Tuesday, 24 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Uma edição muito bem-vinda

Uma das melhores notícias do ano que há pouco terminou foi a terceira edição da monumental História da Literatura Ocidental, de Otto Maria Carpeaux (1900-1978), lançada em quatro volumes pelas Edições do Senado Federal. Publicada originalmente em 1959, a obra foi elogiada e usada como referência por grandes críticos literários brasileiros, como Antonio Cândido, Álvaro Lins e Wilson Martins. O lançamento deve pôr fim às peregrinações, que se tornavam cada vez mais infrutíferas, de amantes da literatura pelos sebos em busca dessa obra. E o preço de R$ 200 deve também torná-la mais acessível, pois coleções completas de suas edições anteriores custam de R$ 500 a R$ 1.500.

Os quatro tomos da nova versão totalizam 2.879 páginas, além de outras 148 introdutórias, com a apresentação do poeta e escritor Ronaldo Costa Fernandes, um artigo do próprio Carpeaux sobre prefácios, fotografias, fac-símiles de laudas datilografadas com correções à mão e dois textos da primeira edição (Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1959, nove volumes), ambos suprimidos pelo autor na segunda (Rio de Janeiro, Alhambra, oito volumes).

Questões de método

Além do mérito intrínseco por ser a única obra do gênero em língua portuguesa – e uma das poucas no mundo –, História da Literatura Ocidental é fruto de um rigoroso trabalho metodológico cujo primeiro problema foi a delimitação de seu foco temático em sua multiplicidade. Como disse o próprio Carpeaux…

‘Para resolver o problema dessa multiplicidade, as obras de síntese coletivas justapõem simplesmente uma história separada da literatura italiana, uma da literatura francesa, uma da literatura inglesa, etc., etc.; evidentemente, isto não é síntese, e sim coleção incoerente. Daí não pode resultar jamais uma ‘história universal’ da literatura universal. É necessário abolir as fronteiras nacionais para realizar a história da literatura européia (e americana).’ [Vol. I, pág. 38]

Nessa parte da introdução, cuja redação teve pequenas alterações na segunda edição, Carpeaux ressalta que a história da literatura universal se divide em grandes períodos, cujos nomes são consagrados pelo uso – Idade Média, Renascença, Barroco, Ilustração, Romantismo, Realismo, Naturalismo, Simbolismo etc. – e que já na primeira metade do século 20, graças à evolução da análise estilística e ideológica, não eram mais clichês sem significação precisa.

O segundo problema de método da obra diz respeito à cronologia. A esse respeito, naquilo que consegui constatar, parece-me que Carpeaux esteve à altura dos desafios de seu empreendimento no plano histórico. Nada melhor que suas próprias palavras para esclarecê-lo:

‘A literatura não existe no ar, e sim no Tempo, no Tempo histórico, que obedece ao seu próprio ritmo dialético. A literatura não deixará de refletir esse ritmo – refletir, mas não acompanhar. Cumpre fazer essa distinção algo sutil para evitar aquele erro de transformar a literatura em mero documento das situações e transições sociais.’ [Vol. I, pág. 39]

A terceira questão metodológica se refere à relação entre literatura e sociedade, que, como disse Carpeaux, não é de mera dependência, mas de dependência recíproca entre fatores espirituais (ideológicos e estilísticos) e materiais (estrutura social e econômica). Por traduzir ao longo de sua obra essa compreensão, o autor, em plena Guerra Fria, transcende a acirrada polarização entre direita e esquerda que já existia naquele período.

‘A literatura é, pois, estudada nas páginas seguintes como expressão estilística do Espírito objetivo, autônomo, e ao mesmo tempo como reflexo das situações sociais.’ [Vol. I, pág. 40]

Incorreções e generalizações

Por mais rigorosos que tenham sido os critérios metodológicos acima apontados, são de se esperar algumas generalizações que podem tender à incorreção e à superficialidade. No entanto, chegam a ser decepcionantes, principalmente por partirem de quem teria se formado em filosofia, afirmações equivocadas como:

‘Tampouco os mitos platônicos são axiomas filosóficos; por isso, Platão os expôs em diálogos de índole literária, dramática, com a pretensão de criar uma Cidade e talvez uma religião, mas sem a pretensão de defender um sistema filosófico. Nunca, na Antigüidade, os diálogos de Platão foram citados como obras de filosofia racional. O grande criador de fórmulas filosóficas entre os gregos foi Aristóteles, do qual não pode tratar a história da literatura (…).’ [Vol. I, pág. 78]

Ora, basta consultar as obras do próprio Aristóteles (384-322 a.C.) para constatar, logo entre os primeiros capítulos, que em várias delas esse discípulo Platão (427-347 a.C.) se posicionou em relação ao pensamento de seu antigo mestre, entre elas Ethica Nicomachea, Metafísica, Poética e Sobre a Alma. Nesta última, no capítulo II, dedicado ao exame de teorias anteriores sobre o mesmo tema, a passagem 404b16-17 registra sua afirmação de que ‘no Timeu, Platão construiu a alma fora dos elementos’. O mesmo Timeu – que contém uma teoria da natureza e do conhecimento sobre ela –, ao qual Carpeaux se refere como uma alusão ao ‘mito historiografico do cotinente da Atlântida, que se perdeu como está se perdendo a Grécia’, com o mesmo simplismo que comenta outras obras como República, Parmênides, Sofista (Vol I, págs. 79-80).

Não bastasse o equívoco dessa interpretação, Carpeaux entra em contradição com ela ao se referir a aspectos filosóficos de outros autores, como Lourenço de Médici, o Magnífico (1449-1492), no qual aponta uma ‘luta íntima’ entre o ‘supranaturalismo platônico e outro platonismo, nostálgico do idílio homérico’ [Vol. I, pág. 335].

Ainda a respeito de Lourenço, o autor corrigiu o erro, na primeira edição, de mencioná-lo como ‘o único príncipe que foi um grande poeta’, esquecendo-se de Charles d´Orléans (1394-1645), como bem observou Wilson Martins em sua resenha ‘A literatura ocidental’, no jornal O Estado de S.Paulo, em 3 de outubro de 1959, na qual foram apontados diversos deslizes. Carpeaux, diligentemente, procedeu na edição de 1978 a várias correções. Ainda que permaneçam alguns erros, não há como discordar do que afirmou Martins nessa mesma resenha:

‘Mas, incorreções e generalizações dessa natureza são inevitáveis em livros que cobrem matéria tão vasta e nem de longe chegam a afetar-lhes o valor de conjunto. O que importa é que Otto Maria Carpeaux haja ‘dominado’ espiritualmente o assunto e tenha conseguido transmitir ao leitor uma ‘idéia’ da literatura ocidental em sua especificidade e riqueza.’ [Wilson Martins, Pontos de Vista (Crítica Literária). São Paulo: T.A. Queiroz, 1992, volume 3, pág. 511]

Seleção de autores

Justamente por cobrir matéria tão vasta, uma obra como História da Literatura Ocidental não tem como ser completa a ponto de contentar a todos. Estranhei, por exemplo, a ausência de nomes de autores cujas obras tiveram repercussão em outras culturas, como o de Flávio Josefo (c. 37-100 d.C.), judeu assimilado ao mundo romano e escritor em língua grega, que escreveu A Guerra Judaica, Antiguidades Judaicas, Contra Ápion e outras obras.

Eventuais omissões, no entanto, são muito menos problemáticas que inclusões questionáveis do ponto de vista da universalidade dos autores, seja no que se refere à sua abordagem, seja em relação à repercussão de suas obras. Martins, por exemplo, ressaltou que, ao selecionar oito mil autores, Carpeaux ‘deixou-se dominar mais pelo espírito de erudição do que pelo espírito crítico. (…) há páginas e páginas desta História que lembram as velhas histórias da literatura brasileira com sua fastidiosa, inútil e injustificada enumeração de oradores sacros e poetas menores’ [Pontos de Vista, pág. 509].

Independentemente de estas e outras observações, como ressaltou o próprio Wilson Martins…

‘É motivo de orgulho, para nós, que uma das mais completas, das mais sérias, das mais eruditas e das mais agudas dessas `histórias da Literatura Ocidental´ tenha sido escrita no Brasil e por um brasileiro (…) Um brasileiro `ocidental´, para quem nada do que é humano e, notadamente, nada do que é literário, será estranho; o único brasileiro em condições de realizar esse trabalho, pois, sendo brasileiro, não deixou de ser europeu, vive conscientemente a condição de `cidadão da Europa´, que se torna cada vez mais rara desde a Renascença.’ [Pontos de Vista, pág. 507]

Filho de pai judeu e mãe católica, Otto Maria Karpfen nasceu e foi criado em meio à efervescência cultural de Viena, na Áustria, onde começou a estudar direito, mas redirecionou sua formação para a filosofia, física, sociologia e literatura comparada. Foi jornalista e trabalhou para o governo ditatorial do primeiro-ministro Engelbert Dolfuss (1892-1934) – assassinado numa tentativa de golpe nazista – e de seu sucessor Kurt Schuschnigg (1897-1977), deposto em 11 de março de 1938 na Anschluss (anexação) da Áustria ao III Reich.

Opositor aos nazistas, Karpfen fugiu para a Bélgica, onde ficou por cerca de um ano, e de lá partiu em 1939 em uma viagem de navio, durante a qual estourou a II Guerra Mundial. Naturalizou-se brasileiro e afrancesou seu sobrenome. Mais detalhes sobre sua vida e obra desse grande intelectual, que se fixou aqui no Brasil na segunda metade de seus quase 78 anos, estão em artigos indicados a seguir.

** Jonas Lopes, ‘Ensaios Reunidos, de Otto Maria Carpeaux‘, Gymnopedies, 26/08/2006.

** Sérgio Augusto, ‘O melhor presente que a Áustria nos deu‘, Digestivo Cultural, 23/09/2002.

** Antonio Fernando Borges, ‘Otto Maria Carpeaux, o digno farejador do Universo‘, Sapientiam Autem Non Vincit Malitia, s./d.

** José Maria e Silva, ‘A missão civilizatória de Otto Maria Carpeaux‘, Opção, Goiânia, 08/11/1999.

** Olavo de Carvalho, ‘Carpeaux nos EUA‘, Sapientiam Autem Non Vincit Malitia, 13/10/1999.

** Leandro Konder, ‘Otto Maria Carpeaux (1900-1978)‘, Tribuna da Imprensa, 23/02/1990.

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Jornalista especializado em ciência e meio ambiente