguida informado de que ‘o principal foi dito’ e, perplexo, não consegue entender quem disse o quê, nem mesmo lendo mais vezes aquela frase. O tradutor foi execrado em mais de uma resenha e morreu pouco depois, sem saber que o culpado era ele: ‘The principal was told’ quer dizer que alguém contou para o diretor da escola’.
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Jornalista e tradutor