Em suas instigantes conjecturas, Jorge Luis Borges observou que, em geral, os países escolhem como escritores representativos autores que não parecem os mais apropriados, se analisássemos os traços da ‘personalidade’ de cada nação.
A Inglaterra, por exemplo, escolheu Shakespeare, que nada tem a ver com o subentendido, o understatement, esse comedimento tipicamente britânico, modo de ser que apontaria Dr. Johnson como representante mais adequado. Uma difundida (e sutil) piada inglesa caracteriza o estilo deste crítico literário:
Dr. Samuel Johnson vai a um bar e pede: ‘I shall have a martinus.’ O barman tenta corrigi-lo: ‘O senhor quer dizer ‘martíni’, não é?’ E Dr. Johnson responde: ‘Sir, se eu quisesse mais de um martinus teria pedido!’
Shakespeare, ao contrário, é o homem do exagero, do cosmológico (não à toa Harold Bloom, o crítico hiperbólico, o elegeu como deus particular). A rigor, não retrata o caráter insular da Inglaterra, e poderia ser confundido com um dramaturgo italiano ou judeu, como afirmava Borges.
O ‘outro’
E como poderia a Alemanha, propensa aos excessos fanáticos, ao transbordamento, escolher Goethe como seu autor, o tolerante Goethe, para quem, ‘com o conhecimento, as dúvidas aumentam’?
A observação de fundo, prosseguindo neste raciocínio de Borges, é que ele mesmo, Borges, que para tantos representa a Argentina, pouco ou nada teria a ver com a Argentina…
Mas pensando agora em nosotros, brasileiros, pergunto-me – que escritor nos representaria? Talvez ocorra aqui o mesmo que em outros países… Será que já escolhemos também um nome improvável, quase incompatível com o espírito nacional?
Na hipótese de você, prezado leitor, atenta leitora, ter pensado em Machado de Assis, provavelmente cometemos, sim, o mesmo ‘erro’ denunciado por Borges. (‘Erro’ em termos, pois justamente na escolha literária ‘errada’ estará o desejo de cada país corrigir seus possíveis desvios…)
O refinadíssimo Machado, o elegante Machado, mestre do subentendido (seria ele o nosso inverossímil Dr. Johnson?), nada possui de um Gregório de Matos, muito mais brasileiro, porque desbocado, irreverente, e, por paradoxal que pareça, até bem mais católico, religioso, do que o cético Machadão.
Poderíamos pensar também nos escritores que cada pessoa elege. Serão sempre à nossa imagem e semelhança? Ou a tendência mais ‘normal’ seria justamente escolher um escritor que diz o que não diríamos, o ‘outro’, aquele que não podemos ser… mas em quem, afinal, gostaríamos de nos tornar um dia?
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Doutor em Educação pela USP e escritor