Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Uma história singular

Uma pesquisa sobre a trajetória singular da atriz franco-brasileira Eliane Lage – mito do cinema brasileiro na década de 1950 – acabou revelando perspectivas inéditas a respeito da história da Companhia Cinematográfica Vera Cruz. O estúdio, inaugurado em 1949, representou uma controversa tentativa de industrialização do cinema paulista e marcou época em seus meteóricos quatro anos de existência.

O resultado do trabalho, realizado pela historiadora e documentarista Ana Carolina de Moura Delfim Maciel, pode ser conferido no livro Yes nós temos bananas – Cinema industrial paulista: a Companhia cinematográfica Vera Cruz, atrizes de cinema e Eliane Lage, que será lançado no dia 26 de setembro, em São Paulo. A obra teve apoio da Fapesp na modalidade Auxílio à Pesquisa – Publicações. Maciel co-dirigiu o documentário Eliane (2002) com o cineasta Caco Souza, sobre a atriz.

O lançamento contará com a presença da própria Eliane Lage, que completou 83 anos em julho. Comparada a estrelas como Greta Garbo e Ingrid Bergman, Lage nunca desejou ser atriz e abandonou a carreira artística após seu quinto filme, Ravina, ainda em 1958, no auge da beleza física. Avessa a entrevistas, ela vive no interior do Goiás.

Dados concretos

De acordo com Maciel, que atualmente realiza pós-doutorado com Bolsa da FAPESP, o livro tem três temas principais: o cinema industrial pioneiro da Vera Cruz, as atrizes do cinema brasileiro e mundial na década de 1950 e a trajetória de Lage. “Meu foco principal no estudo era o itinerário de Eliane Lage. Mas sua história como atriz estava estreitamente ligada à Vera Cruz e precisei me aprofundar na história da companhia muito mais do que poderia imaginar”, disse à Agência Fapesp.

Segundo Maciel, ao mergulhar na história da Vera Cruz ela deparou com uma documentação inédita que permitiu estabelecer novas interpretações sobre o significado dessa ousada proposta de cinema industrial paulista. Segundo ela, os estúdios fundados pelo produtor Franco Zampari e pelo industrial Ciccillo Matarazzo, foram vistos durante muito tempo como “uma aventura irresponsável e amadora de grã-finos”. “Durante muito tempo, eles foram atacados impiedosamente, especialmente por Glauber Rocha, na década de 1960. O legado da Vera Cruz, no entanto, nunca foi pensado com o respeito merecido. Afinal, eles conseguiram iniciar uma produção que, imaginava-se, seria o início do cinema industrial brasileiro – que não existe até hoje.”

Os estúdios chegaram a produzir 18 longas metragens em apenas quatro anos de existência. Essa falência precoce intrigou a pesquisadora, que resolveu pesquisar em fontes primárias que permitissem compreender o fracasso da Vera Cruz. “Fui atrás da documentação da própria companhia, incluindo seus registros contábeis, que permitiram compreender a dinâmica dos empréstimos os prejuízos. Procurei fazer a análise a partir de dados concretos. Além disso, colhi mais de 30 depoimentos de pessoas que haviam trabalhado nos estúdios e que ainda estavam vivas – técnicos, atores e atrizes”, disse Maciel.

“O cinema brasileiro foi feito de surtos”

A pesquisadora concluiu que não havia uma explicação única para a decadência da Vera Cruz. No entanto, foi possível concluir que as principais críticas feitas à iniciativa, classificando-a como uma aventura inconsequente, eram um julgamento tendencioso. “Ao contrário do que se disse por muitos anos, eles sabiam muito bem o que estavam fazendo. Infelizmente, muitos fatores levaram o empreendimento a não se sustentar financeiramente”, disse.

Os criadores da Vera Cruz, segundo Maciel, almejavam o mercado internacional. Prova disso era seu slogan: “Do planalto abençoado para as terras do mundo”. Mas isso não aconteceu. Pesquisando na documentação da companhia, a historiadora descobriu que depois da falência da empresa, os filmes passaram a gerar lucros para estúdios norte-americanos. “Os filmes da Vera Cruz eram distribuídos pela Columbia e pela Universal, que tinham enorme interesse no mercado brasileiro. Além do alto custo da construção dos estúdios, a companhia teve que lidar com os gastos de produção dos filmes, que demoravam a se pagar com a bilheteria. Depois da falência, porém, os filmes passaram a render para os estúdios norte-americanos em salas do exterior”, contou.

Segundo Maciel, a trajetória da Vera Cruz é coerente com um padrão típico do cinema brasileiro: a necessidade de recomeçar incessantemente. “O cinema brasileiro sempre foi feito de surtos. Enquanto nos Estados Unidos há uma continuidade na trajetória dos estúdios, mesmo quando a indústria passa por crises, o cinema brasileiro já foi fundado inúmeras vezes”, disse. O livro apresenta ainda imagens inéditas de cenas de filmes e reproduções de documentos considerados importantes pela autora. “Não é fácil encontrar a documentação sobre a Vera Cruz. A ideia é que o livro forneça uma referência para quem queira se aprofundar no tema”, disse a autora.

“Uma pessoa inteiramente incomum”

Em um segundo momento da obra, ela trata das estrelas de cinema que apareceram durante o período. “É impressionante constatar que o Brasil tentou estabelecer um sistema de grandes estrelas do qual não restou quase nenhum vestígio. Folheando as revistas da época, ficamos espantados ao perceber que não temos ideia de quem sejam 95% das atrizes que aparecem. Nesse sentido também encaramos a ausência de continuidade”, disse.

De acordo com Maciel, Eliane Lage, importantíssima nesse contexto, jamais desejou ser atriz. Avessa aos holofotes, havia realizado trabalhos sociais na favela Dona Marta, no Rio de Janeiro e voltava de uma experiência na Europa, onde trabalhou com crianças carentes, quando teve seu destino transformado em um almoço na casa de Matarazzo e Yolanda Penteado. Ali, conheceu o diretor argentino Tom Payne, com quem se casaria em 1951. “Payne a convidou para um teste para o filme Caiçara, o primeiro da Vera Cruz. Mas ela sempre alegou que se tornou uma estrela por acaso. Essa tinha uma postura de negação do cinema me chamou a atenção. Era uma pessoa muito ligada à terra, que morava em um sítio sem luz elétrica e estava completamente fora dos padrões do meio artístico. Sua carreira triunfal, iniciada já como protagonista de um filme, era inteiramente incomum”, afirmou.

Eliane Lage fez quatro filmes pela Vera Cruz: Caiçara (1950), dirigido por Adolfo Celi, e Ângela (1951), Terra é sempre terra (1952) e Sinhá Moça (1953), todos com direção de Tom Payne, marido da atriz. Depois de alguns anos, a atriz estrelou Ravina (1958), dirigido por Rubem Biáfora, quando a Companhia Vera Cruz já havia falido.

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[Fábio de Castro é jornalista, editor da Agência Fapesp]