Wednesday, 27 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um romance sobre nossa inverossímil realidade

No admirável mundo contemporâneo, a fronteira entre a ficção e a realidade é tênue. Principalmente, em um país que produz fatos tão inverossímeis como um analfabeto que passa no vestibular. Não há discurso completamente ancorado no real, nem mesmo o Jornalismo ou o Direito, tão influenciados por subjetividades e pressões sociais. Na mão inversa, as narrativas ficcionais acabam representando com mais fidelidade o ambiente social, o que pode ser comprovado em exemplos clássicos como Balzac e Machado de Assis. Diante desse quadro, como os escritores contemporâneos devem se posicionar?

O professor e jornalista Felipe Pena responde com originalidade. Em seu romance de estréia, Felipe utiliza a realidade para fazer ficção e vice-versa, o que fica patente no próprio subtítulo da obra, Ficção jornalística, que para o autor não passa de uma redundância. O resultado é uma aula de narrativa, que conduz o leitor do começo ao fim em um único fôlego, mas que deixa espaço para reflexões sobre o tema e sobre a própria linguagem.

Várias ‘leituras’

O analfabeto que passou no vestibular é um livro para ler com prazer. Combina a agilidade e o suspense dos best-sellers com o rigor detalhista do jornalismo literário. Mas o ponto forte mesmo é a crítica bem-humorada à própria literatura e aos limites entre ficção e realidade, feita com finas doses de ironia. Autor de outros nove livros, todos acadêmicos, Felipe Pena brinca com a linguagem, com os clichês, com a verossimilhança e até com a própria autoria do texto.

Para começar, diz que não faz literatura, mas apenas a tal ficção jornalística. Ou seja, baseia a obra em recortes de jornal e não tem compromissos com os experimentalismos lingüísticos tão em moda entre os chamados escritores pós-modernos. Mas não se engane. A obra é rica em influências intertextuais, como Guinsberg, Neruda, Freud e outros. Só que elas fluem com leveza, sem prejudicar a narrativa. Doutor em Literatura pela PUC-Rio, com pós-doutorado pela Sorbonne, Felipe Pena conhece bem a crítica acadêmica. Talvez por isso evite com tanta destreza as teorias literárias difundidas pelas faculdades de Letras.

O livro pode ser lido como romance policial: uma estudante de farmácia é baleada no campus de uma universidade durante o intervalo das aulas e um psicanalista é chamado para investigar o caso. Também pode ser lido como crítica social: a denúncia sobre a decadência do ensino superior no Brasil. Ou como crônica da atualidade: traficantes e milícias disputam o controle de uma nova droga sintética.

Reviravoltas e surpresas

Entretanto, como professor de Literatura e de Comunicação, Felipe Pena certamente já leu Kafka e sabe que a existência de tantas chaves de leitura em seu texto significa que, no final das contas, elas não servem para coisa alguma. Então, ele se esquiva da classificação pelo caminho da metalinguagem. É aí que entram as finas doses de ironia.

O personagem principal da trama questiona a perfeição científica dos romances policiais, argumentando que a realidade não é verossímil. E o final do enredo, costurado com maestria pelo autor, comprova a tese do personagem. A cultura dos bacharéis e dos doutores também é ironizada através da figura do personagem que dá título ao livro. O analfabeto carrega as metáforas do país iletrado, expressa na indústria do diploma universitário, um grande empreendimento comercial.

As tramas secundárias se encaixam perfeitamente no enredo, conferindo ritmo à narrativa, que tem diversas reviravoltas e surpresas. Os personagens são bem explorados, têm caracterizações nítidas sem cair no psiquismo barato. E a descrição dos cenários faz o leitor se identificar com os locais percorridos. Os parágrafos sobre a Barra da Tijuca, por exemplo, são um primor descritivo.

Um sopro de renovação

O que prejudica um pouco a obra são os títulos dos capítulos, que não conferem muito com os conteúdos e desviam a atenção do leitor. Os nomes de alguns personagens também não têm boa sonoridade, causando um indesejável estranhamento. Mas nada disso tira o brilho do livro. São apenas pequenos detalhes que deverão ser corrigidos com a experiência de novas publicações. O que, espera-se, venha a acontecer em breve.

Felipe Pena é um sopro de renovação na literatura brasileira, tão cansada de experimentalismos vazios e egos inflados. Tem a simples pretensão de contar uma boa história, ancorando sua ficção em nossa inverossímil realidade. E isso ele faz com vigor, coragem (vide a briga que comprou nas páginas de O Globo) e muito talento.

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Professor da Faculdade de Direito da UFRJ