Não se percebe, na classe jornalística, a preocupação, a atitude e a firmeza esperadas contra a tentativa do compositor e intérprete Roberto Carlos de proibir a circulação do livro Roberto Carlos em detalhes, biografia escrita com muito critério por Paulo César de Araújo [ver, neste Observatório, ‘Justiça aceita censura da biografia do cantor‘ e ‘O Rei Roberto Carlos, de novo‘]. Se o mal não for cortado pela raiz, isso que está acontecendo na literatura vai se alastrar para a imprensa e logo qualquer notícia, mesmo verdadeira, que for considerada indesejada ou meramente desconfortável pelo personagem retratado, pode gerar processos absurdamente vitoriosos.
Não se pode permitir que a indústria do processo invada as comunicações, cerceando a democracia, a liberdade de expressão e, conseqüentemente, estrangulando ainda mais um mercado que sobrevive a duras penas. Fazer vista grossa ao que está acontecendo, como se a literatura jornalística nada tivesse a ver com o jornalismo propriamente dito, é um erro grave, omisso e indolente que um dia cobrará seu preço.
O sonho da ‘casinha’
Se Roberto Carlos for bem-sucedido no intento de tirar de circulação um livro sobre sua vida – o qual, ele mesmo admite, não traz nenhuma inverdade –, então ele, seus advogados e os juízes que derem ganho de causa a essa sandice estarão assinando o atestado de óbito das biografias não autorizadas.
Já imaginaram o tamanho do retrocesso? Nem nos tempos mais cruéis da ditadura militar se viveu tamanho cerceamento da liberdade de comunicação. Então, ao querer conhecer mais profundamente a vida de seu ídolo, o público só pode ter acesso aos fatos aprovados por este? Ora, é fácil prever como serão as biografias a partir de agora no Brasil: todas panegíricas, chapas-brancas, auto-elogiosas, enfim, mentirosas.
Há cerca de 20 anos que Roberto Carlos não compõe uma música decente. Mas ainda tem muitos fãs. Por quê? Porque sua história é apaixonante. O menino pobre de Cachoeiro de Itapemirim, que perdeu uma perna ao ser atropelado por um trem e tinha o sonho de ser cantor famoso para fugir da pobreza e comprar uma casinha para a mãe, costureira, se transformou no rei da Jovem Guarda, comandou – pela então líder de audiência, TV Record – o programa obrigatório para todos os jovens e compôs dezenas de canções que, mesmo ingênuas, ecoavam no Brasil – o que Elvis Presley, Beatles e Rolling Stones faziam, com muito maior qualidade, lá fora.
E por que tanto se sabe da vida de Roberto Carlos? Porque ele mesmo fazia questão de reafirmar, nas inúmeras entrevistas que dava, o desejo de comprar a tal casinha para a mãe, costureira. Usava todo o espaço disponível na mídia para engajar os fãs no sonho da tal ‘casinha’.
Imortal e intocável
Então, enquanto foi conveniente, Roberto Carlos divulgou sua vida particular. Agora, que já comprou inúmeras casinhas, iates e quetais, as informações sobre sua vida precisam de censura prévia. Absurdo.
Quem não quer saber por que Roberto Carlos colocou no filho o nome de Segundinho? Será que ele acreditou tanto na imprensa que passou a se julgar mesmo um rei? E que avassaladores motivos místicos o fizeram mudar um verso da música É preciso saber viver (‘se o bem e o mal existem’) para o assombroso ‘se o bem e o bem existem’. E por que tudo na sua casa tinha de ser azul, ou branco? Como será que ele convenceu (ou obrigou?) sua mulher, Miriam Rios, a ter um guarda-roupa todo alvi-celeste?
Tenho o direito e quero saber o que passa na cabeça do meu ídolo de infância. Mas não quero que ele diga, pois aí ele pode contar lorotas, dar a sua versão, que é no mínimo suspeita. E se meu velho ídolo já não estiver bem de cabeça? E se, depois de rei, ele estiver se julgando imortal e intocável? Nem a rainha da Inglaterra impede que sua vida seja vasculhada; por que o nosso rei do iê-iê-iê acha que tem o direito de fazê-lo?
Cala-boca de um milhão
Aliás, o ídolo no Brasil tem esse problema. Lambe as botas do jornalista para se tornar famoso. Depois, com raras exceções, trata a imprensa com desdém. No show business – esportes e tevê, principalmente –, onde o nível cultural dos envolvidos geralmente deixa a desejar, a situação é flagrante.
Sabe aquela história de que um dia pegaram o cara do outro bairro e você ficou quieto, porque era longe? Depois pegaram outro na rua do lado, depois na sua rua, depois levaram o seu vizinho – e você sempre calado, dando de ombros, porque não era você. Até que uma noite bateram à sua porta… Pois é, essa opressão aos escritores de biografias está chegando perto, está apertando o cerco e é uma atividade essencialmente jornalística. Até quando a classe e o Sindicato dos Jornalistas vão fazer de conta que não é com eles?
O primeiro caso, bastante polêmico, salvo erro, foi o de Ruy Castro, com o seu Estrela Solitária: Um brasileiro chamado Garrincha, de 1995. Todos sabemos da precisão da pesquisa, do cuidado ético do notável jornalista e escritor, que foi movido pela paixão a Garrincha e ao Flamengo ao fazer o livro. Pois isso não impediu que fosse processado pelas filhas do inesquecível Mané. Foram alertadas por advogados oportunistas de que o livro era uma oportunidade de ganhar dinheiro, ou ‘tirar’ dinheiro da editora, e não pensaram duas vezes.
‘Eles (os advogados) processaram a editora alegando que não houve autorização para falar sobre o Garrincha. Só retirariam o processo se fosse pago 1 milhão de reais. A editora, para não abrir um precedente perigosíssimo, preferiu enfrentar o processo, que se arrasta até hoje’, disse o autor numa entrevista, em janeiro de 2006.
Histórias de Tim Maia
Não se pode culpar quem processa, na verdade, e sim aos senhores da Justiça que dão guarida a tais processos. Será que esses senhores não têm compromisso algum com a democracia e com a liberdade? A não ser que haja mentiras deslavadas, calúnia e difamação, que motivos poderá haver para o crime incomensurável de impedir que um livro chegue às mãos do público? Isso cheira mal. Cheira a fogueira. Cheira a Inquisição.
Felizmente, Ruy Castro pôde continuar no seu nobre ofício de resgatar a história popular deste país e nos brindou ainda com obras obrigatórias, como Ela é Carioca (1999), A Onda que se Ergueu no Mar (2001) e Carmen: Uma biografia (2005), entre outras. Seria uma grande perda se Ruy, ou sua editora, se enchessem de tanta aporrinhação e partissem para outros caminhos.
No momento, além do escritor Paulo César Araújo, autor do livro Roberto Carlos em detalhes – muito elogiado por fãs do cantor, diga-se de passagem –, o jornalista Achel Tinoco também está tendo dificuldades com outra biografia. Ele escreveu Até parece um sonho, com histórias de Tim Maia contadas por Fábio, ou João Zenón Rolón, cantor dos anos 60 e amigo de Tim.
Quintal do jornalismo
A família de Sebastião Rodrigues Maia, o popular Tim Maia, também quer impedir a distribuição do livro. Se isso virar moda, serão enormes os prejuízos, não só para o mercado literário – que já sobrevive com grandes dificuldades neste país de big brothers e big macs –, como para o jornalismo, a história e o conhecimento em geral.
O que impedirá que uma revista, ou um jornal sejam retirados das bancas porque trazem informações inconvenientes para esta ou aquela pessoa importante? O que impedirá que imagens ou fatos referentes a personagens históricos sejam bloqueados por seus descendentes? O que impedirá, por exemplo, que o tataraneto de uma personalidade do passado não processe um veículo de comunicação alegando ‘invasão de privacidade’ de seu antepassado?
Lanço aqui a idéia de uma campanha de assinaturas a favor da liberdade das biografias não autorizadas. Sem elas, não se contará a verdadeira história das pessoas que fazem a história deste país. Bem que este Observatório poderia encampar esta luta, que hoje é dos escritores, mas amanhã será travada no quintal do jornalismo.
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Jornalista e escritor, São Paulo, SP