Jorge Semprún, o escritor espanhol que morreu em Paris aos 87 anos no começo deste mês, foi uma figura aparentemente contraditória. Escreveu em francês a maior parte de sua obra. No cinema, ficou conhecido como roteirista de uns 15 filmes, quase todos com conteúdo político, como A Guerra Terminou e Stavisky, dirigidos por Alain Resnais; Z, A Confissão e Seção Especial, para Costa-Gavras; O Atentado, para Yves Boisset. Escreveu também em francês a maioria de suas cerca de 20 obras, entre elas os romances pelos quais ficou famoso, como A Grande Viagem, A Segunda Morte de Ramón Mercader, Um Belo Domingo. No entanto, ele se recusou a entrar na Academia Francesa por não querer renunciar à nacionalidade espanhola. Quase toda a sua obra tem um fundo autobiográfico.
Ele nasceu em Madri numa tradicional família espanhola de ideias republicanas e tendência liberal. Entre seus antepassados não faltaram títulos de nobreza. Seu avô foi cinco vezes primeiro-ministro; seu pai, professor, foi representante do governo republicano na Holanda durante a Guerra Civil espanhola e escolheu o exílio ante a vitória do general Francisco Franco. Foi morar em Paris.
Semprún estudou no tradicional Colégio Henri IV e filosofia na Sorbonne. Disse que decidiu aprender a escrever corretamente francês e a falá-lo sem sotaque depois que, adolescente, com forte sotaque ibérico, não foi atendido numa padaria parisiense por ser um “espanhol vermelho”. Ele ainda não era “vermelho”. Mas entraria no Partido Comunista Espanhol (PCE) em 1941. Com 18 anos, participou da Resistência francesa, foi preso e torturado pela Gestapo e enviado ao campo de Buchenwald. Libertado, trabalhou como tradutor na Unesco.
O período mais rico da vida
Foi membro do Comitê Central e do Comitê Executivo do PCE, onde teve problemas internos por ser um “burguês” no partido do proletariado. Viveu clandestinamente durante dez anos na Espanha com o nome de Federico Sánchez, para coordenar as atividades do partido contra o regime franquista. Em suas memórias dessa época, a Autobiografia de Federico Sánchez, uma das poucas obras escritas em espanhol, ele conta um episódio que me marcou quando o li há mais de 30 anos. Outro membro do Comitê Executivo, Simón Sánchez Montero, foi preso em Madri e torturado pela polícia política. A prudência e as normas do partido mandavam que, nesses casos, os altos dirigentes mudassem imediatamente de endereço, mas Semprún foi dormir nessa noite e nas seguintes no domicílio clandestino habitual, que Sánchez Montero conhecia. Era um gesto irresponsável e, ao mesmo tempo, um desafio e um ato de solidariedade e de confiança no companheiro: sabia que não iria falar, por muito que fosse torturado. Semprún escreveu que Sánchez Montero sabia que ele iria dormir no mesmo lugar e que isso lhe daria forças para resistir, para não delatar. Dez anos mais tarde, Semprún, já fora do partido, voltou a encontrar-se com Sánchez Montero, que continuava nele. A primeira coisa que este perguntou foi se, naquela noite, ele fora dormir no endereço de sempre: “Imaginei que você faria isso. (…) Me dava forças pensar que estavas nessa casa.”
Semprún foi expulso do Partido Comunista Espanhol pouco depois de deixar a clandestinidade e voltar à França por opor-se ao dogmatismo stalinista. Mas ele escreveria que esse trabalho político clandestino foi o que mais o excitou, interessou, divertiu e apaixonou em sua vida; esse período, disse, foi o mais importante, o mais rico em aventura, em experiência. Quis ser enterrado envolvido pela bandeira da República espanhola.
***
[Matías M. Molina é jornalista e autor do livro Os Melhores Jornais do Mundo, em segunda edição]