Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Uma investigação no discurso da revista Time

O Caso Mães de Bragança, evento que marcou a população da cidade de Bragança, localizada na região de Trás-os-Montes e Alto Douro de Portugal, limitado em sua zona leste com a Espanha, difundiu-se não apenas na mídia portuguesa, como também internacional.


Numa descentralização para uma região não tão conhecida, o mundo virou os olhos para Bragança, que passou a ser conhecida como um verdadeiro antro da prostituição no país, principalmente, após a veiculação como matéria de capa da revista Time européia, em outubro de 2003, que intitulava a cidade como o mais novo bairro de prostituição da Europa e trazia todos os detalhes através do artigo ‘When The Meninas Came To Town’.


De acordo com um relatório da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE sobre imigrações portuguesas em 2003, houve um aumento e fortalecimento desse fenômeno em Portugal. Na história recente da imigração brasileira para terras lusitanas, tal ano foi marcado pela legalização de 15.000 imigrantes irregulares, resultado das negociações entre o então presidente da República Federativa do Brasil, Luís Inácio Lula da Silva e o governo português, representado pelo primeiro-ministro à época, José Manuel Durão Barroso.


Imigração em Portugal


Num posicionamento de país de acolhimento, Portugal iniciou, ainda na década de 60, uma busca para suprir a intensa emigração de portugueses para as regiões da Europa do Norte e América. A partir de tal política, o país se tornou cada vez mais portador de uma imigração acentuada, devido a fatores econômicos e políticos dentro do continente europeu.


Na década de 70, com a explosão de várias guerras de independência nas antigas colônias portuguesas, há uma entrada desses grupos em solo lusitano que, na prática, foram considerados como imigrantes, porém legalmente eram portugueses. O 25 de abril, conhecido como Revolução dos Cravos, que pôs fim aos 48 anos do regime ditatorial comandado por Salazar, acentuou a entrada de mais imigrantes com o processo de industrialização e a inserção do país na Associação Européia de Livre Comércio, um acordo comercial entre Portugal, Reino Unido, Áustria, Dinamarca, Noruega, Suécia e Suíça, que não faziam parte da então Comunidade Econômica Européia, CEE.


A década de 80 e 90 traz status a Portugal, já que o país passa a integrar a CEE, em 1986. Assim, o período é marcado por um crescimento econômico que torna o destino português cada vez mais desejado, inclusive com o reforço da idéia de ser um país em crescimento e com oportunidades. Nessa época, há a transição migratória de pessoas do Cabo Verde e do Brasil e Portugal se consolida como um país capaz de receber mão-de-obra estrangeira.


Na mesma década, o ano de 1993 é importante para a história da imigração de Portugal, pois o mesmo passa a vigorar no Acordo de Schengen, que determina a livre circulação de pessoas entre os países pertencentes à União Européia, UE.


Tráfico de mulheres


A partir de tal fato, registrou-se um volume significativo na imigração em todos os países da UE e Portugal refletiu essas conseqüências com um crescimento de 68,8% entre 2000 e 2001, segundo dados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, SEF. Os números referentes ao ano de 2003, de acordo com o SEF, expressam que os estrangeiros que passaram a morar em Portugal ou obter o visto de autorização permanente foi equivalente a 100%, cerca de 434.548 imigrantes.


Num título provocador, bem como instigante ao leitor, o artigo traz associações diretas, principalmente, com o elemento central da discussão: as ‘meninas’.


Preservando o termo na língua oficial, como visto claramente, as jornalistas responsáveis, Amanda Ripley, e a correspondente portuguesa Martha de La Cal, nos propõem uma relação imediata de que se trata de sujeitos cujos países possuem a língua portuguesa como idioma oficial.


Descrevendo a trajetória de uma das Mães de Bragança, em seu episódio de caça ao marido que se encontrava preso às ‘bitches and whores‘, Amanda Ripley revela a nacionalidade das ‘meninas’ através de comentário elaborado com exatidão, rigor e honestidade, tal como expressa o Código Deontológico dos Jornalistas Portugueses, e então é revelado o Brasil por trás daquelas meninas.


A partir de tal momento, Amanda situa o cenário central do evento que foi capa da revista Time, ou seja, a atividade sexual implantada pelas ‘meninas’, bem como os efeitos que tal ação acarretou na cidade. Através de um posicionamento sobre a atividade sexual mundo afora, a jornalista traz à tona a discussão sobre o tráfico de mulheres.




‘Bragança´s meninas brasileiras, or Brazilian girls, are part of the estimated $50 billion global sex trade that profits from the hundreds of thousands of women transported across national borders by human traffickers – often through coercion, sometimes willingly — to be sold or rented on the other side’ (RIPLEY, 2003).


Estereótipo cultural da mulher


O tráfico de pessoas é uma discussão que requer atenção da sociedade civil e das autoridades governamentais, justamente devido ao crescimento de eventos relacionados a profissionais do sexo, à imagem criada sobre as mesmas, e ainda, aos reflexos étnicos que isso impõe para as populações brasileira e portuguesa. A definição de tráfico de pessoas, segundo o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas Contra a Criminalidade Organizada Transnacional relativo à Prevenção, à Repressão e à Punição do Tráfico de Pessoas se entende como:




‘Entende-se por tráfico de pessoas o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou ao uso da força, ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tem autoridade sobre outra pessoa, para fins de exploração.’


Dissecando o fato noticioso do acontecimento popularmente difundido como ‘Mães de Bragança’, Amanda relata o acontecido no final de abril de 2003, quando um grupo de esposas decidiu travar guerra contra as ‘meninas’ de Bragança, através de um manifesto, ou melhor, um abaixo-assinado, entregue ao chefe de polícia do distrito, no qual atribuíam às ‘meninas’ a responsabilidade pela grande movimentação noturna e também o aumento do índice de criminalidade.


No prosseguimento de sua explanação, Amanda comete um grave erro em seu trabalho profissional. Talvez elaborado sem intenção, provavelmente por ser resultado de um processo étnico hierárquico ao qual foi submetida, ou talvez para provocar de forma discreta uma leve crítica à etnia brasileira, infringindo o princípio ético exposto no Código de que ‘o jornalista deve rejeitar qualquer tratamento discriminatório das pessoas em função da cor, raça, credos, nacionalidade ou sexo’ (Artigo 8, Código Deontológico dos Jornalistas Portugueses). No entanto, o que se percebe através da colocação ‘Now it´s becoming clear that the Brazilian women are not leaving Bragança’ (RIPLEY, 2003), é uma atitude extrema e unilateral de visão dos fatos relacionados a tal atividade, principalmente, por considerar que o problema é resultado exclusivamente devido às ‘meninas brasileiras’, e não aos fatores sociais, econômicos, étnicos e culturais. Acrescento ainda a estratificação com a nacionalidade brasileira, definindo um estereótipo cultural da mulher desse país, como se não houvesse oferta no mercado de prostituição em outras regiões do mundo.


Discriminação pela raça


Posteriormente, dando prosseguimento à narração da vida noturna de Bragança, a jornalista, em todos os momentos que necessita citar o comportamento das ‘meninas’, utiliza de forma explícita a característica da nacionalidade, como se esse fosse o elemento determinante para explicar o porquê da situação ocorrida em Bragança. Aliado a isso, Amanda, em suas intervenções na narração, utiliza certos recursos ortográficos que buscam despertar o leitor e levantar posicionamentos discriminatórios que aparentemente não seriam problematizados, tais como comprovados no trecho que se encontra entre parênteses.




‘In July, she tells me, she kissed her crying mother goodbye and boarded a plane out of Brazil to Paris (where there is said to be less scrutiny of Brazilian `tourists´)’ (RIPLEY, 2003).


A reportagem ‘When The Meninas Came To Town’ apresenta, essencialmente, o relato de duas mulheres brasileiras. Ambas protagonizam sujeitos conscientes de suas ações atuais, bem como o porquê de seus destinos na Europa e o conseqüente afastamento de seu país natal. Apresentando qualidade de vida financeira inferior no Brasil, as ‘meninas’ foram em busca de melhoria de vida a Portugal e se dispuseram a trabalhar como ‘artistas da noite’, como os brasileiros caracterizam tal atividade, segundo o comentário de Amanda. No entanto, tal evento em Bragança não pode ser caracterizado exclusivamente pela atividade do tráfico de mulheres ou pelo livre arbítrio das mesmas. Nesse espaço, cabe-nos discutir o perfil transmitido pela imagem da mulher brasileira veiculada na Time, que se encontra confusa sobre os porquês de tal movimentação na cidade.


Numa exposição dos impactos causados pela chegada das ‘meninas’ ao distrito de Bragança, a jornalista apresenta a movimentação ocorrida na cidade, destacando o mercado das cabeleireiras e dos taxistas, e o comportamento dos mesmos perante as ‘meninas’, que se organizavam em grupos, existindo ainda aquelas que sofriam uma maior discriminação não só pela etnia, como também pela raça, o fato de ser negra:




‘I’m not racist,’ Ana says. ‘But there are many hairdressers who are. They refuse to receive them in their shops’ (RIPLEY, 2003).


Drogas e elementos de bruxaria


Em sua reportagem, Amanda estabeleceu contato com um dos responsáveis pelo tráfico de mulheres do Brasil e Portugal, o senhor Manuel Podence, que em suas colocações considera o papel da mulher brasileira como o suprimento para o que falta nos casamentos, nomeando-as inclusive de psicólogas. Porém, uma das falas de Podence tem destaque para a figura estereotipada da mulher brasileira, quando o mesmo afirma para uma das esposas participante do movimento ‘Mães de Bragança’ que o que a brasileira tem que aquela portuguesa não tem são 15 quilos a menos e a disponibilidade para fazer qualquer coisa por dinheiro.


O comportamento de Podence, ou melhor, a caracterização estereotipada da mulher brasileira nomeada pelo mesmo, não é algo isolado entre os indivíduos que não conhecem o Brasil. Ao contrário, é algo quase estabelecido como senso comum – de que as brasileiras possuem ‘um jeito’ e ‘um corpo’ diferente das demais mulheres no mundo.


Em sua dissertação de mestrado em Antropologia do Espaço pela Universidade Nova de Lisboa, Luciana Pontes avalia as associações do processo de sexualização da mulher imigrante brasileira em dois pontos principais. Primeiramente, associa tal estereótipo ao fato de ser uma imigrante e, portanto, de um grupo étnico-racial exótico, periférico, racializado e de uma classe econômica subalterna. O outro fator que Luciana analisa é o fato da mulher brasileira ser oriunda de um país com a cultura do carnaval, sexualidade, culto ao corpo e também da pobreza, violência e subdesenvolvimento.


No decorrer final da reportagem, na qual fez menção às ‘meninas’ por 13 vezes no espaço de oito páginas, há a exposição da idéia criada pelas esposas de como seriam essas mulheres brasileiras, com acusações de sedução através do uso de drogas, como também de elementos de bruxaria.




‘I think they give the men drugs,’ Paula continues. ‘He used to work day and night. Sometimes we had arguments, but then it passed.’ If not drugs, then maybe witchcraft; some Brazilian immigrants are known to practice magic. They put flowers at crossroads to win men´s hearts and the names of their enemies on the soles of their shoes. So some Portuguese wives have tried counterspells, going to witch doctors to have their husbands cleansed’ (RIPLEY, 2003).


Um grande espetáculo da mídia


Em resposta à movimentação do primeiro momento, ainda veiculado internamente no país, as emissoras televisivas portuguesas elaboram matérias de rotina, no período de junho e julho, para cobrir a atuação da Força de Segurança.


Apesar de variações das políticas editoriais, a pesquisadora Isabel Ferin Cunha afirma que a maioria das matérias veiculadas foi de reportagens realizadas à noite e que, segundo as fontes, visavam a conferir a situação legal dos bordéis, ou casas de alterne, como chamado em Portugal, dos donos e das trabalhadoras. Assim, a Força Nacional torna-se personagem principal com imagens de viaturas da polícia no ambiente de luzes de discoteca, penumbra e suspense que, segundo Isabel, apresenta características de um vídeo-clipe.


De acordo com o artigo ‘A mulher brasileira na televisão portuguesa’, Isabel nos diz que a emissora TVI é a que dá mais relevância a essas matérias. Segundo a autora, através de elementos da construção do texto, edição e tempo destinado para o assunto.


Numa valorização do produto externo sobre o interno, a mídia portuguesa parece reativar o fato após a publicação da matéria da revista Time. Isabel Ferin afirma que o segundo momento é a repercussão da matéria da Time, que mobilizou três canais de sinal aberto, RTP1, SIC e TVI, do dia 14 de outubro de 2003, data da publicação da matéria, até o fim de novembro. Esse grande espetáculo da mídia portuguesa rendeu matérias com duração total de até 17 minutos e 30 segundos num único dia. Nesse cenário, a cobertura jornalística deu voz às mulheres prostitutas, populares da cidade, empresários, governador civil e até ao bispo de Bragança.


Conclusão


Os estereótipos apresentados anteriormente, não só pela jornalista Amanda Ripley, como também pelos moradores de Bragança, principalmente através daquelas que mais se incomodavam com a presença das ‘meninas’ na região, as esposas, é resultado da predominância da ação repassada pela mídia sobre o Brasil.


O caso das ‘Mães de Bragança’ virou um espetáculo midiático na época, quando todos os habitantes queriam ouvir ‘as Mães’, primeiramente num evento interno, e depois internacionalizado pela Time.


O episódio, embora cercado de representações, faz associação ao tema da sexualidade ilegítima praticada por exóticas mulheres, destacadamente sensuais, vindas dos trópicos brasileiros, e que possuem um extremado poder de sedução, num estabelecimento de imagens de mulheres imigrantes brasileiras restringidas ao sexo e malandragem, em oposição a um comportamento omisso do homem português, que é apresentado em caráter de desculpabilização sobre tal situação.


À identidade brasileira, a mídia – não só portuguesa, como européia – realiza a ligação estreita entre características raciais, comportamentais e culturais, como, por exemplo, a morenidade, a sensualidade e o samba, que em três composições generalizam a população, o modo de viver no Brasil e os costumes do mesmo. No entanto, tal ato, que rompe com os limites éticos dos profissionais da imprensa, não somente é apresentado na mídia portuguesa, como também é produto da própria mídia do Brasil, que, indiretamente, através de suas publicidades sobre produtos exportados, como também sobre o turismo, e principalmente através das telenovelas – que, por sinal, têm grande repercussão em Portugal – evocam um estereótipo sobre homens e mulheres brasileiros.


De acordo com Luciana Pontes, em seu artigo ‘Mulheres brasileiras na mídia portuguesa’, a etnicidade surge nesse âmbito como forma de pertença a um grupo e diferenciação de outros. Especialmente no processo que busca diferenciar os comportamentos, se estabelece a noção de oposição entre Primeiro e Terceiro Mundo.


Como resultado de tal fenômeno, forma-se uma unidade política que se associa ao sentimento de pertença nacional, genealogia e, principalmente, ao simbolismo criado em torno da língua, território e do povo.


Numa conjectura que considera o elemento econômico como fator decisivo na construção da imagem da mulher brasileira, as representações da imagem da mesma na mídia portuguesa podem estar relacionadas à posição subordinada das imigrantes no mercado de trabalho e ao surgimento de negócios que capitalizam o exótico. No que se refere a essas associações pré-definidas sobre a mulher do Brasil, ‘alegre e sensual’, há a provocação no campo sexual português de uma demanda por prostitutas brasileiras, devido à idéia culturalizada que passou a ser legitimada nesse mercado.


Atuando para a consolidação desse cenário, a influência dos grandes meios de comunicação torna-se referência para a construção da opinião pública, propagando não apenas um fenômeno relativo à imprensa como contribuindo para a formulação de uma cultura comunicacional global onde há presente uma hierarquia política, econômica, social e cultural.


Referências Bibliográficas


RIPLEY, Amanda. ‘When The Meninas Came To Town’. Revista Time Europe, 2003. Disponível em: http://www.time.com/time/europe/html/031020/story.html


PONTES, Luciana. ‘Mulheres brasileiras na mídia portuguesa’. Universidade Nova de Lisboa, 2004. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/cpa/n23/n23a08.pdf


SANTOS, Clara Almeida. ‘Imagens de mulheres imigrantes na imprensa portuguesa: análise do ano de 2003’. Lisboa: Universidade de Coimbra, 2007. 126 p. Dissertação de Mestrado em Comunicação e Jornalismo, Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra, 2007.


SILVA, José da; RIOS, Alice ; BARBOSA, Madalena. ‘O impacto e a utilização dos meios de comunicação como promotor ou inibidor do `comércio´ sexual’. In: Cadernos de Condição Feminina, Tráfico e Exploração Sexual de Mulheres: Actas do (01) Seminário Internacional. Porto: 2ª edição, pg. 117-130.


CUNHA, Isabel Ferin. ‘A mulher brasileira na televisão portuguesa’. Actas do III Congresso da Associação Portuguesa de Comunicação. Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/cunha-isabel-a-mulher-brasileira-na-televisaoportuguesa. pdf


INTERNACIONAL LABOUR OFFICE. Tráfico Para Trabalho Forçado: como fiscalizar o recrutamento de trabalhadores imigrantes. Organização Internacional do Trabalho, Lisboa: 2006. Disponível em: http://www.ilo.org/public/portugue/region/eurpro/lisbon/pdf/trafico_manual.pdf

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Estudante do curso de graduação em Comunicação Social, Habilitação em Jornalismo, da Universidade Federal de Alagoas. Intercambista em 2008 no curso de Jornalismo e Ciências da Comunicação da Universidade do Porto, Portugal