Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um sentimento de inferioridade cultural

Terminou no domingo (10/7) mais uma Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), a nona edição, com ampla cobertura da imprensa nacional. Como sempre, a mistura de crítica literária com egos inflados e muita exposição à mídia ofereceu aos jornalistas verdadeiras especiarias para suas crônicas diárias. Mas um balanço no calor da hora – um dos temas em debate – poderia indicar que a literatura brasileira anda um passo atrás de outras culturas no aspecto da representação. E que a imprensa nacional anda a passos ainda mais distantes da caravana cultural global.

A Flip costuma atrair muitas dezenas de profissionais de imprensa todos os anos, além de escritores e, claro, leitores de livros. Não se trata de um congresso de Literatura, mas de uma celebração da leitura literária. Também é uma oportunidade para as editoras entrarem em contato direto com amostras significativas do mercado de livros e, para os escritores que conseguem furar a barreira do ineditismo e do anonimato, trata-se de gozar as dores e delícias da celebrização.

Para a imprensa nacional, deveria ser um momento interessante para avaliar a quantas anda sua capacidade de interpretar o melhor do pensamento global, ou como as antenas da produção literária nacional captam o Brasil e o mundo, e como anda sua sintonia com o ambiente intelectual.

Novo manifesto

Se há uma palavra que define a Flip, essa palavra é diversidade. Como num grande bazar, pode-se ouvir ali os gritos que anunciam todos os tipos de mercadorias literárias, que em tese representam o melhor da produção mais recente desses criadores que supostamente adivinham o mundo.

Mas, como em tudo o mais, da política à economia, a imprensa parece irremediavelmente engajada numa partida de futebol que nunca termina, na qual às vezes faz o papel de gandula, às vezes de árbitro e não raro também entra em campo para reforçar um dos times contendores.

Na cobertura do evento literário, pode-se observar que, além de preferências pessoais, cumpre papel importante um jogo de poder entre irmandades culturais que, nascidas nos bancos universitários, vão formando fileiras de cabeças inconciliáveis pela vida afora.

Jornalistas também são intelectuais, ou pelo menos se supõe que sejam aqueles que se dedicam ao jornalismo cultural. Estão, portanto, submetidos a suas próprias idiossincrasias, e isso se reflete no olhar que lançaram a cada frase de cada escritor que subiu ao palco da Tenda dos Autores na Flip.

A rachadura no edifício do pensamento nacional mais representativo é tão evidente que um dos participantes, o crítico literário João Cezar de Castro Rocha, chegou a propor um novo Manifesto Antropófago, para ver se o Brasil digere definitivamente seus próprios demônios.

Um deles: o sentimento de inferioridade cultural.

A atualidade da antropofagia

Mas como, afinal, deveria ser a cobertura de um evento como a Flip para as variadas formas de imprensa? A maioria preferiu fazer o relato factual das sequências de apresentações e debates, observando o maior ou menor protagonismo dos mediadores, e registrando os inevitáveis incidentes.

Alguns entraram a valer no mérito das opiniões apresentadas e outros mergulharam nas polêmicas tomando partido entre as dissidências que ficaram explícitas. Apenas uma pequena parte dos jornalistas entrou como observadores críticos dos debates culturais em curso, entre os quais se destacou claramente aquele em que o crítico literário João Cezar de Castro Rocha pregou a necessidade de repolitizar a antropofagia no mundo globalizado.

“Num conjunto de relações econômicas, políticas e culturais assimétricas, a antropofagia é uma arma de combate disponível para quem está no pólo menos favorecido”, declarou, convocando os intelectuais a uma reafirmação, como atitude política, dos princípios de Oswald e Mario de Andrade.

Mais do que um debate acadêmico, tratava-se de uma análise lúcida do cenário cultural e social brasileiro, no qual a imprensa se destaca mais como protagonista central do que como mediadora. Mas os jornais, de modo geral, preferiram dar mais espaço para o desentendimento público, em pleno palco, entre o escritor e cineasta francês Claude Lanzmann, sucessor de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir na revista cultural Temps Modernes, e o crítico literário Marcio Seligman-Silva.

No debate sobre jornalismo cultural, John Freeman, editor da revista Granta, observou que “a literatura transcende a política, que aparece numa estética moral na escolha de palavras que vão ampliar o que os leitores vão desejar para si mesmos”.

Talvez seja uma receita adequada para a imprensa em geral. Talvez o jornalismo brasileiro devesse transcender a política, a economia e a vida social, oferecendo uma estética moral que estimulasse os leitores a fazerem as melhores escolhas para si mesmos, em vez de tentar conduzir diretamente essas escolhas.

O desafio de Rocha Castro está lançado. Como dizia Oswald, “só a antropofagia nos une”.