Fui surpreendido, em meados de 2000, por um telefonema em meu celular: era o jornalista Luiz Costa, que eu não conhecia pessoalmente e me convidava a escrever uma coluna quinzenal sobre televisão no jornal O Estado de S.Paulo. Relutei um pouco, mas o desafio me agradou, até porque eu alternaria com alguém que conhece a TV profundamente, o diretor Gabriel Priolli – e que mais tarde, quando fui candidato a Presidente da SBPC, em 2003, gravou comigo uma entrevista para a Internet, que ele conduziu muito bem. Assim, Gabriel podia falar de dentro da televisão enquanto eu falaria de fora, como espectador, sem conhecer os andaimes ou os bastidores, mas só vendo o resultado final, em suma como todo o mundo. E foi uma grata surpresa, que agradeço a Luiz Costa, não só tratar – durante um ano e meio – de questões da comunicação de massas, mas também fazê-lo numa linguagem dirigida a um público mais amplo que o acadêmico [Luiz Costa Pereira Junior é o organizador do livro A Vida com a TV – o Poder da Televisão no Cotidiano (São Paulo, Editora Senac, 2002), uma antologia do que saiu sob sua direção no Telejornal, incluindo artigos meus, de Gabriel Priolli e de outros colaboradores.].
Interessado que sou na questão da democracia, tenho me perguntado, e a meus amigos, e a todos a quem eu falo, como fazer para que os valores democráticos não fiquem apenas no plano do juízo racional, porém ingressem no campo dos afetos – que ainda é bastante regido por séculos, milênios de autoritarismo. A linguagem dos que discutem a democracia tende a ser mais pesada do que espontânea. Contestei isso teoricamente, sugerindo que a democracia venha do desejo – e portanto de baixo para cima. Vemos que os autoritários, na política, sabem apelar mais diretamente às emoções não elaboradas, toscas, agressivas, repressivas. É preciso mudar isso: levar a luta pela democracia das teorias e do discurso iluminista para o terreno afetivo. É esse o terreno de batalha.
À primeira vista, poderiam alguns até dizer que seria por ela remeter a teorias algo densas, difíceis. Mas a verdadeira resposta, estou convencido, é que a democracia contraria um treinamento de nossas emoções que nos prepara mais para o egoísmo, a prepotência, a subserviência, do que para relações eticamente decentes e politicamente emancipadoras.
Escrever sobre TV, para um grande público, era então a oportunidade de criar um estilo mais leve, mais rápido – e que tentasse uma mescla de afetos e de razão. É isso o que o leitor poderá conferir, em especial na primeira parte deste livro.
Refinar a crítica
Encerrada minha colaboração no Telejornal, em novembro de 2001, continuei escrevendo sobre televisão e eventualmente sobre cinema, mais esporadicamente, na revista Bravo, a convite de Michel Laub, a quem agradeço: esta é a segunda parte do livro. E a terceira consiste num ensaio mais longo que redigi, num projeto coletivo intitulado Cultura e Democracia, entre 1998 e 2000. O resultado final tem o seu quê de curioso, porque na verdade são três estilos diferentes que convivem no mesmo livro, do mais leve ao mais acadêmico, porém girando em torno de alguns temas comuns – a televisão, a cultura de massas, a ética, a democracia.
Mas a maior satisfação que tive, de minha colaboração no Telejornal, veio de um episódio tão inesperado quanto o convite inicial. Em maio de 2001, comecei a receber os trabalhos de conclusão de semestre de meus alunos no curso de Filosofia da USP. Por questões de calendário escolar, os prazos para a entrega de notas foram sendo ampliados e, assim, demorei a corrigi-los. Só uns dois meses depois, é que me sentei para ler a quantidade bastante espantosa de redações com que atualmente se depara um professor. Desde algum tempo, aliás, peço aos estudantes que entreguem os trabalhos datilografados ou impressos. E me incomodou ver que um estava escrito à mão. Comecei assim mesmo a lê-lo – mas logo percebi que não era um trabalho, e sim uma longa correspondência pessoal, que por engano eu deixara, durante dois meses, misturada à pilha das redações. O impacto foi tão grande que não consegui voltar, aquele dia, à correção dos trabalhos.
Era a carta de uma jovem senhora, que eu não conhecia nem vim a conhecer pessoalmente, de uma grande cidade do interior paulista. Começava contando sua vida, o casamento jovem, os filhos, a deterioração do relacionamento com o marido, a obesidade, o divórcio, a volta à faculdade, o regime para emagrecer, a luta demorada e finalmente bem-sucedida para a conquista da auto-estima. E de repente aludia a algumas colunas minhas no Telejornal que a haviam impressionado. Não recordo exatamente quais – infelizmente, não localizei sua carta em meio a minha bagunça habitual – mas não importa. Esse é o melhor elogio que um autor pode receber: o de sentir que aquilo que ele escreve faz uma diferença, e em especial que pode reforçar as convicções de alguém que está lutando para ter uma vida melhor, superando um dos maiores déficits de nossa sociedade, que é o déficit de amor.
Desejo agradecer-lhe a carta, que me fez sentir que valeu a pena escrever sobre televisão. E quero também agradecer a minha amiga Mônica Carvalho, que discutiu comigo vários dos assuntos que resultaram em colunas no Telejornal.
Para, não concluir, mas começar o livro: ele tratará, aproveitando o caso da televisão, de como a democracia e a ética possam passar pelos afetos. Por isso, embora boa parte da produção televisiva seja de baixa qualidade (como, aliás, a de qualquer arte no momento em que ela é produzida – só depois guardamos os seus momentos altos), não gastarei tempo com as litanias usuais que a denunciam. O mais interessante é pensar em suas possibilidades. Isso exige criticá-la, claro, mas refinando as críticas. E o ponto é este: quanto pode o afeto, em favor de uma vida ética e democrática?
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Professor titular de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo