Começa a derivar para um terreno perigoso o noticiário sobre a recente audiência pública convocada pelo ministro da Justiça Tarso Genro, para discutir o julgamento de agentes dos governos militares em episódios de tortura e morte de opositores ao regime de exceção. Pela primeira vez desde a redemocratização, representantes das Forças Armadas se organizam para uma ação política de confronto com os responsáveis pelo movimento que tenta responsabilizar torturadores pelos crimes cometidos durante a ditadura. E a imprensa parece torcer a favor dos militares indisciplinados.
A ação imediata dos militares descontentes com a possibilidade de exumação dos crimes comuns cometidos durante a ditadura foi, segundo os jornais, realizar um seminário para debater publicamente o passado de integrantes do atual governo.
A tentativa de chantagear o Executivo reside exatamente nesse detalhe: eles não pretendem fazer referência aos antigos militantes da luta armada que estiveram nos governos de José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco ou Fernando Henrique Cardoso. Ou àqueles que nunca tiveram cargos importantes em qualquer governo. O caráter de chantagem é claro: os ativistas militares ameaçam produzir uma crise que pode colocar sob risco a governabilidade, caso o Executivo prossiga com o propósito de levar a julgamento os torturadores e assassinos.
Herdeiros diretos
A natureza jurídica do processo aberto pela audiência pública pode produzir muita controvérsia, mas não se percebe na imprensa um esforço especial para explicar seus fundamentos. Tampouco se observa grande entusiasmo dos juristas em participar desse debate, eles que fizeram fila para entrar em discussões muito menos relevantes para o futuro da nossa democracia, como o fim da CPMF e o vazamento de informações sobre gastos de autoridades com cartões corporativos.
O propósito imediato dos militares engajados no processo de desestabilização do governo é isolar o ministro da Justiça e, se possível, levar ao seu afastamento. A forma encontrada, de fazer alarde sobre o passado de ministros e outros agentes públicos com ações violentas durante o período de resistência ao regime militar, estabelece um padrão primário para a análise da questão, que não deveria ser assumido pela imprensa.
Talvez o fato de que o movimento dos militares descontentes tenha a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, no centro da mira esteja fazendo com que a imprensa, ou parte dela, enxergue no processo uma oportunidade para bombardear a candidata preferida do presidente da República à sua sucessão. Não se pode deixar de lado o fato de que parte da imprensa tem se comportado como quem adoraria ver o circo pegar fogo.
O perigo é que, tolerando os incendiários de plantão, perca-se o controle da queimada e se coloque sob risco algo mais importante do que uma candidatura indigesta para setores poderosos do campo político. Dos militares engajados na campanha desestabilizadora não se pode esperar qualquer coisa que não seja a exploração de qualquer chance para colocar em dúvida os fundamentos da democracia. Eles são representantes ou herdeiros diretos do breviário que conduziu o país a um dos períodos mais tenebrosos da nossa História.
Biografias vendidas
A imprensa poderia contribuir para que a sociedade compreenda melhor a conveniência ou inconveniência de levar aos tribunais os acusados de torturas e assassinatos sob o manto do Estado autoritário. Um bom começo seria romper certos mitos do confronto entre militantes de partidos de esquerda e as forças da repressão. Assumir, por exemplo, que parte dos militantes de esquerda não lutava pela redemocratização do país, mas estavam engajados em projetos de poder que não conduziriam necessariamente ao aperfeiçoamento do regime.
É fato que alguns episódios do processo de restauração democrática, como as concessões de indenização por perdas causadas a opositores pela perseguição durante o regime militar, abriram espaço para a ação de oportunistas e aproveitadores que venderam suas biografias em troca de alentadas pensões – o que oferece argumentos aos inimigos da democracia. Mas a imprensa não pode perder de vista que uma coisa é tratar com oportunistas de esquerda ou esquerdistas de oportunidade, e outra coisa é tergiversar com torturadores e assassinos.
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Jornalista