É de inegável mérito e da maior relevância para a cidadania a decisão do Supremo Tribunal Federal de conceder liminar suspendendo os efeitos de diversos dispositivos da famigerada Lei de Imprensa. Produzida em pleno regime militar, essa lei nada mais é que um resíduo inadequado e rançoso do período ditatorial, incompatível com nosso regime democrático.
Pelas mãos do culto ministro Carlos Britto, a decisão tem o condão de sedimentar erga omne (com efeito para toda sociedade) valores fundamentais do Estado Republicano e Democrático de Direito conformado em nossa ordem constitucional, fazendo valer os direitos à liberdade de expressão e ao de informar, essenciais ao exercício da plena cidadania.
Em sua maioria, esses dispositivos suspensos já vinham sendo tidos como incompatíveis com a ordem constitucional de 1988 por tranqüila jurisprudência. No plano político-institucional, a decisão carreia o inegável mérito de traduzir-se num convite do Judiciário ao Parlamento, para que este cumpra sua função estabelecendo nova legislação disciplinadora dos limites e prerrogativas inerentes ao exercício livre da atividade da mídia em nosso país.
Valor fundante
Muitos são os que argumentam que os Códigos Civil e Penal já contêm os dispositivos necessários ao estabelecimento dos limites da atividade de comunicação social em relação aos direitos subjetivos da honra e imagem pessoal.
Mas é necessário observar que os dispositivos de nossos Códigos se prestam à garantia do direito à honra e à imagem da pessoa quando em relação entre particulares comuns, cuja possibilidade de dano real ao ofendido é extremamente mais limitada que o relativo à atuação dos meios de comunicação.
Por outro lado, a legislação civil e processual geral traz a possibilidade de concessões de liminares e antecipações de tutela por juízes singulares, que podem se travestir em verdadeiras ordens de censura prévia, o que se põe em conflito com os valores democráticos que devem orientar a atividade jornalística de informação do público.
De um lado, a necessidade do estabelecimento de formas peculiares de indenização e sanção que inibam abusos dos órgãos de mídia, e, de outro, a indispensável criação de uma norma processual especial, que não permita a censura prévia de noticias pela jurisdição, são, a nosso ver, motivos mais que suficientes para a produção de legislação especial regulamentadora da atividade de imprensa e de mídia.
Não há que se confundir o direito à liberdade de expressão e informação com uma liberdade absoluta, sem limites e sem freios. Os meios de comunicação são dotados de um poder imenso, num modelo de vida social onde a imagem e a opinião da alteridade sobre a pessoa é valor fundante de integração e aceitação na vida social. A ocorrência de algum erro ou abuso no exercício da atividade informativa que atinja a imagem de alguém poderá se revelar de quase impossível reparação, trazendo conseqüências para toda a vida do ofendido.
Exigência cidadã
Vivemos num modelo social conformado pelos vínculos comunicativos. Não mais nos encontramos nas sociedades feudal e aristocrática em que o local de nascimento era o critério discriminador da aceitação social das pessoas.
A mobilidade social advinda da sociedade capitalista de classes conjugada ao conseqüente desenvolvimento tecnológico dos meios de comunicação, de forma nunca antes vista na história humana, conformaram um ambiente de vida social onde o sentimento de auto-estima e de aceitação da pessoa pela sociedade é estimulado pela opinião da alteridade, representada pela mídia quando a pessoa se transforma de ser em signo nas noticias dos jornais e da TV.
O poder da mídia é imenso e incomensuravelmente superior ao da pessoa. Há inequívoca relação de hipossuficiência entre a pessoa e sua imagem e o poder informativo dos meios de comunicação na sociedade democrática contemporânea.
Num regime democrático e republicano não deve haver poderes imperiais. Quanto maior o poder de interferência de algum agente econômico ou social na vida das pessoas e da sociedade maior a correspondente responsabilidade que deve acompanhar o exercício de sua atividade e, portanto, maior a possibilidade de conseqüências graves na hipótese de eventual abuso.
A produção de uma legislação moderna, republicana e democrática que regule a atividade de imprensa é uma exigência da vida cidadã. Com a palavra nosso Parlamento.
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Professor de Direito Constitucional da PUC-SP, autor do livro O desvio de poder na função legislativa (FTD) e co-autor de Dez anos de Constituição (IBDC)