Um historiador que jamais abriu mão de fazer intervenções incisivas no presente, o britânico Tony Judt procurou em sua obra compreender e atualizar a figura do intelectual público, que via como um símbolo do século XX hoje em decadência. Desde os primeiros trabalhos, sobre a vida intelectual francesa após a Segunda Guerra Mundial, até seu livro mais recente, Ill fares the land (2010, inédito no Brasil), Judt refletiu sobre as possibilidades e os limites da atuação dos pensadores na esfera social.
Coerentemente, foi sempre uma voz ativa em questões candentes como o conflito entre Israel e Palestina (seu apoio à criação de um Estado binacional rendeu-lhe críticas da comunidade judaica), a guerra global ao terrorismo e o futuro da social-democracia, da qual foi um dos defensores mais eloquentes.
Diagnosticado em 2008 com uma doença degenerativa, a esclerose lateral amiotrófica, até sua morte na última sexta-feira (6/8) Judt não renunciou à atividade pública, através de ensaios e entrevistas ditados a assistentes.
Seu último texto, publicado há menos de um mês na The New York Review of Books, refletia sobre sua relação com as palavras: ‘Não sendo mais capaz de exercitá-la por conta própria, observo mais do que nunca o quão vital é a comunicação: não apenas o meio pelo qual vivemos juntos, mas parte do próprio significado de viver junto.’
Convidados da Flip elogiam combatividade
A notícia da morte de Judt foi um dos principais assuntos ontem [8/8] no encerramento da oitava edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Há dois anos, ele havia sido convidado para o evento, mas cancelou a participação depois de receber o diagnóstico da doença.
Um dos participantes da Flip este ano, o editor John Makinson, da Penguin Books, que publica as principais obras de Judt nos Estados Unidos, destacou a importância daquele que costuma ser apontado como o livro essencial do historiador: PósGuerra – Uma História da Europa desde 1945 (Objetiva), um amplo painel de meio século de transformações políticas e sociais no continente:
– É um trabalho fantástico, que alia uma narrativa abrangente a pequenas histórias que ilustram e iluminam os grandes temas discutidos. Judt será certamente lembrado como um dos maiores historiadores das últimas décadas.
O historiador britânico Peter Burke, que participou de dois debates nesta Flip, lembrou a combatividade de Judt:
– Tony Judt fez uma História do presente. Ele se empenhou em ler nossos dias à luz do passado. Sempre admirei a forma como fazia suas intervenções públicas. Foi um intelectual ativo, que teve coragem de falar até o final – observou Burke.
Professor da New York University (NYU) desde 1987, Judt também dirigia desde a sua criação, em 1995, o Instituto Remarque, de estudos europeus, vinculado à universidade. Com a ajuda de assistentes e colaboradores, manteve intensa produção acadêmica durante os anos de doença, publicando textos e debatendo linhas de pesquisa.
A última aparição pública de Judt foi numa palestra na NYU, em outubro do ano passado. De cadeira de rodas, Judt falou para uma plateia de 700 alunos sobre a social-democracia. Nessa aula sobre a evolução da socialdemocracia na Europa no século XX, Judt pergunta: ‘Por que será que nos Estados Unidos temos tanta dificuldade em sequer imaginar um tipo de sociedade diferente daquela cujos problemas e desigualdades nos perturbam tanto?’. O historiador Angelo Segrillo, professor da USP, diz que ‘o grande papel do intelectual público Tony Judt’ foi sua defesa incansável da social-democracia:
– Ele defendia valores europeus, social-democratas, em um ambiente geográfico (lecionava nos EUA) e em tempos em que estes valores estavam sob ataque.
Coragem para desafiar consensos e rótulos
Outra historiadora brasileira, Mary Del Priore, destaca a coragem de Judt em desafiar consensos e rótulos:
– Todos que procuram o modelo de um intelectual capaz de pensar sem amarras e de lutar constante e ferozmente contra as etiquetas, hão de encontrá-lo na figura ímpar e humanística de Tony Judt.
Em entrevista ao jornal britânico The Guardian, Judt comentou as consequências de sua independência intelectual: ‘Hoje sou visto fora da New York University como um esquerdista maluco, um comunista judeu que odeia a si mesmo; dentro da universidade, sou visto com um típico liberal, elitista e antiquado. Gosto disso.’
Algumas vezes, Judt teve que enfrentar a ira da comunidade judaica de Nova York, devido às suas críticas a Israel. Mas para o historiador Bernardo Kocher, professor da UFF, Judt era uma figura rara por ser um crítico de Israel que conhecia o país em detalhes (foi sionista na juventude) e fazia intervenções equilibradas no debate sobre o Oriente Médio.
Judt era descrito pelos estudantes como um professor exigente e que gostava de provocar.
Sua doença mobilizou os alunos a ponto de eles criarem um blog para arrecadar fundos para a busca da cura da esclerose lateral amiotrófica. Robert Silvers, editor da The New York Review of Books, acredita que alguns dos melhores artigos de Judt foram produzidos durante a doença. ‘A intensidade do esforço e a coragem necessárias para chegar à capacidade de produzir esses trabalhos é algo difícil de imaginar. Uma grande vitória para ele’, disse.
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Autor deixou dois livros inéditos
O historiador Tony Judt deixou dois livros inéditos, disse ao Globo ontem [8/8] o editor John Makinson, da Penguin Books.
O primeiro é um volume de entrevistas com o historiador Timothy Snyder, intitulado Thinking the Twentieth Century (‘Pensando o século XX’). Neste livro, Judt reflete sobre sua trajetória intelectual e discute os principais temas de sua obra.
O segundo livro é uma coletânea de ensaios publicados na The New York Review of Books nos últimos anos, que inclui textos políticos e as memórias que Judt vinha publicando desde o início do ano. Nestes últimos artigos, o historiador falava da doença de forma sincera e sem sentimentalismo.
O último livro publicado por Judt, Ill fares the land, que o historiador disse ter escrito especialmente para os jovens, será lançado no Brasil pela Objetiva, que também publica Pós-guerra: Uma História da Europa desde 1945 e Reflexões sobre um século esquecido.
Também está editado no Brasil o livro Passado imperfeito (Nova Fronteira). (G.F.)