Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Uma história social e cultural da comunicação

Em linha gerais (e, portanto, esquemáticas), pode-se dividir a historiografia sobre a imprensa no Brasil em três fases. Ainda no século 19, os primeiros estudos tratavam-na como fonte documental importante, na medida em que era vista como autêntica narradora dos ‘fatos’ e da ‘verdade’, ou seja, registro que permitiria comprovar aquilo que realmente se disse ou se passou, numa perspectiva historicista ou positivista. A partir de meados dos oitocentos desenvolve-se, ainda, a preocupação em coletar dados sobre sua trajetória, listar títulos, redatores e datas, avançando em algumas contextualizações e rotulando órgãos segundo suas tendências mais visíveis. Nesta fase pioneira, que vai até o início do século 20, destacaram-se autores como o cônego Fernandes Pinheiro, Mello de Moraes, Moreira de Azevedo e Veiga de Almeida. O corolário desta síndrome de inventariar do século 19 foi a série de pesquisas, a maioria coordenada por Alfredo de Carvalho que, em torno das comemorações do primeiro centenário da imprensa no Brasil, em 1908, gerou exaustivos trabalhos enfocando alguns estados brasileiros e criando as bases para um registro mais amplo da história da imprensa.

Havia trabalhos que não se encaixavam nesta classificação de fases aqui proposta, como o livro de Barbosa Lima Sobrinho, de caráter ensaístico, pioneiro pelo tom analítico e interpretativo: tratava desde a Independência até o momento em que redigia, sem estrita preocupação cronológica e abordava questões como a modernização da comunicação impressa ao longo do século 19, suas linguagens, estilos e mudanças no perfil de redatores e intelectuais, com ênfase para a história da liberdade de imprensa e suas restrições [A J. Barbosa Lima Sobrinho. O problema da imprensa, Rio de Janeiro: Álvaro Pinto, 1923 (2a ed., São Paulo: Edusp, 1988)].

Protagonista e agente histórico

Mas foi justamente o uso da imprensa como detentora das ‘verdadeiras informações’ que tornou-se o principal argumento para seu relativo abandono que sucederia, no bojo de transformações historiográficas. Seria exaustivo citar as ausências da imprensa nos estudos históricos de tipo sócio-estrutural que tomaram corpo a partir da metade do século 20, com seu apogeu nos anos 1970. Apontavam-se questões de (falta de) veracidade e fidedignidade no uso da imprensa como documento histórico, que seria apenas ‘veículo’ de idéias ou ‘reflexo’ de condicionantes sociais e econômicos pré-determinados. Em outras palavras: ao invés de espelho fiel da realidade, a imprensa passou a ser vista potencialmente como falsificadora do real.

Também durante esta fase ocorreram expressivas exceções, como os estudos de Carlos Rizzini, Hélio Vianna, Marcello e Cybelle Ipanema, Nélson Werneck Sodré [Nélson Werneck Sodré. História da Imprensa do Brasil, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966. A 4 a ed., Rio de Janeiro: Mauad, 1999 – traz um posfácio atualizado feito pelo autor. Durante muito tempo e ainda hoje considerada a principal ‘história geral’ sobre o tema, tem indiscutível importância, ao lado de limitações. Contém classificações e abordagens questionáveis, ao mesmo tempo em que abriu caminhos inovou e tornou-se obra clássica] e José Marques de Melo [desde sua tese de doutorado, Sociologia da Imprensa Brasileira. A implantação. Petrópolis: Vozes, 1973 – tornou-se um pioneiro nos estudos universitários em Jornalismo e Comunicação, com ampla e expressiva produção intelectual e atuação acadêmica.], entre outros – com evidentes diferenças de objetivos, qualificações e abordagens.

Enfim, aproximando do tempo atual, ocorre desde meados dos anos 1970, mas sobretudo a partir da década seguinte, uma renovação historiográfica a nível internacional (na qual a França teve papel decisivo) com ênfase nas abordagens políticas e culturais – que redimensionou a importância da imprensa. Esta passou a ser considerada como fonte documental na perspectiva de um testemunho, na medida em que enuncia expressões de protagonistas. E, também, como protagonista ela mesma, peculiar e complexo agente histórico que intervém nos embates e episódios, não mero ‘reflexo’ de uma realidade já definida. O que implica, portanto, verificar como os impressos periódicos interagem na complexidade de um contexto.

Fronteiras entre Jornalismo e História

No Brasil surge também expressiva renovação historiográfica neste sentido, embora a riqueza, qualidade e originalidade de vários trabalhos (tanto do ponto de vista da pesquisa empírica, como dos instrumentos teóricos e da inovação analítica) tenha gerado em certa medida uma ‘história em migalhas’. Ou seja, além das (poucas) sínteses didáticas ou paradidáticas sobre o assunto, e de livros coletivos contemplando enfoques diversos, os recentes trabalhos são monográficos, sem nenhum tom pejorativo. Os recortes variam: temáticos, cronológicos, biográficos, por órgão… Diante do aprofundamento e refinamento das pesquisas e análises, percebia-se não só a complexidade, mas a grandeza oceânica do tema e as dificuldades de se realizar um trabalho mais amplo e orgânico, seja solitário ou mesmo apoiado em grupos institucionais que se reunissem para tal fim.

É neste ponto que se situa o livro aqui publicado, cujo título não é o de uma história geral, mas cultural. Longe de se entender nesta definição um estreito culturalismo, mas sim, uma vigorosa ‘história social e cultural da comunicação impressa’, na linha de Robert Darnton. O trabalho segue, criativamente, a trilha das recentes tendências teóricas e historiográficas, conhecidas solidamente pela autora. Este volume vem se somar ao anterior, sobre o século 20 – e a ordem dos fatores não altera o produto, como se diz em matemática [Marialva Barbosa. História Cultural da Imprensa: Brasil 1900 – 2000, Rio de Janeiro: Mauad, 2007]. Trata-se de uma obra abrangente sobre o conjunto da história da imprensa no Brasil – a primeira, portanto, resultante dos atuais paradigmas historiográficos e teóricos, tornando-se, desde seu aparecimento, referência obrigatória para jornalistas, historiadores e à ampla gama de interessados em tema vital para se conhecer a sociedade nacional em sua diversidade. A autora incorpora – sempre citando devidamente – as recentes produções intelectuais, acrescentando a elas sua própria contribuição, não se limitando à fácil resenha dos autores que já trataram dos assuntos aqui abordados.

O século 19 não é fácil de ser compreendido. Ao mesmo tempo próximo e distante de nós, gerou instituições, vocabulários e valores que, semelhantes aos atuais, são também bastante diferentes, neste jogo de mutações e permanências tão bem trabalhado neste livro. Aliás, a própria trajetória de Marialva Barbosa faz dela uma das raras pessoas habilitada à tal empreitada. Jornalista profissional na origem, graduada em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense, fez nesta instituição seu mestrado e doutorado em História, tornando-se professora titular na área de Comunicação. Ensina, escreve, difunde e orienta nesta confluência entre Comunicação e História. Sua participação intensa em instituições acadêmicas e científicas nacionais e internacionais, sua sólida e larga produção intelectual e sua constante e renovada energia e disposição para o trabalho fazem de seu nome uma referência marcante no panorama historiográfico e comunicacional. Embora (e aqui entra o olhar de quem, parafraseando a conhecida frase da carta-testamento de Getúlio Vargas, saiu da vida jornalística para entrar na História) trate-se sobretudo de uma historiadora que se beneficia de expressiva bagagem jornalística. Mas a própria práxis – pensamento e ação – de Marialva nos leva constantemente a questionar sobre a fluidez e a interseção destas fronteiras.

Outros olhares e possibilidades de compreensão

Deste modo, o risco de anacronismo, tão presente na abordagem estritamente jornalística da história, está afastado, devido ao domínio da noção de tempo característico de uma historiadora profissional. Ao mesmo tempo em que o conhecimento da autora das técnicas jornalísticas de impressão, diagramação e redação contribuem para um mergulho mais denso neste campo de estudos em construção que é a história da imprensa no Brasil – algo com que os estritamente historiadores teriam dificuldade em lidar.

Marialva retoma e atualiza, com esta obra, a tradição do ensaio histórico que formula análises originais a partir de sólidas referências teóricas, mas sem dispensar o corpus documental como elemento também fundador do conhecimento. Tal característica ajuda a entender a ausência de determinadas categorias que, bastante difundidas e servindo de explicação cômoda, não têm a devida substância conceitual. Não aparecem no livro nenhuma vez termos como ‘elitismo’ e ‘sensacionalismo’, por exemplo – embora a presença de variadas elites e do estilo sensacional de certos órgãos de imprensa não seja ignorada.

Supera-se também o simplismo (muitas vezes alçado em categóricas afirmações sem base empírica) de que toda a imprensa oitocentista era oficial ou oficiosa. A incorporação da categoria de espaço público é chave para se situar os periódicos na complexa sociedade brasileira daquela época.

A autora dialoga criticamente com autores consagrados e visões cristalizadas, desconstruindo-as de maneira eficaz, mas sem fazer tábua rasa do conhecimento acumulado – procedimento que comprova maturidade intelectual. Deste modo, Marialva elabora assumidamente sua própria visão sobre o tema tratado. Talvez alguns jornalistas se surpreendam com certas afirmações e conclusões, assim como historiadores certamente apreenderão novas dimensões na leitura. Como afirma a própria autora, seus recortes e escolhas não excluem outros olhares e possibilidades de compreensão do passado, cujo conhecimento está em constante confecção.

Marcas do atual e do perene

Não cabe num prefácio – que já se tornou longo – tirar dos leitores o privilégio da criação de suas próprias leituras, que, estas sim, substanciam o livro, como destaca a autora. Mas alguns pontos chaves que implicam na originalidade deste trabalho merecem ser destacados: a ruptura da barreira entre oralidade e escrita, o foco no público e na auto-referência que emerge na própria imprensa. O livro constrói um eixo coerente, formado de vertentes que se complementam.

O leitor tem em mãos uma história viva e vibrante, onde não faltam saborosas citações de época, perfis biográficos individuais e coletivos de jornalistas e estudos de caso de periódicos considerados mais representativos de cada momento, além de caricaturas, desenhos e imagens incorporados em análise iconográfica, não mera ilustração. Idéias, interesses, insultos, queixas e paixões dão uma feição humanizada ao texto elaborado com clareza e rigor. Os protagonistas não são apenas os membros da elite letrada de escribas, mas a ampla gama da desigual hierarquia da sociedade, inclusive os escravos, que merecem um capítulo especial. Desde o surgimento dos impressos periódicos no Brasil até a paulatina consolidação da imprensa como empresa e a valorização da reportagem e do repórter, estamos convidados a redescobrir e reconhecer um século 19, do nascente ao poente, que faz parte de nossa trajetória coletiva em permanente construção. Trata-se, portanto, de um livro com marcas do atual e do perene.

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Sobre o livro

Marialva Barbosa vem fazendo em seus livros aquilo que os jornalistas poderiam chamar de uma ‘edição não-linear da História’. Fatos, feitos e personalidades não se sucedem linearmente, em cascata, mas dentro de uma lógica compreensiva da memória cultural. Neste volume (1800-1900), o método se consolida e brinda os leitores com um valioso apanhado das relações entre jornais e escravos (Muniz Sodré – professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro e presidente da Fundação Biblioteca Nacional).

O novo livro de Marialva Barbosa completa sua magnífica História Cultural da Imprensa – Brasil 1900-2000. No conjunto, o projeto de escrever 200 anos de história da imprensa do Brasil parece imenso em épocas de trabalhos microscópicos. Entretanto, consegue organizar linhas de continuidade, ao mesmo tempo em que focaliza o que é necessário. Isso é possível porque se trata de uma investigação reflexiva que interroga os documentos com precisão teórica. Será difícil encontrar uma obra comparável em outros países da América Latina (Mirta Varela – professora titular da cátedra de ‘História dos Meios’ da Universidade de Buenos Aires).

Um país sem jornais e que foi, durante o século 18, privado de uma das liberdades mais essenciais: a de informar. Da mesma forma, um povo sem a história da sua imprensa é um povo incapaz de compreender seu caminho, frequentemente doloroso, em direção à liberdade. Assim, faz-se necessário agradecer a Marialva Barbosa por propor uma primeira história cultural da imprensa brasileira do século 19. Do final do império português ao Brasil de Pedro II e ao início da República dos ‘coronéis’, a imprensa torna-se uma realidade que impregna toda a sociedade. Do mundo dos escravos às mulheres leitoras, da imprensa política aos jornais de fait divers, é toda a história do Brasil que emerge. Descrevendo as fábricas de jornais, seus redatores e todos aqueles que participam da sua confecção, Marialva Barbora ajuda a compreender as mutações do Brasil contemporâneo e sua passagem para a modernidade (Jean-Yves Mollier – professor de História Contemporânea da Université de Versailles Saint-Quentin-enYvelines).

Em seu livro anterior, Marialva Barbosa trouxe excelente contribuição para discernir o panorama do século 20. Ela agora completa o ciclo histórico, dedicando este volume ao desenvolvimento da imprensa no século 19, dos primórdios à transição republicana. Trata-se de obra elucidativa, esclarecendo as questões pendentes na compreensão da vida cotidiana brasileira pelo prisma midiático. A autora também decifra aqueles enigmas suscitados por jornais e jornalistas, deles fazendo uma competente leitura cultural, sem deixar de estabelecer correlações com as variáveis políticas e econômicas dominantes nas obras que a precederam (José Marques de Melo – professor emérito da Universidade de São Paulo e diretor da Cátedra Unesco/Umesp de Comunicação).

Marialva Barbosa ultrapassa o uso da imprensa como fonte histórica, utilizando os rastros que os periódicos deixam para usá-los no estudo das práticas jornalísticas e suas relações com o poder. Imaginativa e inovadora, essa história cultural da imprensa no Brasil ultrapassa as barreiras descritivas e busca novas formas de interpretar como se fazia jornalismo no decorrer do século 19. Este livro torna-se fonte de consulta obrigatória para aqueles que querem conhecer a história dos impressos do século 19, mas, sobretudo, para os que querem ir além dos lugares comuns de forma a conhecer a realidade em torno dos múltiplos atores dos periódicos do século 19 e de seus possíveis leitores, mais plurais do que se acreditava até então (Celia del Palacio – presidente da Rede Iberoamericana de Historiadores da Imprensa).

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A autora

Marialva Carlos Barbosa é professora no Programa de Pós-graduação em Comunicação e Linguagens da Universidade Tuiuti do Paraná (UTP) e professora titular aposentada da Universidade Federal Fluminense. Doutora em História, com pós-doutorado em Comunicação (CNRS/LAIOS, Paris), é presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores de História da Mídia (Alcar) e diretora científica da Sociedade de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom). Dedica-se há algumas décadas a pesquisar a história da imprensa no Brasil e escreveu também, entre outras obras, História Cultural da Imprensa – Brasil 1900-2000, publicado pela Mauad X, em 2007.

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Professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e professor associado da Universidade Paris I (Panthéon-Sorbonne)