Saturday, 16 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Um borbulhar literário

A Fliporto não cabe em uma lauda, principalmente para quem adora as boas festas. Onde há uma integração verdadeira entre o evento e o público e promove-se o encontro entre natureza, pessoas, e, neste caso, livros. A Praça do Carmo, em Olinda, o seu laguinho e parque, não haviam sido tão explorados antes. Bebês, crianças, jovens, adultos, uma terceira idade linda, cadeirantes, intelectuais, poetas, turistas, todos se divertindo.

Entrei e dei de cara com livros infantis pendurados em árvores, ao lado várias tendas com atividades literárias para a criançada. Digo que um evento é bom quando muito fotografado pelo público. Vi várias cenas. Magali, mesmo tendo apenas o ensino fundamental, foi conferir com o seu namoradinho.

Na sexta-feira (12/11), a judia Eva Schoss contou sua vivência com Anne Frank e os terrores da perseguição nazista na Polônia. Geneton Moraes questionou se eles, os judeus, foram avisados sobre o genocídio quando entraram no campo de concentração, ao que Eva respondeu: ‘Ninguém tentou esconder. Ao contrário, diziam com todo prazer.’ Saí um pouco perturbada, mas ao caminhar em direção ao cafezinho, ouvi: ‘Não mexa muito no peixe, qualquer tipo de carne solta água ao mexer.’ Descontraí com a surpresa, a Fliporto também promove palestras gastronômicas. Adorei a dica inusitada.

‘No sertão, escrevendo sobre Marte’

No sábado (13/11), a ítalo-americana Camille Paglia soltou o verbo com gosto de gás. Criticou os EUA no modo de se relacionar/ interagir com o mundo, com as pessoas e com a própria saúde. Sem pudor nem trégua, Camille cuspiu sua verdade nua e crua, bem ao seu modo. Mas a conversa mais interessante do dia foi mediada por Maurício Melo, com o tema ‘As nossas ficções de cada dia’. Ela, em partes, se encaixaria na palestra de Alberto Dines sobre ‘diálogos dos visionários’ – até lendo ele consegue ser bom. Mais um ponto positivo da festa foi o fácil acesso aos questionamentos. É tão bom quando existe diálogo, quando temos o direito de resposta e não precisamos dizer: ‘Nós estamos aqui, podemos interagir.’ Me senti no antigo Programa Livre.

O debate rolava solto entre o escritor e psicanalista Contardo Calligaris, o jovem escritor português João Tordo e Ronaldo Wrobel, quando surge uma inquietação do público: ‘Não podemos fugir da autobiografia na ficção? Vocês podem falar um pouco sobre literatura de ficção científica?’ A turma tarimbada enfocava, apenas, o aspecto confessional, autobiográfico do gênero. Como se toda ficção partisse de vivências próprias ou da vida dos outros. A pergunta foi passada ao jovem João Tordo, que disse ser possível fugir da autobiografia e humildemente, coisa rara no meio, pediu desculpas por desconhecer os que conseguiram entender o humano a partir do inumano, como Phillip K. Dick com o seu Caçador de Androides, belíssima ficção científica. Depois, surgiu a colocação sarcástica do mediador, referindo-se ao caráter futurista da pergunta: ‘É como se a pessoa estivesse no sertão escrevendo sobre Marte.’ Impossível? O resto da mesa calou e, enfim, Maurício citou as circunstâncias em que foi produzido o livro Da terra à Lua, obra singular de Júlio Verne, rotulada no gênero em questão, ficção.

Sonhos são pontes

Na segunda-feira (15/11), Alceu Valença levou o público ao delírio, com certeza o mais aplaudido – não é à toa a possibilidade de sonoridade neste mundo. Ele realmente sabe fazer as letras ganharem som, há muita ‘poesia no coração da música’ de Alceu. Recitou e declamou divinamente, com todo deboche performático de menino abusado que diz: ‘Tô na minha área’. Para fechar com chave de ouro, Alberto Dines me apresentou os humanistas Ambrósio Brandão e Stefan Zweig. Com certeza comprarei a biografia de Zweig, escrita pelo observador, intitulada Morte no paraíso.

A cordelista Rivani Nasario, participante da Fliporto desde a primeira edição, contou: ‘Esse foi o melhor ano, essa mudança de Porto de Galinhas para Olinda foi maravilhosa. Vendi muitos cordéis, me apresentei três vezes custeada pela Secretaria de Cultura de Olinda. A festa tá muito boa.’ No seu tabuleiro, fitei subitamente o cordel: ‘Mulheres! Do preconceito à justiça’, no qual a poetisa olindense vestida à la Maria Bonita, diz: ‘Mulheres inspiradoras/ Poetisas geniais/ Palavras encantadoras/ Todas bem especiais/ Liberdade e expressão/ Em cada poesia que faz’.

Realmente, a Fliporto é ‘plural e inclusiva’. Mas devemos fazer sempre mais pela literatura, que a elite poderosa tenha mais gestos nobres – a redundância é apelo; só assim conseguiremos evoluir mais educacionalmente. Seria perfeito também se os organizadores da Festa Literária Internacional de Pernambuco intervissem para o tombamento do antigo casario rosa da homenageada no evento, Clarice Lispector. Utopista, eu? Sonhos são pontes.

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Editora da revista Zena