Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Um repórter no olho do furacão

Este livro é um momento condensado da história — tal como a vi. Não pretende ser mais do que um relato detalhado da revolução de novembro, quando os bolcheviques, à frente dos trabalhadores e soldados, tomaram o poder na Rússia e o colocaram nas mãos dos sovietes.

Naturalmente, grande parte dele se refere à ‘Petrogrado Vermelha’, capital do país e coração da insurreição. Mas o leitor deve levar em consideração que o que se passava em Petrogrado se reproduzia de modo quase idêntico, com maior ou menor intensidade, com diferentes intervalos de tempo, em toda a Rússia.

Neste livro, o primeiro de vários que estou escrevendo, devo ater-me à crônica dos acontecimentos que eu mesmo observei e de que participei ou que possuem testemunhos dignos de fé. Ele é precedido por dois capítulos que resumem brevemente as origens e as causas da revolução de novembro. Estou ciente de que esses dois capítulos são de leitura difícil, mas são essenciais para entender o que virá depois.

Muitas perguntas surgirão na mente do leitor. O que é bolchevismo? Que tipo de estrutura governamental os bolcheviques criaram? Se lutaram pela Assembleia Constituinte antes da revolução de novembro, por que a dissolveram depois, pela força das armas? E, se a burguesia se opunha à Assembleia Constituinte até que o perigo bolchevique se tornasse evidente, por que a defendeu depois?

Essas e muitas outras perguntas não podem ser respondidas aqui. Em outro volume, De Kornilov a Brest-Litovsk, retraço o curso da revolução até a paz com a Alemanha. Ali exponho a origem e as funções das organizações revolucionárias, a evolução do sentimento popular, a dissolução da Assembleia Constituinte, a estrutura do Estado soviético, assim como o desenrolar e o cenário posterior às negociações de Brest-Litovsk…

Ascensão inevitável

Quando se pensa no avanço dos bolcheviques, é preciso entender que a vida econômica russa e o exército russo eram o resultado de um processo iniciado bem antes, em 1915. Os reacionários corruptos que controlavam a corte do tsar atuavam deliberadamente para arruinar a Rússia a fim de levá-la a fazer um acordo de paz em separado com a Alemanha. A falta de armas nas frentes, que provocara a grande retirada do verão de 1915, a falta de comida nos exércitos e nas grandes cidades, a desorganização da indústria e dos transportes em 1916 — tudo isso, sabemos agora, fazia parte de uma gigantesca campanha de sabotagem. A revolução de março pôs um fim a ela, a tempo.

Nos primeiros meses do novo regime, apesar da confusão inerente a qualquer grande revolução, quando 160 milhões de pessoas dentre as mais oprimidas do mundo obtiveram de uma hora para outra a liberdade, tanto a situação interna do país como o poder de combate de seu exército realmente melhoraram.

Mas a lua de mel durou pouco. As classes proprietárias almejavam uma revolução apenas política, que lhes transferisse o poder do tsar. Queriam a Rússia como uma república constitucional, como a França ou os Estados Unidos; ou uma monarquia constitucional, como a da Inglaterra. Do outro lado, as massas populares queriam uma autêntica democracia industrial e agrária.

William English Walling, em seu livro Russia’s Message [A mensagem da Rússia], um relato da revolução de 1905, descreve muito bem o estado moral dos trabalhadores russos, que mais tarde apoiariam quase unanimemente os bolcheviques:

Eles [os trabalhadores] viram que era possível, mesmo com um governo livre, caso este caísse nas mãos de outras classes sociais, eles continuarem a passar privações…

O trabalhador russo é revolucionário, mas não violento, nem dogmático ou desinteligente. Está disposto a lutar nas barricadas, mas estudou-as e, fato único entre os trabalhadores do mudo inteiro, fez isso a partir de sua própria experiência concreta. Está preparado e quer enfrentar seu opressor, a classe capitalista, até o fim. Mas ele não ignora a existência das outras classes. Exige apenas que elas tomem a posição de um lado ou de outro no difícil conflito que se avizinha…

Eles [os trabalhadores] estavam todos de acordo quanto ao fato de que nossas instituições políticas [norte-americanas] eram preferíveis às suas, mas não ansiavam por trocar um déspota por outro (ou seja, a classe capitalista)…

Se os trabalhadores da Rússia foram fuzilados e executados às centenas em Moscou, Riga e Odessa, aprisionados aos milhares em todo país, exilados no deserto ou nas regiões árticas, não foi para trocar a sua situação pelos privilégios duvidosos dos trabalhadores de Goldfields ou Cripple Creek…

Eis por que na Rússia, em meio a uma guerra no exterior, a revolução política desembocou em revolução social, culminando com o triunfo do bolchevismo.

A. J. Sack — diretor, neste país [Estados Unidos], da Agência Russa de Informação, que faz oposição ao governo soviético — afirma, em seu livro The Birth of the Russian Democracy [O nascimento da democracia russa], o seguinte:

Os bolcheviques organizaram o seu próprio gabinete, com Nicholas [conforme original] Lênin como Premiê e Leon Trotsky como ministro de Relações Exteriores. A inevitabilidade de sua ascensão ao poder tornou-se evidente quase de imediato após a revolução de março. A história dos bolcheviques, depois da Revolução, é a história de seu contínuo crescimento…

Dois extremos

Os estrangeiros, em especial os norte-americanos, costumam dar ênfase à ‘ignorância’ dos trabalhadores russos. É verdade que lhes falta a experiência política dos povos ocidentais, mas eles são muito preparados, por outro lado, em matéria de organização voluntária. Em 1917, as cooperativas de consumidores contavam com mais de doze milhões de membros; os próprios sovietes constituem uma bela demonstração de seu talento organizativo. Mais do que isso, talvez não exista povo mais bem formado do que ele em termos de teoria socialista e sua aplicação prática.

William English Walling os caracteriza da seguinte forma:

A maioria dos trabalhadores russos sabe ler e escrever. O país se encontra há tanto tempo em estado de efervescência, que eles puderam contar não só com a liderança de personagens muito preparados de seu próprio meio, mas também de vários elementos revolucionários das camadas mais instruídas da sociedade que se voltaram para a classe trabalhadora com suas ideias de regeneração política e social da Rússia…

A hostilidade de muitos autores em relação ao governo soviético baseia-se no argumento de que a última etapa da Revolução Russa foi apenas uma luta dos elementos ‘respeitáveis’ da sociedade contra as atrocidades do bolchevismo. Ora, foram as classes proprietárias que, ao se dar conta da tomada do poder das organizações revolucionárias, procuraram destruí-las para deter a revolução. Com esse objetivo, as classes proprietárias acabaram por adotar medidas desesperadas. Para derrubar o ministério de Kerensky e os sovietes, promoveram a desorganização dos transportes e provocaram distúrbios internos; para esmagar os comitês de fábrica, edifícios inteiros foram destruídos, matéria-prima e combustível foram desviados; para desbaratar os Comitês do Exército no front, restaurou-se a pena de morte e fez-se vista grossa à derrota militar.

Tudo isso acabaria pondo ainda mais lenha na fogueira bolchevique. Os bolcheviques retrucaram, apregoando a luta de classes e proclamando a supremacia dos sovietes.

Entre esses dois extremos, ao lado de outras facções que lhes aportavam mais ou menos apoio, situavam-se os chamados socialistas ‘moderados’, os mencheviques e socialistas revolucionários, além de vários partidos menores. Tais grupos também foram atacados pelas classes proprietárias, mas seu poder de resistência era solapado por suas próprias teorias.

Controle operário

De um modo geral, os mencheviques e socialistas revolucionários consideravam que a Rússia não estava economicamente madura para a revolução social — seria possível apenas uma revolução política. Para eles, as massas não estavam preparadas para tomar o poder; qualquer tentativa nesse sentido, assim, provocaria inevitavelmente uma reação, que alguns oportunistas inescrupulosos utilizariam para restaurar o velho regime. Por isso, quando se viram forçados a assumir o poder, os socialistas ‘moderados’ ficaram com medo de utilizá-lo.

Eles acreditavam que a Rússia precisava antes passar pelas etapas de desenvolvimento econômico e político vividas pela Europa ocidental para só então, ao lado dos demais países, caminhar para o socialismo pleno. Naturalmente, em decorrência disso, concordavam com as classes proprietárias em que a Rússia deveria primeiro se tornar um Estado parlamentar — embora com melhorias em relação às democracias ocidentais. Por conseguinte, insistiam que era necessário que as classes proprietárias participassem do governo.

Daí a apoiá-las era um passo. Os socialistas ‘moderados’ precisavam da burguesia. Mas a burguesia não precisava dos socialistas ‘moderados’. O resultado foi que os ministros socialistas foram, pouco a pouco, abrindo mão de seu programa, enquanto as classes proprietárias exerciam mais e mais pressão.

Ao final, quando os bolcheviques romperam com todos esses compromissos, os mencheviques e os socialistas revolucionários viram-se lutando ao lado das próprias classes proprietárias… O mesmo fenômeno pode ser visto hoje em dia em quase todos os países do mundo.

Ao contrário de uma força destrutiva, os bolcheviques eram, a meu ver, o único partido, na Rússia, munido de um programa construtivo e com poder para aplicá-lo no país. Se não tivessem assumido o governo como fizeram, não tenho dúvida de que os exércitos da Alemanha imperial teriam invadido Petrogrado e Moscou em dezembro, e a Rússia voltaria a ficar sob o jugo de algum tsar…

Passado um ano de governo soviético, ainda é moda falar da insurreição bolchevique como uma ‘aventura’. Certamente foi uma aventura, e uma das mais maravilhosas em que a humanidade já embarcou, com essa erupção na história à frente das massas trabalhadoras e essa aposta radical em suas simples e amplas aspirações. Já estava preparado todo o mecanismo capaz de efetuar a distribuição de terras para os camponeses. Os comitês de fábricas e os sindicatos já estavam a postos para efetivar o controle operário da indústria. Em todas as aldeias, vilarejos, cidades, distritos e províncias havia um Soviete de Deputados Operários, Soldados e Camponeses preparado para assumir as tarefas administrativas locais.

Cronista consciencioso

Qualquer que seja a opinião a respeito do bolchevismo, é inegável que a Revolução Russa constitui um dos grandes acontecimentos da história da humanidade, e a ascensão dos bolcheviques, um fenômeno de importância mundial. Assim como pesquisam os detalhes mais minuciosos da história da Comuna de Paris, os historiadores, no futuro, procurarão saber o que realmente aconteceu em Petrogrado em novembro de 1917, o estado de espírito das pessoas e como os líderes pensavam, o que diziam e como agiam. Foi tendo isso em vista que escrevi o presente livro.

Em meio à batalha, não fui um homem neutro. Ao relatar a história desses grandes dias, porém, procurei ver os acontecimentos com os olhos de um cronista consciencioso, interessado em estabelecer a verdade. [Nova York, 1o de janeiro de 1919.]

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Apresentação à edição americana

V. I. Lênin

Com enorme interesse e absoluta atenção li o livro de John Reed, Dez dias que abalaram o mundo. Recomendo-o sem reservas aos trabalhadores de todo o mundo. Eis uma obra que eu gostaria de ver publicada em milhões de exemplares e traduzida para todas as línguas. Ele traz um relato preciso e extraordinariamente vivo de acontecimentos significativos para a compreensão do que são realmente a Revolução Proletária e a Ditadura do Proletariado. Essas questões conhecem hoje em dia uma ampla discussão, mas, antes de se acatar ou rejeitar suas ideias, é preciso entender toda a dimensão de uma decisão como essa. O livro de John Reed certamente contribuirá para iluminar o tema, que é a questão fundamental do movimento operário universal.

[Escrita em 1919, esta apresentação de Lênin foi publicada pela primeira vez na edição americana de 1926.]