Tuesday, 24 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Um jogo de paciência e investigação

Esta é a reportagem de uma grande reportagem – no sentido mais literal e menos arrogante do termo.

A reportagem é uma longa travessia que contraria as práticas e os limites de tempo sempre estritos da notícia. Se a notícia é o urgente relato de um fato, a reportagem é a descrição ampliada e circunstanciada desse acontecimento. É um jogo de paciência onde a investigação vence a ancestral impaciência da redação pelo resultado diário, pela apuração cotidiana de um tema sujeito ao maldito destino de virar embrulho de peixe como jornal velho do dia que passou.

A reportagem sobre o seqüestro dos uruguaios, que se estendeu durante 86 semanas de Veja, começou com uma pergunta feita na edição com data de 29 de novembro de 1978, após o relato pioneiro do encontro de dois repórteres com homens armados no apartamento da rua Botafogo [em Porto Alegre], uma semana antes. Terminou no reconhecimento da edição com data de 30 de julho de 1980, que trazia a corajosa decisão do juiz Moacir Danilo Rodrigues, de Porto Alegre, condenando pela primeira vez no país agentes do intocável mecanismo de repressão armado pela ditadura de 1964. Existe um enorme espaço de tempo entre os dois títulos da intrigante indagação inicial – ‘Onde estarão?’ – e da consoladora afirmação final – ‘Verdade resgatada’ – que demarcam a teimosa, persistente cobertura dedicada ao caso.

Dedicação intensiva e quase exclusiva

No intervalo entre a dúvida do paradeiro dos seqüestrados e a certeza da verdade resgatada decorreram 630 dias, quase 21 meses, cerca de dois anos de árdua investigação – superando mentiras escarpadas, cavando fontes amedrontadas, respirando a poeira do acobertamento, procurando atalhos seguros para chegar ao cume das responsabilidades e ao esclarecimento dos fatos.

Não havia uma preocupação formal de falar no assunto toda semana. Falava-se quando era necessário, quando havia novidades, quando se lançavam novas luzes sobre o caso. Nem toda edição da revista tinha matéria do seqüestro. Ainda assim, o espaço estava garantido quando os fatos tornavam obrigatório o seu registro. Foi o que aconteceu nos meses de dezembro de 1978 e de janeiro de 1979, com presença do tema em cada uma das oito edições semanais de Veja. De outra parte, no mês de agosto de 1979 não existe uma única página sobre o seqüestro.

Essa rara liberdade na abordagem de um tema tão extensivo se juntava a outra condição incomum do jornalismo: a dedicação de um repórter por tanto tempo a um único tema. Liberado da pauta de rotina de outros assuntos, passei a dedicar-me de forma intensiva e quase exclusiva ao seqüestro. Essa opção se devia à compreensão dos editores em São Paulo de que a pauta do seqüestro exigia uma permanente investigação.

Inteligência, coragem e senso jornalístico

A ausência do seqüestro nas páginas de Veja dava eventualmente a impressão de que a sucursal e a revista tinham abandonado o tema. Não passava, contudo, de um eventual recuo tático para um avanço estratégico seguro. Resguardava-se a publicação em uma ou outra semana para um salto evidente na semana seguinte. Na verdade, o trabalho nunca parava – continuávamos apurando, investigando, conferindo, conversando e ganhando a confiança de gente assustada, que não queria nem podia aparecer. Era uma batalha semanal, diária, para ganhar confiança e avançar na história. Exigia tempo e paciência. Não permitia qualquer desvio para cobrir outros assuntos, mais amenos.

A série do seqüestro tem um detalhe curioso: a intervenção decisiva de três fotógrafos, em momentos pessoais que não registram um simples clic, não rendeu uma única foto. João Baptista Scalco, que estava ao meu lado quando fomos recebidos com pistola na cara no apartamento de Lilian e Universindo, não pôde apontar sua câmera para os policiais, mas reconheceu com firmeza o rosto dos seqüestrados impresso com nitidez em sua memória fotográfica. Olívio Lamas teve a idéia e deu o berro poderoso que trouxe à luz o rosto da agente do Dops que custodiou as crianças seqüestradas. Ricardo Chaves teve uma participação decisiva quando, pelo detalhe e não pelo retrato, resgatou a pista já descartada na identificação de um dos seqüestradores.

A conclusão dessa tripla experiência sem fotos é que todos os três, em momentos distintos da apuração, justificaram como ninguém a condição de repórter-fotográfico. JB, Lamas e Kadão não precisaram de máquinas para exercer seu ofício. Valeram-se apenas da inteligência, da coragem e do senso jornalístico para reafirmar a condição de repórter mais do que a de fotógrafo.

Tempo em que era preciso sorte

A série sobre o seqüestro dos uruguaios aconteceu ontem, nos idos dos anos 70, a duas décadas do final do século 20. Parece agora um passado remoto, enterrado no subsolo do tempo, sob camadas sucessivas de novidades que cobrem tudo aquilo como um fóssil do jornalismo, mais atraente à lupa de um veterano arqueólogo do que ao olho de um jovem repórter.

Vivia-se uma compassada era pré-digital em que jornalistas não dispunham de celular, computador, correio eletrônico, laptop, internet, google, wikipédia… Não havia gadgets, nenhuma maravilha tecnológica da realidade on line, do paraíso high-tech e do universo wireless que pudesse facilitar a vida de um repórter.

Antes da pedra filosofal da eletrônica, havia a química, hoje tão medieval como a alquimia. As fotos não eram um milagre instantâneo. Passavam antes pelo papel, que era banhado em solução de ingredientes mágicos que faziam a foto emergir lentamente no banho de revelação no quarto escuro. A transmissão de imagens não era um frenesi medido em bytes ou segundos. Levava quinze, vinte minutos para cada foto ser transmitida, via telefone, por uma geringonça barulhenta chamada telefoto. Dali saía às vezes não uma foto, mas um borrão imprestável que nos obrigava a repetir todo o processo.

As matérias não eram digitadas em tela limpa e iluminada de computador, para transmissão fulminante via satélite. Todo o texto era batido na máquina de escrever, no máximo portátil, em laudas impressas que se empilhavam cheias de palavras cobertas pela letra X – a tecla que se usava para cobrir os erros de digitação e gramática, já que ainda não havia a miraculosa tecla delete dos computadores. Datilografada a matéria, o texto era redigitado por um teletipista na máquina de telex – um aparelho ponto-a-ponto que transmitia o texto de Porto Alegre para São Paulo, através de uma fita picotada que, em dia de sorte, não se rompia. Era preciso sorte.

Testemunha do momento decisivo

Não existiam câmeras ocultas, nem se usava gravador. Grampo era uma façanha tecnológica de alcance exclusivo da repressão. As conversas eram olho no olho, repórter e fonte, sem nenhum gravador como intermediário. Naqueles tempos inseguros, o microfone de um gravador produzia mais insegurança na conversa do que certeza no texto. Em mais de 600 dias de apuração, não existe uma única conversa gravada na série sobre o seqüestro.

Em tempos assolados pela praga que Alberto Dines apelidou de ‘jornalismo fiteiro’, é difícil imaginar que uma cobertura extensiva de 86 semanas tenha sido feita apenas com o suporte de escassa tecnologia, como canetas bic e cadernetas de anotações – além das pesadas câmeras Nikon convencionais armadas com teleobjetivas nem sempre discretas. Nada além disso. O resto – diria Ricardo Kotscho – era sola de sapato, acrescido de muita conversa, teimosia e persistência. Ainda que misturadas pelo medo endêmico daqueles tempos.

Na investigação do seqüestro muitas daquelas conversas feitas em off preservam o sigilo da fonte até hoje. Como já disse em outra oportunidade, o off não é um valor absoluto, intangível, dogmático. O off, como um medicamento eficaz, deve ser parcimonioso e pontual. Não pode ser uma droga que transforme o repórter e o jornalismo em dependentes crônicos, com o cérebro bloqueado e a pulsação alterada pelo vício continuado da informação anônima – que só excita o jornalismo irresponsável e cambaleia a credibilidade da informação.

O off é um escudo necessário quando está em jogo a integridade da informação, a segurança da fonte, o interesse da sociedade. Adélio Dias Sousa, o bilheteiro da Rodoviária que testemunhou um momento decisivo do seqüestro – a prisão da uruguaia Lilian Celiberti pelo delegado do Dops Pedro Seelig – não quis falar formalmente. Ao ser localizado pela equipe da revista, Adélio recusou-se a depor – para mim, como entrevistado, e para o promotor, como testemunha de acusação.

Amizades sólidas e novas fontes

Ele, como todos nós, tinha medo.

Adélio merecia ser protegido, não condenado. O perigo de retaliação era tão imediato que não se podia nem descrever a cena da Rodoviária. A simples menção poderia identificar a fonte aos policiais, já nervosos pela investigação persistente da imprensa. Naquele momento delicado, sabíamos que mais importante do que a informação era a proteção física do informante e a segurança de sua família. A vida é sempre maior do que o jornalismo, que a tem como missão. Ainda assim, a informação em off do bilheteiro foi crucial para confirmar detalhes do início do seqüestro em Porto Alegre, emprestando mais segurança à investigação. Sustentei este off durante longos quinze anos – até que Adélio se sentisse seguro, em 1993, para mostrar a cara e contar sua história no caderno especial (edição de Eduardo Pena) de Zero Hora e no documentário (direção de João Guilherme Reis) para a RBS TV que eu escrevi e apresentei como repórter e testemunha do caso.

Três décadas depois da primeira matéria sobre o seqüestro, descobri animado que algumas conversas difíceis naquela época ficaram menos complicadas, desobstruídas pelo tempo, ponderadas pela distância, depuradas no filtro da história e lapidadas na consciência de todos. Militares e paisanos, policiais e vítimas, gente do governo e da oposição, pessoas graúdas e figuras modestas falam agora com mais desenvoltura, embora ainda preservando a discrição, quando não o anonimato.

Outras informações me chegaram ao longo do tempo e a pesquisa sobre o episódio desencadeado em novembro de 1978 se aprofundou. A investigação foi detalhada e, para a rechecagem de dados e personagens inesperados, novas entrevistas foram feitas. Surgiram daí algumas das peças que faltavam na montagem do quebra-cabeça da investigação jornalística de trinta anos atrás. A necessidade de um espaço maior para a reportagem ampliada por novas revelações fez com que eu retomasse o antigo projeto de um livro-reportagem.

Uma mudança de cidade colaborou na evolução do livro. A partir de 1980, colocado diante de novos desafios profissionais, troquei Porto Alegre por Brasília, onde passei pelos cargos de direção de alguns dos principais órgãos de imprensa do país. Chefiei as sucursais brasilienses de Veja, IstoÉ, Jornal do Brasil, O Estado de S.Paulo, DCI e Zero Hora. Fui colunista político do Correio Braziliense, repórter político da coluna de Ricardo Boechat em O Globo e editor no Rio de Janeiro do ‘Informe JB’ do Jornal do Brasil. Este amplo e variado trajeto profissional me permitiu novas experiências, abriu horizontes, consolidou amizades e desbravou novas fontes que me seriam úteis na retomada do livro sobre o seqüestro dos uruguaios.

O ar viciado da rua Botafogo

A distância, no tempo e no espaço, só ajudou no amadurecimento do livro. Trinta anos depois, a 1.600 km de Porto Alegre, pude concluir uma narrativa mais fria, mais abrangente, mais detalhada, talvez mais implacável – mas certamente mais completa e verdadeira do que o relato que eu poderia fazer no final dos anos 70, no extremo sul do país, tão próximo das pessoas e das instituições envolvidas diretamente no episódio. A decantação dos anos e o distanciamento do centro dos eventos ajudaram a redesenhar os limites do seqüestro e a ajustar o foco do repórter. A verdade surgiu mais nítida no horizonte, sem sucumbir às emoções paroquiais. Pude, então, conhecer mais e melhor os fatos e os homens, corrigir versões, ampliar informações, esclarecer situações. O tempo aplacou as paixões e deu relevo ao que era fundamental. E a memória do seqüestro ganhou contundência.

No corpo deste livro reconstituo com detalhes inéditos o seqüestro de Lílian Celiberti e Universindo Díaz, indo além, antes e depois daquele encontro com os seqüestradores armados daquela sexta-feira, 17 de novembro. Faço um corte transversal no tempo, para não ficar confinado às paredes do apartamento da rua Botafogo. O que acontecia ali dentro era apenas um reflexo do que se passava lá fora. Não tinha começado naquela tarde, não acabava naquele lugar, não se reduzia a personagens secundários da polícia local. A cena de violência da rua Botafogo era o reflexo da grande política, dos grandes personagens e das grandes tragédias que moldavam o Brasil do final dos anos 70. Era apenas um retrato em branco e preto daqueles tempos cinzentos que o país procurava vencer, deixando para trás o sufoco da ditadura em busca do ar limpo da democracia.

Ninguém sabia o tempo dessa jornada, nem mesmo se aconteceria. A partir de 1978, o país ainda iria respirar o ar viciado da rua Botafogo por longos sete anos, até que o último general deixasse o Palácio do Planalto pela porta dos fundos, devolvendo o poder aos civis.

O fio caprichoso da história

Por isso, mais do que o relato de um seqüestro, esta é uma reportagem dos tempos da ditadura. Em primeiro plano, narro a seqüência dos eventos que vitimaram Universindo, Lilian e seus dois filhos, mas faço também uma incursão ao passado e atualizo a história do presente. Parto de meu testemunho de vida e de minha visão como repórter, mas também remonto episódios e cenários conforme me foram contados e descritos pelas personagens da narrativa, que tiveram voz, cara e coragem para me ajudar a reconstruir os acontecimentos.

Para não quebrar o fluxo dessa narrativa, evitei ao máximo o uso da nota de pé de página. Recorri a ela, em dose mínima, apenas quando foi necessário um esclarecimento pontual ou uma referência específica que reforçaria a credibilidade do relato sem prejudicar o ritmo da leitura.

Adicionei ainda dois Anexos. No primeiro refiz o cenário histórico do Uruguai, que compartilhava as mesmas dores e tragédias com o Brasil da época dos seqüestrados. No segundo resumi a trama da criação da ‘Operação Condor’, da qual o seqüestro de Porto Alegre é um raro exemplo no Cone Sul em que as vítimas sobrevivem – fortes e íntegras como a dura verdade que descrevem ao longo deste livro.

Neste livro, a história do seqüestro mistura-se à biografia das personagens, nem todas encontráveis na rua Botafogo, nem todas contemporâneas de 1978. Elas emergiram clandestinas em outros tempos, em lugares distintos do Cone Sul do continente – nas ruas do bairro porto-alegrense do Menino Deus, na paulistana rua Tutóia, na carioca rua Barão de Mesquita, na Automotores Orletti de Buenos Aires, nas colônias de terror da Dina chilena, nos centros de tortura de Montevidéu. É a biografia de cada um que traça o fio caprichoso da história.

Algumas biografias

Aparentemente, uma cena ou outra pode parecer repetitiva. É a mesma cena recontada pela testemunha do seqüestro, pelos seqüestrados e pelos seqüestradores. Um recurso deliberado de narrativa para contar a história de três perspectivas distintas, que convergem para uma verdade mais completa. Afinal, como repete sempre o repórter uruguaio Roger Rodríguez, la verdad es, la história puede ser.

É a integração desta tríplice visão que faz a junção da história com a verdade. A história narrada neste livro é a verdade que pode ser – e é.

O seqüestro de Porto Alegre destacou algumas biografias, rebaixou outras.

Eu lembrei de algumas delas, de outras também. Elas estão contadas nas páginas seguintes.

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Jornalistas viram o que não estava previsto que vissem

José Roberto Guzzo (*)

Muita coisa já foi dita sobre prefácios, em geral as mesmas, sem que se tenha chegado até hoje a alguma conclusão mais clara a respeito de sua real utilidade. Não são necessários, por exemplo, para dizer o que o livro contém, nem para apresentar a biografia do autor, coisas que aparecem no índice, nas capas ou em outros espaços. Também não servem para atrair a atenção do leitor, que quer ler o que está no livro, e não o que está no prefácio. Não se conhece até hoje, enfim, nenhum prefácio que tenha realmente melhorado um livro, embora seja certo que podem torná-lo pior. Mas aí está: os autores querem prefácios, os editores querem prefácios, as livrarias querem prefácios, e chega uma hora em que alguém é encarregado de escrever o prefácio. Vamos a ele, então.

Em novembro de 1978, na cidade de Porto Alegre, dois jornalistas viram algo que não deveriam ter visto – ou, mais exatamente, viram algo que não estava previsto que vissem. A partir daí, fizeram o que fazem os melhores profissionais deste ofício: foram saber o que, precisamente, estava acontecendo, quem estava envolvido, onde começava o fio da meada, como ele se desenrolava e por que, enfim, aquilo tudo tinha acontecido. O resultado foi uma empolgante seqüência de reportagens publicada na revista Veja, e que permanecem, até hoje, como um dos melhores trabalhos jornalísticos já exibidos em suas páginas. A história dessas reportagens, feitas pelo repórter Luiz Cláudio Cunha e pelo fotógrafo J. B. Scalco, é contada agora, passo a passo, nos capítulos que começam adiante.

O papel decisivo da imprensa

Jornalistas, em geral, não deixam uma obra, como acontece com escritores, ou, pelo menos, com bons escritores. Deixam matérias, apenas, e matérias são coisas que esgotam rapidamente o seu prazo de validade. Têm mais ou menos valor para os leitores, conforme sua qualidade, na época em que são escritas, mas logo perdem sua principal atração, a atualidade, e com o passar dos anos vão se tornando algo de interesse tão remoto como a batalha de Tuiuti ou os programas de governo do Visconde de Cairu. É a vida. Jornalismo é atividade que lida com coisas provisórias, que surgem, chamam atenção durante um certo tempo, e em seguida desaparecem, para dar lugar a outros assuntos e a outras preocupações. Provavelmente é melhor que seja assim mesmo, pois jornalistas não são treinados para escrever textos eternos; já está mais do que bom quando conseguem informar-se corretamente dos fatos e descrevê-los com clareza para o leitor no momento em que ocorrem.

O que se pode fazer para manter vivo um trabalho jornalístico é o que Luiz Cláudio está fazendo neste livro – com a vantagem de acrescentar ao relato da época aquilo que eventualmente ficou faltando, por causa da pressão dos prazos de fechamento, pelas limitações de espaço e por não se saber, no começo de uma história, tudo o que vai acontecer até o seu final. Além disso, ao reconstruir em toda a sua dimensão os fatos daquele momento, o autor ajuda a entender o presente, pois as páginas que se lerá a seguir envolvem, do começo ao fim, uma questão sempre atual: o papel decisivo da imprensa, e de repórteres como Luiz Cláudio e Scalco, para levar ao conhecimento geral atos que a autoridade pública não tem o direito de cometer e que gostaria de manter para sempre em segredo.

A outra metade da missa

No capítulo 15 é feita a transcrição de um texto escrito em Veja, no final de dezembro de 1978, pelo signatário deste prefácio; resume-se, ali, a postura da revista diante do que acabara de ocorrer. Basicamente, agentes da polícia, que são pagos para manter a ordem, tinham praticado um seqüestro. As autoridades podem seqüestrar gente? Não podem; está escrito na lei que não podem. Não podiam nem mesmo naquela época, que coincidia com a revogação do Ato Institucional nº 5. Se algo assim acontece, a imprensa tem de publicar – não porque a publicação deixaria constrangido um governo militar, mas porque o que aconteceu estava errado. Trinta anos depois, não há nada que se possa dizer de muito diferente.

O governo se queixa com freqüência, hoje em dia, do que chama de hostilidade, malícia ou negativismo da imprensa em relação ao poder público. A revista Veja, particularmente, é um alvo constante desses comentários. Mas o que ela faz hoje é o que fazia trinta anos atrás e nunca deixou de fazer neste tempo todo. Quanto aos governos, de qualquer época e qualquer orientação, mudam as pessoas, mas não muda a sua atitude essencial diante da imprensa: o que todos eles gostam, mesmo, é de elogio, e quando dizem o contrário estão mentindo. Se pudessem tirar das páginas da imprensa, a cada dia, tudo aquilo que não gostam, não hesitariam um minuto em fazer exatamente isso. O resto é conversa fiada, seja em governos militares de direita, seja em governos civis de esquerda.

Das reportagens, como da missa, o leitor só sabe a metade – a metade que foi escrita. A outra, que envolve a aventura pessoal do repórter para fazer seu trabalho, quase sempre permanece oculta. O texto publicado não revela as angústias, as esperanças frustradas, as horas passadas em salas de espera. Não fala das pistas que são seguidas e acabam dando em nada, das dúvidas quanto à certeza desta ou daquela informação (naquele tempo, era comum jornalistas terem dúvidas), das ameaças e das pressões. Nada diz sobre o cansaço, o custo cobrado da vida familiar ou a solidão que tantas vezes acompanha um repórter ao longo da realização de uma reportagem. Deixa de fora a adrenalina, as emoções e a alegria plena, pura e simples, direta na veia, quando se confirma uma informação vital para a matéria. Agora, numa reconstrução notável de tudo o que aconteceu naqueles dias, Operação Condor – O Seqüestro dos Uruguaios: Uma reportagem dos tempos da ditadura traz para o leitor a metade que não apareceu na época.

A imprensa não precisa de heróis.

Precisa de profissionais como Luiz Cláudio Cunha.

(*) Jornalista, foi diretor de redação de Veja (1976/1991)

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Olho no olho do condor

Juca Kfouri (*)

Difícil definir o que você lerá aqui.

Porque se trata, sem dúvida, de uma obra-prima.

Um primor de trabalho que, no entanto, melhor seria se não tivesse motivo para existir.

Luiz Cláudio Cunha nos traz de volta um pesadelo que ele viveu por dentro e que, graças à sua coragem, seu talento e sua persistência, trouxe à luz numa série de reportagens que honra a história do jornalismo brasileiro.

Faz 30 anos que tudo aconteceu, mas parece que faz 300.

Difícil acreditar que vivemos tudo o que Cunha descreve com a precisão de repórter raro e a precisão de cirurgião habilidoso.

Porque ele penetra fundo na podridão de toda uma época e amplia, com a visão de historiador, a cena de um humilde apartamento gaúcho que bem poderia se chamar Brasil, ou melhor, América do Sul.

Podridão bem ao gosto das garras e do bico deste abutre chamado condor, que espalhava terror com sua envergadura de maior ave do mundo pelos porões do submundo da repressão.

Juízes que dignificaram as togas

Pois Cunha olhou fundo nos olhos do condor, sentiu medo, muito medo e não se intimidou.

A simples releitura do que foi aquela série de reportagens publicada em Veja já justificaria a lembrança justa de um tempo que faz parte do lixo da humanidade, mas nem por isso Cunha se limitou a recontá-la simplesmente.

Ele a ampliou, a atualizou, fez novas descobertas e ainda a complementou com dois anexos que trazem de volta as sombras de um plúmbeo Uruguai e a escuridão de uma conspiração que cobre de vergonha os que dela participaram sob as asas da Operação Condor.

Sim, com dor, com sangue, com urina, fezes, assassinatos, desaparecimentos, torturas, algumas aqui descritas pela primeira vez, fruto da confiança que Cunha desperta e da sincera necessidade de deixar testemunhos para a posteridade.

Os personagens são um casal de uruguaios adultos, um casal de crianças uruguaias, uma dupla de policiais brasileiros, um sem-número de políticos e militares covardemente cúmplices de um enredo que não se sustentava em pé. E dois jovens jornalistas simplesmente devotados ao seu ofício de revelar a verdade dos fatos, com Cunha e o inesquecível repórter-fotográfico J.B.Scalco, o ‘Van Gogh dos pampas’, coadjuvados por advogados valorosos, outros tantos jornalistas abnegados, juízes que dignificaram suas togas, brava gente brasileira, que triunfou.

O melhor sobre os anos de chumbo

Sim, que ironia, que triunfou.

Porque ao contrário do que um dia pareceu, a verdade veio à tona e a história pode ser contada não pelos algozes que apenas acabaram por assim ser retratados, como bestas feras relegadas ao papel de ler aqui suas desgraçadas biografias. Gente que não merece o benefício da dúvida porque as dúvidas Cunha as dirime todas, nem muito menos do perdão.

Difícil descrever o que você lerá aqui.

Melhor teria sido se nada nem parecido tivesse acontecido ontem, três curtas décadas atrás.

Bem melhor seria que estas linhas, à guisa de pobre prefácio, exaltassem a arte ficcional de um novo escritor da literatura fantástica latino-americana.

Mas, não!

O que você lerá a seguir aconteceu passo a passo, choque a choque, até que o repórter o iluminou com a restauradora luz da verdade.

Verdade de um tempo em que jornalismo investigativo era sinônimo de risco de vida e que a tecnologia da tortura era mais avançada do que a da transmissão de dados.

Tempos de escrever em laudas e transmitir por telex, mas de choques elétricos na genitália.

Tempos em que não se sonhava com as pedaladas de Robinho, mas que se padecia com os Didi Pedalada, Seligs e Fleurys, além de generais que emporcalharam suas fardas e de governadores biônicos que não honraram suas calças.

Uma verdade para não ser esquecida jamais, pelos nossos filhos, pelos nossos netos. E em homenagem a Scalco, Lilian Celiberti, Universindo Díaz, Francesca e Camilo e a todos que padeceram nas mãos dos torturadores.

Uma verdade que, mais uma vez, todos devemos a este exemplar Luiz Cláudio Cunha, que há muito orgulha seus contemporâneos.

O Operação Condor – O Seqüestro dos Uruguaios: uma reportagem dos tempos da ditadura passa a fazer parte do que de melhor se escreveu sobre os anos de chumbo deste nosso lado do mundo.

(*) Jornalista, foi diretor de redação das revistas Placar (1979-1985) e Playboy (1991-1995)

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Jornalista