Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Uma jornada chinesa

Em 2005, a jornalista Sônia Bridi mudou-se para a China acompanhada do marido, o repórter fotográfico Paulo Zero, e do filho Pedro, na época com três anos, e sua babá. Correspondentes internacionais da TV Globo, Sônia e Paulo tinham uma missão: criar a primeira base da emissora brasileira no Oriente. O casal permaneceu na China até fins de 2006. Em janeiro de 2007, Sônia e Paulo foram transferidos para Paris. Os dois anos passados na China deram ao casal o raro privilégio de testemunhar o acelerado processo de mudanças no país que mais cresce no planeta. Incentivada por Paulo Zero e amigos, Sônia Bridi decidiu escrever sobre essa experiência, e o resultado é o livro Laowai – Histórias de uma repórter brasileira na China, ilustrado com fotos de Paulo Zero.

Laowai é como os chineses se referem ao estrangeiro. O livro combina análise, reflexões e o registro da vivência do casal numa cultura de costumes exóticos, burocracia enervante, muita riqueza material e níveis alarmantes de pobreza, paisagens desmesuradas, rica culinária e medicina milenar. Para contornar a barreira do idioma e garantir uma melhor adaptação ao estilo de vida do país, Sônia e Paulo contaram com um pequeno núcleo chinês: a intérprete Sheryl, o motorista Li e a babá Wang (que substituiu a babá brasileira, um ano depois).

A narrativa nos conduz por pequenas ações, como ir a um banco, fazer compras, tirar uma carteira de motorista, rotinas triviais num país ocidental, mas que podem se tornar um exasperante exercício de paciência numa cultura desconhecida e exótica. Segundo Sônia Bridi, essa tão celebrada paciência chinesa não passa de conformismo. Como o chinês não pode afrontar o poder e modificar a dura realidade à sua volta, acaba mesmo se conformando.

Paralelo entre culturas

A falta da liberdade de expressão é um capítulo particularmente dramático para jornalistas que trabalham na China. Sônia Bridi conta como deu tratos à bola para vencer a espessa cortina da censura imposta pelas autoridades. Essa censura ia da lentidão da internet, fato que dificultava a transmissão das matérias para o Brasil, até a proibição para filmar em locais considerados proibidos. Uma faceta dessa censura é limitar o acesso à fonte. ‘Sabemos muito bem que para nós o máximo que pode acontecer são algumas horas trancafiados em uma cadeia, mais uma bronca. Em casos gravíssimos, a deportação. Entretanto, para os chineses que ajudam jornalistas estrangeiros a pena pode ser pesadíssima’, escreveu Sônia Bridi.

Hábitos culturais, que para nós, ocidentais, soariam como incontestes sinais de má-educação, como soltar pum e escarrar em qualquer lugar, não passam de gestos comuns para os chineses, revelando um princípio da mentalidade chinesa: o que é ruim deve ser expulso do organismo. Situações como desorganização e empurrões em filas podem soar como descortesia aos olhos ocidentais, mas refletem os ensinamentos do confucionismo: o mais forte manda e o mais fraco obedece. Apesar da fachada moderna, o que conta é o peso da tradição e esta ainda determina o papel submisso da mulher na sociedade chinesa. Sônia Bridi descreve o caso de uma ginecologista que, embora bem-sucedida profissionalmente, mostrou-se resignada a essa condição.

Alguns capítulos do livro são dedicados às visitas que Sônia Bridi e Paulo Zero fizeram a países da Ásia como Índia, Japão, Coréia do Norte, Cingapura, Tibete e Vietnã, e estabelecem um paralelo entre essas culturas. Na entrevista que se segue, concedida por e-mail, de Paris, Sônia Bridi fala do seu livro e da sua jornada chinesa. ‘A China me transformou até a medula dos meus ossos.’

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Você foi correspondente em Nova York e Londres, e realizou coberturas pontuais em dezenas de países. Ter vivido dois anos na China foi sua experiência mais importante? Por quê?

Sônia Bridi – Sim. Porque tudo estava lá, esperando ser desbravado. A China, por causa do seu regime e do seu isolamento histórico, era e ainda é cercada de mistério, provoca a sensação de que vamos descobrir um mundo muito diferente. E essa intuição se provou verdadeira. Na China, para onde você olha, encontra uma pauta interessante e inédita. Nos outros lugares, há coberturas muito interessantes, mas tudo já foi visto e reportado antes, digamos assim. E não há o estranhamento de fazer parte de outro universo humano. A China também é hoje a maior cobertura jornalística em andamento. O crescimento econômico, as mudanças sociais, a repressão política. Tudo na China é superlativo – um movimento do povo chinês muda os índices da humanidade. Então, a China foi mais importante porque me devolveu, depois dos 40 anos e de muita cobertura, o entusiasmo pela reportagem.

Em sua temporada chinesa, você deve ter colecionado um roteiro muito grande de situações. Que critérios você utilizou para selecionar as histórias contadas no livro?

S.B. – Simples: todas aquelas que você conta para os amigos, merecem ir pro livro. Aquelas angústias que eu desabafava com minhas irmãs pelo telefone também acabaram entrando, mas porque no final decidimos (Paulo e eu) que o impacto na nossa vida pessoal deveria estar no livro, para dar a dimensão do choque cultural. Por isso, minha angústia com a adaptação do Pedrinho, a solidão, tudo isso acabou entrando. Mas no geral, o critério foi: se você faz força para lembrar, a estória não merece ser contada.

‘Foi só acertar como e quando’

Como se sentiu diante de tantas novidades e as dificuldades em relatá-las por causa da censura?

S.B. – É frustrante, revoltante, terrível, viver com o sentimento de impotência. Mas ao mesmo tempo, esse sentimento me aproximava do chinês comum, aquele que sofre a mesma repressão, mas muito mais intensamente.

Essas dificuldades eram comuns também às grandes redes de TV estrangeiras, como a CNN?

S.B. – Sim. Todos sofrem para conseguir acesso a fontes, por isso trabalhávamos muito juntos, trocávamos informações, estávamos sempre em contato. A notícia de que alguém conseguiu uma reportagem legal corria rápido e nos animava a todos. Em 2005 fizemos um vivo inédito na história da China, uma transmissão de um local aberto, o Templo do Céu. As transmissões ao vivo lá são muito controladas, geralmente num local ao qual o povo não tem acesso. Ao darem permissão para nós fazermos o vivo, os chineses estavam experimentando uma abertura que foi acontecendo muito aos poucos. Paulo e eu ficamos instantaneamente famosos entre os correspondentes de TV na China, que vinham perguntar: como vocês conseguiram? Depois da gente, outros fizeram, mas a dificuldade ainda é muito grande.

Você já tinha estado na China antes, para cobrir a visita do presidente Lula àquele país. Aquela viagem ajudou em sua decisão de ocupar um posto de correspondente por lá?

S.B. – Sim, tanto a minha como a do Paulo. Os dois saímos daquela viagem com tantas idéias de pauta, de voltar e fazer as matérias que pipocavam na nossa frente e não conseguimos fazer, que quando veio o convite foi só uma questão de acertar como e quando, mas não havia dúvida de que iríamos.

O senso de empatia

O fato de ser mulher e laowai abriu ou fechou portas para você na China?

S.B. – A China é um país muito complexo, que, como o Brasil, tem seus universos paralelos, com valores e situações sociais muito diferentes. Há os que hostilizam os laowais porque são laowais – os chineses sofreram muito nas mãos das potências européias que lotearam o país entre elas, e depois, durante a ocupação japonesa. Há um tanto de racismo, também – outro termo usado para chamar os estrangeiros é os ‘incivilizados’, ou bárbaros, pois somos inferiores culturalmente, na visão desses chineses. Mas há também empresários, mulheres que mandam nas companhias e no governo, há gente aberta para o exterior, gente curiosa. Volta e meia íamos fazer uma reportagem e o entrevistado ou a entrevistada se encantava ao ver uma mulher laowai e jornalista trabalhando lá. Mas também houve casos, como um que relato no livro, de homens que se recusavam a fazer qualquer coisa que fosse pedida por mim ou pela intérprete. O Lao Ma, nosso controlador no primeiro Globo Repórter que fizemos lá, só passou a parar onde queríamos fazer uma imagem, ou concordar com alguma gravação, quando percebemos que ele só levava em conta o que o Paulo dizia. Então, o Paulo, contra todos os seus instintos, sempre falava berrando com a intérprete para pedir que ela falasse ao Lao Ma o que queríamos fazer. Funcionou…

Seu livro traz uma citação de Mark Twain, que diz: ‘Viagens são fatais ao preconceito, à discriminação, à visão estreita.’ Até que ponto sua vivência chinesa foi transformadora para você?

S.B. – Respondo com Goethe, que está citado no final do livro, mesmo sendo eu mesma, estou transformada até a medula dos meus ossos. Uma experiência tão intensa, vivida em família; dificuldades tão grandes que tivemos em casa e no trabalho; acompanhar as imensas tragédias humanas que são as vidas de cada chinês, tudo isso deixa marcas profundas. Acho que, principalmente, desenvolvi mais o senso de empatia, de me botar no lugar dos outros, tentar entender o raciocínio alheio.

Mao atingiu status de divindade

Seu marido e seu filho são personagens do livro. Como foi a decisão de contar sua experiência a partir de uma perspectiva familiar?

S.B. – Muito difícil. Sempre fomos muito reservados e nunca gostamos de ter essa exposição pública. Mas conversamos muito, Paulo e eu, e concluímos que não dava para contar essa história, dar o peso do que foi esse choque, sem contar o que se passou com Pedrinho e com as pessoas que nos cercavam. Na afetividade da Wong, nossa empregada, nos desafios da Sheryl, a intérprete, nas conquistas do Li, nosso motorista e empreendedor, em tudo isso havia uma lição para nós.

A intérprete Sheryl e o motorista Li foram vitais para a adaptação de sua família. Você ainda mantém contato com eles?

S.B. – Sim. Mais com a Sheryl, com quem posso conversar em inglês. Mas ela é ainda minha intérprete para falar com Li e Wong, a babá, sempre me dá as notícias, me conta o que acontece com eles, relata a eles a adaptação do Pedrinho na França. Nas Olimpíadas, encontrei com Li e Sheryl, que continuam trabalhando para a Globo. Li, ao me ver, disse ‘Sônia, saudades’. Ele tinha ensaiado durante dias para poder falar isso em português. Eles foram muito importantes e leais num momento difícil de minha vida – têm minha amizade e gratidão eternas.

No livro, você descreve um episódio em que foi vítima da agressividade de um grupo de chineses, violência que você atribui a uma espécie de espírito remanescente da Revolução Cultural. A lembrança de Mao ainda é algo relevante na memória dos chineses?

S.B. – Mao atingiu o status de divindade para os chineses. É uma presença que os assombra e os conforta. Foi Mao quem ajudou a acabar com a ocupação japonesa, deu direito a todos de terem escola, estabeleceu igualdade entre homens e mulheres. Também foi Mao quem fez o desastrado Grande Salto Adiante e a terrivelmente cruel Revolução Cultural. Hoje, os chineses vivem uma situação como a de um filho que descobre que o pai não só era cruel em relação a ele, o filho, mas cometeu atrocidades que atingiram a todo o país. Se reconciliar com a memória dessa figura tão importante para o bem e para o mal é uma terapia em andamento na China.

Tudo que incomoda deve ser expelido

No Brasil, o poder econômico chinês é sinônimo de pirataria e de produtos baratos e de baixa qualidade. Essa é uma visão que os chineses também têm dos seus próprios negócios?

S.B. – É comum a gente conversar com um executivo chinês e ele dizer: daqui a cinco anos, terei a maior parte do mercado da Ásia e em sete terei 40% do mercado mundial. Quem tem juízo, leva a sério. Nos negócios, como na administração pública, eles planejam a longo prazo e com freqüência atingem seus objetivos. Hoje, eles sabem que começaram o processo de enriquecimento produzindo porcarias. Mas estudaram o suficiente as estratégias do Japão e da Coréia para saber que é possível dar o salto de qualidade. Eu ainda me lembro do tempo em que as pessoas diziam made in Japan torcendo o nariz. Agora, a China tem um problema imenso pela frente, que é dar credibilidade aos seus produtos – quando um país institucionaliza as falsificações e piratarias, o feitiço pode se voltar contra o feiticeiro. O caso das pastas de dentes contaminadas vendidas pelo mundo afora, ou da comida de cachorros, tiveram respostas fracas do governo chinês, até que o mesmo produto foi usado para ‘turbinar’ leite em pó para bebês. O problema do made in China não é uma questão de ser um produto de pouco valor agregado a não ser mão-de-obra barata, nem de ser uma ‘porcaria’ baratinha para vender na 25 de Março. O problema é que não se pode confiar no produto deles – perdeu-se o sentido da ética. Um dos agravantes é o fato de não haver nem o conceito de direito do consumidor na China. O comerciante, o industrial que engana os consumidores, sai ileso durante muito tempo – até que uma turba entre e destrua a loja ou a indústria, fazendo justiça com as próprias mãos, ou até que o governo, para salvar a face, condene alguém à morte para acalmar as multidões.

No livro, você relata casos engraçados dos hábitos chineses, como escarrar e soltar pum em qualquer lugar. Você acredita que os chineses serão forçados a abdicar de suas tradições em nome do progresso econômico?

S.B. – De certa forma, foi isso que nós, ocidentais, fizemos ao aposentar as escarradeiras. Se soltar puns publicamente nunca fez parte dos hábitos ocidentais (apesar de que se um extraterrestre tentasse conhecer a humanidade pelos filmes de Fellini, concluiria que sim…), cuspir era tolerado. Foram campanhas sanitárias, mais do que o enriquecimento, que mudaram esse hábito. Na China há muitas campanhas, principalmente depois da SARS [Síndrome Respiratória Aguda Grave]. O problema é que a medicina chinesa diz que tudo o que está incomodando no corpo deve ser posto para fora – isso inclui os gases e as secreções pulmonares.

Retorno dos leitores

Além de muitas medalhas, você acha que a China ganhou um pouco mais de civilidade com as Olimpíadas, ou pode ter sido apenas um breve interlúdio?

S.B. – Eu não diria civilidade, porque eles têm uma civilização rica, com cinco mil anos de história. É uma civilização com valores diferentes dos nossos. Eles adotarão, como já vêm adotando, mais hábitos ocidentais, que nós chamamos de boas maneiras. Isso vem com o consumo, que cresce assustadoramente na China. Eles não querem apenas vestir as grifes francesas e italianas, mas se comportar como europeus ou americanos.

Mais liberdades? Talvez. Minha tese, que é também a de muitos estudiosos que entendem bem mais de China do que eu, é de que isso acontecerá muito lentamente. A menos que a crise econômica acelere um processo de revoltas populares pedindo não liberdade, mas emprego e comida. Mas a história da China mostra que revoltas populares não derrubam o regime – apenas endurecem a repressão.

Seu livro está nas listas dos mais vendidos no Brasil, na categoria de não-ficção. Você esperava esse sucesso?

S.B. – De jeito nenhum. Escrevi primeiro porque a pressão dos amigos (e do Paulo) era imensa. Me sentia uma devedora. Depois porque achei que precisava botar mais ou menos organizado, numa obra só, as descobertas que fiz reportando na China por dois anos. Quando tudo está junto num livro, apesar de o conteúdo já ter aparecido nas reportagens e programas do Globo Repórter, tenho a impressão de que é mais fácil a compreensão dessa realidade tão complexa – apesar de que meu livro também apenas arranha a superfície desse universo. Pensei que estudantes de Jornalismo, e talvez os colegas jornalistas, se interessassem. Estava em Pequim para as Olimpíadas quando uma amiga me ligou dizendo que o livro tinha emplacado as listas no fim-de-semana. Achei que ela estava brincando comigo. Mas confesso que estou adorando receber o retorno dos leitores, gente de todo tipo de background falando sobre o livro.

Movimentos fascinantes

Você agora é correspondente da TV Globo em Paris. O que muda em relação à China?

S.B. – Paris é uma cidade fascinante, só um tolo reclamaria de viver aqui. Mas a verdade é que Paulo e eu hesitamos muito em fazer a troca. Estar na China hoje deve ser mais ou menos como estar em Paris na virada do século 19 para o 20 – a reforma urbana de Hausmann, as grandes obras, a descoberta das estruturas de aço nas construções, ver a torre Eiffel se erguendo, os pioneiros da aviação fazendo história no Campo de Marte. A França era um grande império cultural e econômico, tudo aqui borbulhava. A China pode não ter a parte cultural, mas está explorando todas as possibilidades que o crescimento econômico pode proporcionar. Veja a arquitetura, muitas vezes cafona, mas mais recentemente ousada, arrojada, bonita, envolvendo os maiores nomes da arquitetura contemporânea – acho que daqui a um século esse período da arquitetura chinesa vai atrair turistas como hoje há os circuitos de art nouveau em Paris ou art déco em Nova York. Eles estão conquistando o espaço, tentando quebrar o ciclo da miséria no campo e nas cidades, há uma energia construtiva.

Já a França tem uma realidade diferente, que está se mostrando também muito interessante neste período. Mal chegamos e cobrimos a eleição mais charmosa dos últimos tempos. A França tem uma economia desenvolvida que perdeu o dinamismo e por isso está buscando reformas para revitalizar sua produção. Mas sendo a fonte das teorias que levaram às conquistas sociais, a França depara com o desafio de manter essas conquistas em tempos duros de competição e de produção barata. Que vem de onde? Da China. Tem sido fascinante acompanhar esses movimentos.

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Jornalista, editor da revista eletrônica Balaio de Notícias