Transcorridos tantos anos, ele ainda é um verdadeiro ícone da literatura alemã. Entre seus fiéis admiradores, alinhava-se ninguém menos que o filósofo revolucionário Karl Marx, seu fraternal amigo. Como ele, Marx nascera na Renania, no interior de uma família judaica, convertida posteriormente ao protestantismo. Uma curiosidade: ao sair de Paris, onde se refugiara, Marx declarou que a única coisa que gostaria de levar da cidade, afora os seus familiares, seria esse seu amigo, assíduo freqüentador de sua casa. Era, como Marx, um ativo simpatizante das causas populares. Um eterno rebelde.
Poeta talentoso, de um lirismo por vezes pungente, o nosso escritor dedicou aos operários da Silésia o primeiro poema inspirado em uma revolta proletária da história da literatura, Os tecelões:
Sem lágrimas em teares que tremem
tecemos e batemos os dentes.
Alemanha, tecemos nesta ocasião
aqui a tua mortalha e a tríplice maldição
Tecemos. Tecemos.
Maldição ao Deus falso, ao qual rezamos
enquanto o frio e a fome agüentamos.
Em vão confiamos e esperamos;
tem fraudado, mentido e enganado.
Tecemos. Tecemos.
Maldição ao rei o rei dos ricos,
o monstro que traga os peixes pequenos;
que nos oprime, explora e tonsura
e, como aos cães, nos fuzila.
Tecemos. Tecemos.
Maldição à Pátria falsa e funesta,
que só à vergonha se presta,
que a toda flor precocemente esmaga,
e ao verme alimenta em podridão nefasta.
Tecemos. Tecemos.
Voa a lançadeira e treme o tear.
Tecemos com dedicação sem cessar.
Alemanha de ontem, nesta ocasião,
eis a tua mortalha e a tríplice maldição.
Tecemos. Tecemos.
Boêmio, era apreciador de bons vinhos, mesa farta e belas mulheres (não forçosamente nesta ordem). Homem despido de muitos dos preconceitos que marcavam então a sua época, desafiou a sociedade bem-posta, dividindo o mesmo teto com uma prostituta parisiense. Se ainda hoje isso demanda uma certa coragem, imagine o leitor o rebuliço que causava uma opção dessas na primeira metade do século 19.
Ele foi, também, o jornalista mais brilhante de sua geração. Destemido, não hesitou em escrever, a propósito das veleidades literárias do Rei da Baviera, que ‘Sua Majestade é entre os poetas aquilo que a bunda é entre as caras’. Forte, muito forte realmente – mas não necessariamente injusto.
Chama acesa
O nosso escritor deixou vários relatos de suas andanças pela Alemanha, de grande sucesso de público. Amava o seu país como poucos; compreendendo-lhe a alma profunda. E dedicou à sua terra versos como estes reproduzidos abaixo:
A terra é dos russos e dos franceses
Aos ingleses pertencem os mares
Mas a nós ninguém disputa
O reino etéreo dos sonhos
Contudo, o que mais impressiona o leitor de hoje é a visão que ele teve do futuro político da humanidade. Como pôde o poeta enxergar tão longe, acertar tanto – é o caso de se perguntar. Como?
Vale a pensa conferir de perto. Assim, o nosso literato foi o primeiro homem a prever a eclosão de uma ‘revolução européia, uma revolução mundial, o grande duelo dos pobres com a aristocracia dos proprietários’. Atenção: isso, no ano de 1842, ou seja, seis anos antes de o Manifesto do Partido Comunista, de K. Marx e F. Engels, começar a rondar a Europa…
Mais: ele publicou com todas as letras que os Estados Unidos da América e a Rússia dividiriam a arena de influência política internacional, com a conseqüente perda de importância das potências européias da época, como Inglaterra e França, por exemplo. E, além disso, alertou o mundo para a onda de violência política que poderia surgir na Alemanha um dia. Ora, a odiosa experiência nazi-fascista marca ainda hoje aquele país europeu.
Mas, cá para nós, quem foi esse poeta que o filósofo Nietzsche considerava um verdadeiro ‘acontecimento europeu’, tamanha era a sua inteligência e o alcance dos seus propósitos e argumentos? Que teve seus versos musicados por Schubert, Schumann e Brahms, a nata dos compositores eruditos do seu tempo? Quem foi esse crítico literário que o espanhol Angel Prat garantiu aos seus leitores ter sido aquele que inaugurou ‘a época moderna da crítica cervantina’? Quem foi esse homem que, sem ser crítico musical sequer, tornou-se o primeiro a reconhecer de fato o gênio de um certo Frédéric Chopin? Finalmente, quem foi esse contestador exilado na França, país onde viria a falecer aos 58 anos de idade, mantendo contudo acesa a chama dos seus ideais de juventude?
A esta altura, o leitor já deve saber de quem se trata. Isso mesmo: o alemão Heinrich Heine, que se autodefinira, em um de seus versos, como alguém que…
‘Desperta a gente que dorme ainda…’
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Historiador e autor, entre outros, de Memorial dos Palmares, Brasil, 500 anos em documentos e Velho Chico mineiro