Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um jornalista de ousadia e irreverência

Os livros são pacientes pela espera da leitura. Compram-se num dia de primavera ou outono, para penetrarmos nos segredos de suas páginas na tarde ou noite posterior. Por motivos alheios à nossa vontade, adiamos o projeto. Ficará para o próximo inverno ou verão. E nos servirá de companhia, com a neve do Rio Grande do Sul, agasalhados com a melhor lã, ou no calor das praias nordestinas, debaixo de uma árvore e expostos ao sopro do vento que vem do mar.

Ao chegarmos à nossa casa, recebe um destino certo, a biblioteca, misturado a outras obras. Permanece silencioso, em abandono e ofendido. A compra se constituiu num bom investimento. Simplesmente priorizamos outros, levados da livraria antes ou pelo interesse no assunto.

Há algo de misterioso nessa relação livro-leitor. A capa e as orelhas atraentes, a contracapa, com resumo chamativo, tal e qual o assunto, geralmente com elogios a quem o escreveu e mais a foto do autor, nos conduzem a um ambiente de culpa. A foto demonstra incriminar pelo descaso. Parece voltada para nós, chamando a atenção pelo desprezo.

Passamos ao questionamento sobre a compra do livro e o porquê de ainda não o ter lido, já que o fizemos primeiro, com outros que chegaram depois… Aquele olhar do autor é inquisidor. Leva-nos a pensar que estamos esnobando a sua literatura, ou seja, o que for.

Peçonha pronta para o bote certeiro

Aconteceu comigo, entre mim e Joel Silveira (Lagarto, Sergipe, 1918-2007, Rio). Passei numa livraria, faz tempo, olhei o título: A milésima segunda noite da Avenida Paulista, de autoria desse jornalista, e mais o lembrete sobre o conteúdo: reportagens, perfis e entrevistas do repórter que mudou o jornalismo brasileiro. Não pensei duas vezes e o comprei, com a promessa de ao voltar para casa abrir a obra, que sabia do valor e capaz de provocar bons momentos. Com ela enriqueceria meus conhecimentos ligados ao jornalismo, a respeito dos anos quarenta do último século, quando se faziam grandes reportagens.

A fera sergipana era capaz de promover esse feito. Os improvisos, as provocações e o humor cáustico são desconcertantes e ainda amedrontam. Ninguém escapava. E eu, desconhecido mortal, ‘esnobando’ o Joel, a quem tanto admiro, e ele, de olho voltado para mim, com aquele jeito de ‘víbora’, como o classificou o seu ex-chefe, o todo poderoso Assis Chateaubriand, o nosso Cidadão Kane (1941), que Orson Welles imortalizou no cinema, ao interpretar o personagem da vida real, William Randolph Hearst, o magnata da comunicação norte-americano.

Faço as pazes com o filho ilustre de Lagarto e leio o livro de um só fôlego. Não apenas pela beleza dos textos, como um meio de me redimir, por tê-lo deixado no congelador por um bom tempo. Quem perdeu, fui eu. Verdadeiramente, Joel é puro prazer, estilo fora do convencional, escrachado, as frases soam como sinfonia, som da melhor MPB, em qualquer ritmo. É uma companhia agradável. Valia uma noitada com ele, próximo do uísque que tanto apreciava, com aquele corpanzil, na faixa dos oitenta. Soltou a língua até os últimos dias de vida. Quem não quisesse ouvir que não o provocasse. A peçonha estava sempre pronta para o bote certeiro e mortal, de acordo com a dose do veneno.

Encerramento compulsório

O sergipano esperto soube se sair quando um outro jornalista genial, Carlos Lacerda, lhe fez uma proposta (muy amiga) para driblar a censura da ditadura do governo de Getúlio Vargas (1937-1945). O corvo, como ficou conhecido CL, que trabalhava na Revista Acadêmica, propôs-lhe que fizesse um artigo no semanário Dom Casmurro arrasando ao respeitável pintor Portinari. Depois de publicado o texto, passariam a entrevistar pessoas de segmentos sociais e políticos diferentes.

Joel com aquele jeito nordestino, fala mansa e bom de improviso respondeu sem se esquecer da vaselina:

‘Claro que topo, acho a sua ideia ótima. Só que nós vamos trocar. Você esculhamba e eu defendo no Dom Casmurro.’

Papo encerrado. Não falaram mais no assunto. Joel não esperou muito para criar um problema que levou Diretrizes, uma das melhores publicações de todos os tempos, dirigida por Samuel Wainer, a encerrar compulsoriamente as atividades pela ação impiedosa do DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda. Samuel fugiu para os EUA e Joel foi veranear em Lagarto.

‘Um dos homens mais perigosos do país’

O que aconteceu? Escalado para entrevistar Monteiro Lobato, escritor, editor e jornalista ‘recolhido aos costumes da ditadura’ numa cela com bandidos, por dizer o que não devia. Sim, ML afirmou que havia petróleo no Brasil. Só não previu que o índio e presidente da Bolívia, Evo Morales, levaria sob pressão uma parte desse patrimônio instalado naquele país. Pior: ainda debochou da nossa cara, com o aval do presidente Lula.

Lobato, um visionário, não viveu para conhecer a potência que é a Petrobras no mundo. Na reportagem, aproveitou para se vingar dos seus carrascos. Ironizou o governo, a política externa, a violência e confessou, como desafio, que nunca passou uma temporada tão divertida como essa na cadeia. Lá, pôde ler e conversar sobre muitos assuntos, inclusive sobre botânica, com um especialista, e como furtar galinhas. Joel com essas declarações extraiu esta manchete que alvoroçou o terreiro da ditadura:

‘O governo deve sair do povo como a fumaça da fogueira.’

Foi o bastante para o semanário Diretrizes dizer adeus. De volta ao Rio de Janeiro, desempregado, atendendo a um convite de Assis Chateaubriand, foi trabalhar nos Diários Associados. Chato, que o apelidou de ‘víbora’, e com ele teve que conviver até depois de morto, dirigiu-lhe palavras irreverentes, como era o seu costume:

‘Seu Silveira, o senhor é um dos homens mais perigosos deste país, tem que vir trabalhar conosco. Diga quanto é que o senhor quer ganhar e vá se entender com o doutor Lacerda, lá embaixo na meridional.’

Ficção, realidade e literatura

O poderoso chefão dos Diários Associados ficou impressionado com uma desaforada reportagem de repercussão nacional que Joel fez para Diretrizes sobre a alta sociedade paulista: ‘Grã-finos em São Paulo’, na qual ele espicaçava os ricos, ridicularizava-os sem piedade e não omitia o luxo exagerado das mulheres e suas futilidades pelo uso, inclusive, do ‘chapéu de penacho’.

Chatô gostava do lagartense e deu-lhe uma nova missão, ou uma quase-ordem, ao comunicar-lhe que seria correspondente dos Associados na 2ª Guerra Mundial, na Itália, junto à Força Expedicionária Brasileira, com estas palavras:

‘O senhor vai para a guerra, mas não me morra, seu Silveira. Não morra. Repórter é para mandar notícias. Não é para morrer.’

Depois de dez meses, retornou da Itália para enfrentar uma nova missão. Esta mais prazerosa. Chateaubriand brigava com o conde Francisco Matarazzo Jr., milionário paulistano, por questões empresariais, com a ameaça deste ‘nobre’ em instalar jornais que concorreriam com os Associados etc. Ao saber que a filha do conde, Filly, ia se casar com o milionário carioca João Lage, evento anunciado como ‘a festa do século’, destacou Joel Silveira para fazer a cobertura. Convite que era bom, nada. As notícias chegaram ao jornalista pelo pintor Di Cavalcanti e ele se encarregou de inventar o resto. Apelou para o que se convencionou chamar de o novo jornalismo, mistura de ficção, realidade e literatura. O título, não podia ser mais sugestivo: ‘A milésima segunda noite da Avenida Paulista’. Eu o esnobei e hoje trago a público pela beleza do conteúdo.

A ‘grande reportagem’

A história não acaba só com o casamento da Filly. Chatô, vingativo, ao saber que nesse mesmo dia havia um matrimônio de um casal de operários da fábrica do conde Matarazzo, exigiu de Joel que desse o mesmo espaço para o rico e o pobre. Com esta ressalva: quem pagou a mordomia milionária do casamento de Filly com João Lage foram os operários, que trabalhavam dia e noite para ganhar um salário de miséria e enriquecer cada vez mais os bolsos dos Matarazzo. Eram tempos da 2ª Guerra Mundial. O consumo e a necessidade aumentavam sem parar, principalmente em São Paulo, onde as fábricas funcionavam dia e noite.

Chateaubriand vingou-se e sorria com essa vitória. E Joel Silveira passou à história como um dos grandes repórteres do seu tempo, ostentando, com certo orgulho o apelido de ‘víbora’. O jornalista Fernando Morais, que se especializou em biografias, fez considerações sobre a grande reportagem, explicando no posfácio da obra:

‘O livro que você acaba de ler retrata o surgimento no Brasil, do gênero jornalístico chamado `grande reportagem´ – depois rebatizado como `novo jornalismo´, `jornalismo investigativo´ e, como diz o título desta coleção, `jornalismo literário’. ´´E verdade que a primeira grande reportagem de que se tem notícia no Brasil é muito anterior – o monumental Os sertões, de Euclides da Cunha, publicada originalmente no jornal O Estado de S. Paulo em 1902.’

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Professor universitário (ex-UFMA) e jornalista