A divulgação da correspondência eletrônica em que dois ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) aparecem trocando impressões sobre seus votos não é apenas anticonstitucional, como definiu o ministro da Defesa, Nélson Jobim. Vai além. É muito mais que um procedimento ‘ilegal e chocante’, como afirmou Cezar Brito, presidente da OAB. Revela a natureza do episódio que mobilizou a opinião pública entre 2005 e 2006 e, por tabela, desnuda o jornalismo como prática social autoritária.
O julgamento que decidirá se aceita ou não a denúncia do procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, contra 40 acusados de envolvimento com o nunca comprovado esquema do ‘mensalão’, tem, como ponto nevrálgico, a legitimação da narrativa jornalística construída em oficinas de poucas famílias.
Bem mais que as 14 mil páginas resultantes de investigação do Ministério Público e da Polícia Federal, estão em xeque a imprensa e seu poder de agenda. Voltam à ribalta os arrazoados de seus Torquemadas, repletos de incongruências, adjetivações fáceis e contorcionismos de estilo. Ressurge uma sucessão de relatos que nunca comportaram o princípio do contraditório. Em suma, o que os ministros da mais alta Corte do país têm em mãos é, acima de tudo, produto de um jornalismo de ilações e invenções, obra de manipulação contextual e de acusação sem apuração. Uma farsa que espera legitimação jurídica. Ou melhor, uma força que pretende legislar, submetendo o Judiciário aos mesmos constrangimentos impostos ao Executivo e ao Legislativo.
Furor acusatório
Simplificação grosseira que dispensa provas concretas, o ‘mensalão’ é axioma caro ao Partido Mídia. Como instância que tem por objetivo se sobrepor ao demais poderes, nada espera do STF que não seja a homologação de suas teses. Precisa de apoio logístico para prosseguir o trabalho, até agora sem sucesso, de erosão simbólica do governo Lula. Nem que para isso leve de roldão instituições caras ao Estado Democrático de Direito.
Lembremos que a violação da privacidade dos magistrados não deve ser vista como ‘um excesso’. Longe disso. É o desdobramento lógico de uma prática jornalística que, entre outras coisas, divulga, ao arrepio da lei, informações de inquérito sob segredo de justiça. Ou, como escreveu recentemente Ali Kamel, justificando o comportamento açodado da TV Globo na cobertura do acidente com o avião da TAM ‘vai testando hipóteses, até montar um quebra-cabeças que está longe do fim’. O que ele não explicou, nem poderia, é como a mídia formula as hipóteses para teste. Quem se der ao trabalho de ler jornais ou assistir ao noticiário televisivo nos dias do julgamento, verá como o furor acusatório não tem qualquer compromisso com justiça ou estabilidade institucional.
‘De olho neles’
A pressão sobre os ministros começou na véspera. Os grandes jornais, sem exceção, colocaram o Supremo contra a parede. O editorial do Globo (22/0/2007) foi categórico: ‘não faltam subsídios para os magistrados fundamentarem sua decisão. Além do acervo da CPI dos Correios, novas provas foram anexadas pelo procurador Antônio Fernando de Souza para fundamentar a convicção de que entre o PT e políticos de legendas aliadas – PTB, PP, PL (hoje, PR) e PMDB – funcionava a tal `organização criminosa´’. Perfeito. Com um texto desse calibre é necessário ler a denúncia? Ainda mais quando parte substancial dela proveio de artigos e colunas da mesma fonte.
Talvez tenha vindo do ministro Eros Grau a declaração mais significativa sobre o papel da mídia no processo. Para o juiz, ‘condenam-se pessoas mesmo antes da apuração dos fatos. Nunca me detive em indagações a respeito das causas dos linchamentos consumados em um tribunal dirigido sob a premissa de que todos são culpados até que se prove o contrário. Talvez seja assim porque muitos sentem necessidade de punir a si próprios por serem o que são’. E para não deixar dúvidas sobre o alvo de sua crítica, concluiu destacando que ‘a imprensa livre é indispensável à democracia, mas reporto-me a desvios cuja substancialidade não pode ser negada’.
Na edição de sexta-feira (24/8), o jornal carioca continua em marcha batida. A dobra superior da primeira página é um primor editorial. A manchete e demais títulos se articulam dentro da lógica férrea do que está em jogo: ‘Mensalão deve ter hoje os seus primeiros réus. Voto combinado provoca polêmica. Lula negocia vaga no STF com o PMDB’. Uma capa que deve ser debatida à exaustão em faculdades de Jornalismo. Três títulos e uma sentença.
Na página 10, o senador Pedro Simon, vestal das vestais, não deixa qualquer dúvida quanto à autonomia dos membros do STF: ‘Na conversa entre eles, há observações preocupantes que sugerem combinação de votos. Em todo o caso o país está de olho neles’. O que o ‘franciscano’ senador preferiu ignorar foi que sua exegese era baseada em troca de correspondência obtida por meios anticonstitucionais, ilegais e chocantes. Tudo muito peculiar.
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Professor titular de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro, RJ