Uma célebre definição de Hegel – ‘o jornal é a oração matinal do homem moderno’ – talvez seja a melhor síntese dos vínculos entre jornalismo e cotidiano. Associada ao ‘século das Luzes’, a referência é ainda mais relevante, porque indica o compromisso de ‘esclarecer os cidadãos’ próprio daquele período, e que fundamenta e justifica o jornalismo até hoje, apesar das profundas transformações ocorridas desde então: oferecer informações confiáveis para que o público possa tirar suas próprias conclusões – isto é, para que possa pensar por si – é um dos postulados clássicos dessa atividade. E ‘pensar por si’ era justamente o que Kant definia, num famoso ensaio de 1784, como a expressão do esclarecimento.
É bem verdade que, na prática, tal postulado resulta em mais uma boa intenção permanentemente frustrada, o que deveria sugerir o caráter ideológico oculto por trás dessa aparente imparcialidade. Além disso, em plena ‘Idade Mídia’, o ideal de visibilidade tão caro ao Iluminismo deriva para a superexposição que substitui a cegueira pela treva à cegueira pelo excesso de luz. Com uma distinção fundamental, pois a luz em excesso sugere o pleno acesso à informação, que a treva escondia: assim, diante do que estava oculto, podíamos ser levados a saber que ignorávamos, e com isso despertar para a necessidade de saber; agora, pela aparência da visibilidade total, somos levados a ignorar que não sabemos, e nos consolamos nessa ilusão de saber.
Contra-corrente
Este livro procura retomar as análises que fundamentam o jornalismo como forma de conhecimento vinculada necessariamente à vida cotidiana e associada ao ideal iluminista de esclarecimento, considerando que a oferta de informações para que o público tire suas próprias conclusões obedece a procedimentos específicos dessa prática profissional, explorada em suas possibilidades e limitações e confrontada com as condições de produção dominantes. O jornalismo teria, assim, no postulado iluminista que o orienta, a própria origem do seu dilema: lidar com a imediaticidade dos fatos com um distanciamento capaz de conferir-lhes sentido, lidar com a vida cotidiana com a perspectiva de fornecer-lhe elementos de crítica.
Procurando afastar-se desse misto de fatalismo e idealismo que, contraditoriamente, convoca pura e simplesmente à resistência após descrever um quadro de absoluta impossibilidade de fuga ao sistema, a autora busca demonstrar que a estrutura de dominação não é de tal forma tentacular que impeça a expressão do trabalho criador – mesmo porque, se fosse, nenhuma alternativa seria possível. Assim, propõe-se a investigar, na análise da própria estrutura do cotidiano, os elementos que permitam vislumbrar uma produção jornalística à contra-corrente, orientada no sentido de ‘pensar contra os fatos’ – isto é, contra sua naturalização – e, portanto, de interpretá-los de modo a ajudar na formação de um novo senso comum.
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Introdução
‘Todo dia é tudo sempre igual’: a família moderna e feliz desperta para a sua rotina no cenário branco e amarelo do anúncio de margarina; a caminho do trabalho, engarrafado no trânsito e cercado por outdoors, o executivo abre o teto solar do carro e vê o dia luminoso, liga o CD e imagina-se livre a cortar estradas de paisagens deslumbrantes; o casal jovem e elegante usa o cartão de crédito como um controle-remoto que abre todos os sésamos: a roupa de grife, o colar de pérolas, o jantar à luz de velas, o cruzeiro de férias; o cliente do banco efetua todas as operações via internet, confortavelmente sentado diante do computador; de celular em punho, a garotada vibra com a comunicação muito além de um simples telefonema – jogos, fotos, mensagens, o mundo na palma da mão; no supermercado, as donas de casa empenham-se na disputa das ofertas do dia; no shopping, os clientes deslizam entre vitrines e escadas rolantes; no botequim ou na praia, a juventude esbanja alegria e saúde em torno de um copo de cerveja.
Todo dia é tudo mais urgente: o carro veloz ultrapassa o túnel antes de ser captado pela câmera que já o aguardava do outro lado; o banco afirma que a tecnologia recém-anunciada já estará superada no instante seguinte; o celular torna inútil o esforço dos seguranças em resguardar a privacidade de seus protegidos – o paparazzo infiltrado na festa já enviou a foto do flagrante que será a capa da revista; as promoções no supermercado são instantâneas e aleatórias: o consumidor precisa ser atento e rápido.
Importa menos que tão poucos lares sejam brancos e amarelos como no anúncio da margarina, que entre o celular dos sonhos e os olhos do sonhador exista uma vitrine, que o acionamento mágico do cartão de crédito esconda a necessidade de fundos para pagar a fatura ou que seja preciso uma greve de bancários para deixar claro que nem todos possuem um singelo cartão magnético para sacar seu salário no caixa eletrônico: importa é que essas imagens incorporam-se ao dia-a-dia das grandes cidades, como se falassem a todos, independentemente da condição social.
Treva da cegueira
A linguagem publicitária é só um exemplo. Um bom exemplo porque, voltada para a necessidade de vender os mais diferentes produtos e serviços, precisa demonstrar a utilidade e mesmo a imprescindibilidade deles para a vida prática, embora, através deles, venda principalmente um estilo de vida ao qual todos devem aderir. Por isso, busca nos mais variados aspectos do cotidiano os elementos para alimentar seu discurso, e pode ser tomada como uma manifestação mais evidente do alcance e da importância das mediações através da mídia: não só a publicidade e os meios pelos quais essas mensagens são veiculadas, mas o que ela anuncia – o convívio cada vez mais alargado com tecnologias que se integram à ‘ordem natural das coisas’.
Porém, há outros aspectos fundamentais, que dizem respeito mais estritamente à mediação jornalística: a difusão de um sentido de atualidade e compartilhamento de acontecimentos, com as tecnologias do ‘tempo real’, paralelamente à valorização da instantaneidade e simultaneidade que configuram o sentido de urgência contemporâneo; além disso, o estabelecimento de determinadas formatações ao discurso dos cidadãos, incluindo demonstrações políticas que, rompendo momentaneamente com o cotidiano, visam transformá-lo: o preparo especial ‘para a câmera’ tanto em entrevistas aleatórias quanto, e sobretudo, na organização de manifestações públicas, nas quais frequentemente se destacam faixas e cartazes em inglês, visando a maior comunicabilidade através da TV.
O cenário descrito corresponde ao que Albino Rubim certa vez denominou ‘Idade Mídia’, na qual o jornalismo se insere. Mas os vínculos entre jornalismo e cotidiano são bem anteriores, e uma célebre definição de Hegel – ‘o jornal é a oração matinal do homem moderno’ – talvez lhe forneça a melhor síntese. Tais vínculos não são propriamente novidade no que diz respeito ao papel das notícias, que, a rigor, sempre circularam por diferentes formas e meios e sempre fizeram parte do dia-a-dia das sociedades, ao longo da história. Mas a referência ao jornal é importante por demarcar uma época em que a produção e transmissão de informações começou a tornar-se sistemática, estabelecendo-se progressivamente como uma atividade periódica subordinada a rotinas industriais e ocultando eficazmente o processo produtivo – e os interesses aí envolvidos – para integrar-se à vida cotidiana no capitalismo. Associada ao ‘século das Luzes’, a referência é ainda mais relevante, porque indica o compromisso de ‘esclarecer os cidadãos’ próprio daquele período, e que fundamenta e justifica o jornalismo até hoje, apesar das profundas transformações por que essa atividade vem passando desde então.
A propósito, a remissão a um ensaio de Kant é exemplar: ali, o filósofo define o esclarecimento como a saída do homem de sua menoridade, isto é, de sua incapacidade de pensar por si mesmo. Daí a expressão ‘sapere aude!’ (‘ousa conhecer!’), ao mesmo tempo uma convocação e uma síntese do apelo à razão que caracterizava o espírito da época, igualmente marcado pelo ideal de visibilidade, aliás incontornável nas metáforas que remetem incessantemente à idéia de luz (iluminismo, enlightenment) e clareza (o ‘tornar claro’ de esclarecimento, Aufklärung). É assim que Rouanet sugere outra expressão, ‘videre aude!‘, como complemento para o lema kantiano: ‘ousar ver e ousar saber’, diz o filósofo brasileiro, ‘são as duas leis da cidade iluminista’.
Ora, oferecer informações confiáveis para que o público tire suas próprias conclusões (isto é, para que possa pensar por si) é justamente um dos postulados clássicos que o jornalismo preserva – embora, é claro, seja mais uma boa intenção permanentemente frustrada, o que deveria sugerir o caráter ideológico oculto por trás dessa aparente imparcialidade. E, em plena ‘Idade Mídia’, o ideal de visibilidade estaria perfeitamente justificado, caso não derivasse para a superexposição que substitui a cegueira pela treva à cegueira pelo excesso de luz. O que, entretanto, não dá no mesmo, porque a luz em excesso sugere o pleno acesso à informação, que a treva escondia: assim, diante do que estava oculto, podíamos ser levados a saber que ignorávamos, e com isso despertar para a necessidade de saber; agora, pela aparência da visibilidade total, somos levados a ignorar que não sabemos, e nos consolamos nessa ilusão de saber.
Orientação ideológica
Esta tese procura retomar as análises que fundamentam o jornalismo como forma de conhecimento vinculada necessariamente à vida cotidiana e associada ao ideal iluminista de esclarecimento, considerando que a oferta de informações para que o público tire suas próprias conclusões obedece a determinados procedimentos através dos quais o jornalismo ‘ousa conhecer’ de uma maneira específica. Assim, busca identificar as possibilidades e as limitações dessa prática profissional, confrontada com as condições de produção dominantes. Parece justo afirmar que essa tarefa de esclarecimento já pressupõe a necessidade de um recuo para reflexão. Portanto, o jornalismo teria, no postulado iluminista que o orienta, a própria origem do seu dilema: lidar com a imediaticidade dos fatos com um distanciamento capaz de conferir-lhes sentido, lidar com a vida cotidiana com a perspectiva de fornecer-lhe elementos de crítica.
Duas categorias são necessárias para essa análise: a de mediação – através da qual também será possível desfazer alguns equívocos, muito em voga, quanto ao fim do jornalismo como profissão específica diante das possibilidades abertas pelas novas tecnologias – e a de cotidianidade, com ênfase no processo de suspensão, apontado por Lukács como premissa do trabalho de reflexão que, ao retornar à vida cotidiana, pode transformar o pensamento cotidiano, ou, de forma equivalente, levar o senso comum ao senso crítico, tal como Gramsci formulou em seus Cadernos; nesse caso, porém, será preciso compreender a cotidianidade num contexto histórico que esses autores não viveram, no qual a presença da mídia se torna preponderante.
Admitindo as distinções entre a atividade teórica e práticas profissionais específicas, será possível avançar na busca de respostas às indagações aqui apresentadas: a primeira, relativa à crítica que o jornalismo pode exercer sobre esse cotidiano que ele ajuda a conformar, decorrente da qualidade da reflexão que possa produzir, o que precisa levar em conta as exigências de algum recuo ou distanciamento (isto é, alguma ‘suspensão’) para a elaboração de uma informação capaz de suplantar o caráter imediato dos fatos com os quais se trabalha; a segunda, sobre as contradições entre essa perspectiva e um sistema de produção que opera segundo uma lógica binária e simplificadora, orientada crescentemente pelas imposições do ‘tempo real’ e pela tendência ao espetacular.
A principal contradição é entre o pressuposto da atividade jornalística, cujo trabalho de esclarecimento exige uma desnaturalização dos fatos, e a tendência à naturalização que as rotinas de produção desse sistema favorecem e ajudam a legitimar, promovendo um ‘conhecimento do mundo’ alienado não só do movimento do capital – que orienta as relações sociais na contemporaneidade – como da própria complexidade da vida social, que o ultrapassa.
Por ser a expressão mais representativa da informação na ‘sociedade do espetáculo’, o telejornalismo merecerá especial atenção nesta análise, empenhada em demonstrar a inconsistência da crítica que o desqualifica sob a acusação comum aos produtos audiovisuais em geral, rejeitados como inexoravelmente simplificadores e alienantes, de tal modo que o jornalismo, a rigor, só poderia ser praticado em meios impressos.
Além disso, e sobretudo, confrontará a idéia, recorrente no meio profissional, de que ‘jornalista não tem tempo para pensar’, ironia supostamente auto-depreciativa reveladora de um sentido de urgência que estabeleceria uma contradição aparentemente insolúvel entre reflexão e ação, com um duplo objetivo: demonstrar que a ‘falta de tempo para pensar’ revela um ‘pensar automatizado’ expresso na orientação ideológica (naturalizadora, não questionadora) das reportagens; e que os conflitos internos ao campo jornalístico – ou, em outros termos, a luta por hegemonia – permitem vislumbrar a produção de reportagens à contra-corrente, que se insinuam pelas frestas do sistema: tal é o sentido de ‘pensar contra os fatos’, dotando-os de uma interpretação capaz de ajudar a promover um novo senso comum.
Expressão multicultural
Nesses termos é que se contesta a comodidade da crítica não-propositiva, que inviabiliza qualquer ação prática: são inúmeros atualmente os trabalhos que, por diferentes linhas teóricas, demonstram o sentido ideológico daquilo que é apresentado como uma realidade dada; então, uma vez descoberta a fórmula, a tendência é reproduzir a crítica, de tal forma que se criam dois mundos estanques: o dos que ‘fazem’ e o dos que ‘pensam’ ou criticam o que se faz. Não é difícil imaginar que os primeiros têm ampla vantagem em termos de influência, na medida em que falam para um público ampliado, e por isso costumam desdenhar de toda teoria; em contrapartida, os críticos instalam-se confortavelmente em seu universo, repetindo um discurso que assume ares de profecia auto-cumprida, porém – ou por isso mesmo – incapaz de interferir no reino das coisas práticas. No limite, configura-se o quadro que Lukács definiu ironicamente como o do Grande Hotel do Abismo, ‘um belo hotel, equipado com todas as comodidades, à beira de um abismo, do nada, do absurdo’, e de onde ‘a contemplação diária do abismo entre as excelentes refeições ou os entretenimentos artísticos só pode aumentar o gozo das sutis comodidades oferecidas’.
Será preciso, porém, evitar o subjetivismo voluntarista, para o qual costuma-se resvalar sempre que se coloca a incômoda porém inescapável questão quanto ao que fazer: para contornar o niilismo da falta de saída, a tendência é afirmar que os jornalistas devem resistir. Com base em quê, se o quadro pintado foi o da mais absoluta impossibilidade de fuga ao sistema?
Contrariamente, se buscarmos na própria estrutura do cotidiano – na acepção dialética lukacsiana – os elementos para uma crítica prática da naturalização das rotinas profissionais, que favorecem a naturalização dos fatos, poderemos talvez vislumbrar uma perspectiva coerente com a promessa de esclarecimento que define a atividade jornalística, identificada ao processo de suspensão da cotidianidade, vital para que essa promessa se cumpra. Considerando que seu objeto são os fatos imediatos do cotidiano transformados em notícias que por sua vez retornam a esse cotidiano, seria possível afirmar a particularidade do jornalismo como atividade marcada por um cotidiano exercício de suspensão, no qual o jornalista precisa empregar ‘toda a sua força’ para realizar sua tarefa.
Parecerá contraditório esse argumento, considerando que o conceito de suspensão só se aplicaria ao trabalho criador, à ciência e à arte: produzindo em ritmo industrial, inserido na mesma lógica do espetáculo e do ‘tempo real’ da qual o campo midiático é o principal agente, o jornalismo seria uma atividade alienada como qualquer outra sob o capitalismo, embora apareça, ao contrário, como referencial de esclarecimento. Porém, a estrutura que impõe o trabalho alienado não é de tal forma tentacular que impeça a expressão do trabalho criador. Se fosse, nenhuma alternativa seria atualmente possível. O mais correto, portanto, é reconhecer a tendência do capitalismo contemporâneo a abarcar todos os interstícios da vida social e individual, sem contudo jamais consegui-lo integralmente, considerando as contradições e negatividades que sempre viabilizam frestas por onde o discurso crítico pode penetrar.
Por isso é possível associar o conceito lukacsciano de suspensão à perspectiva gramsciana de luta política, aplicada ao campo específico do jornalismo – ou da mídia, de maneira mais geral, entendida aqui como ‘aparelho privado de hegemonia’: se todo sistema tem fissuras, é justo supor a possibilidade de momentos de suspensão que, nos seus limites, realizem o ideal do jornalismo apesar da estrutura que o constrange.
Para demonstrar essa possibilidade, a tese foi dividida em três partes. A primeira discute o cotidiano na ‘Idade Mídia’. Depois de criticar o ecletismo de teóricos dedicados à questão do cotidiano, como De Certeau e Martín-Barbero, comenta a perspectiva fenomenológica de Schutz e concentra-se no caminho oferecido pela fundamentação marxista. Nesse campo, enfatiza a investigação de Lukács sobre a estrutura da vida cotidiana e aborda a teorização de Gramsci sobre hegemonia articulada à constituição do senso comum e das perspectivas de superá-lo, incorporando também a contundente crítica de Mészáros à abordagem gramsciana do senso comum, a partir de reflexões sobre o poder da ideologia. Paralelamente, este primeiro capítulo procura demonstrar a lógica do cotidiano no contexto atual de midiatização da vida social, refutando tanto as teses catastrofistas da Escola de Frankfurt e da ‘sociedade do espetáculo’ quanto a vertente irracionalista pós-moderna de valorização da comunicação como forma de expressão multicultural que cancela ou obscurece as contradições sociais, além de questionar a alternativa habermasiana da ‘ação comunicativa’.
Outro jornalismo
O segundo capítulo dedica-se a analisar o jornalismo como forma de conhecimento associado ao ideal iluminista de esclarecimento trazido para o contexto atual, o que significa apreender essa forma de conhecimento nas condições em que ela se objetiva, percebendo a tensão permanente entre esse ideal e os constrangimentos que lhe dificultam e até impedem a realização. Assim, após a crítica à conceituação do jornalismo como ‘quarto poder’, discute aspectos essenciais das condições práticas do exercício do jornalismo, envolvendo as rotinas profissionais, a relação com as fontes e os procedimentos mais comuns, com especial destaque para o uso da câmera oculta como expressão máxima da degeneração do ideal de visibilidade iluminista, e para as pesquisas de opinião como recurso habitual para a formação de uma ‘opinião pública’ agora associada ao senso comum, e portanto bem distinta da original formulação kantiana.
Finalmente, o último capítulo procura explorar a proposta de ‘pensar contra os fatos’, isto é, contra o processo de naturalização dos fatos percebidos como imediatos no cotidiano, como condição para se vislumbrar a formação de um senso crítico. Para isso, fornece elementos para fundamentar a rejeição de uma clivagem sacralizada como um dos princípios éticos da profissão: a pretensão de distinguir claramente o fato (ou a informação, ou a notícia) e a interpretação (ou a opinião), o que impõe uma rediscussão sobre a questão da objetividade.
A seguir, busca identificar as possibilidades de ‘suspensão da cotidianidade’ num cotidiano profissional marcado crescentemente pela urgência do ‘tempo real’, detendo-se em particular no jornalismo televisivo, tradicionalmente desprezado como incapaz de produzir informações que conduzam ao esclarecimento do público. Por fim, questiona as perspectivas atuais de um contra-discurso como o do ‘quinto poder’ formulado por Ramonet, que rapidamente derivou para a conceituação do que seria o papel dos blogs na internet, pretensamente inauguradores de um ‘novo jornalismo’, e do chamado ‘jornalismo participativo’, através do qual o próprio público realiza ou elege as reportagens: seriam, todas essas, expressões que resultariam numa espécie de naturalização do próprio jornalismo, diluído entre as múltiplas atividades do cotidiano e suprimido de seu caráter particular de mediador, fundamental para a exploração das possibilidades desse caminho que vai do senso comum ao senso crítico.
Em suma, o que se pretende demonstrar é que o jornalismo é uma profissão cujo produto pode ser uma forma de conhecimento, resultante de um cotidiano processo de suspensão da e de retorno à cotidianidade, e que esse processo é viável e verificável mesmo nas atuais condições de produção, impositivas de constrangimentos tendencialmente castradores dessa perspectiva. Aliás, se assim não fosse, só nos restaria rejeitar o jornalismo como algo intrinsecamente alienante e ao mesmo tempo abandonar a perspectiva dialética a partir de um entendimento frankfurtianamente enviesado da concepção de totalidade, que faz supor os trabalhadores como cúmplices do capital e não como a força capaz de negá-lo: então estaríamos cancelando todas as possibilidades de um outro jornalismo e, junto com ela, de um outro mundo. Teríamos apenas o consolo da beleza trágica do fado: a lucidez e o desatino de ver o próprio destino sem poder mudar-lhe a sorte.
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Jornalista e professora da Universidade Federal Fluminense