Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Uma peça do Judeu comprovada

Depois de Gil Vicente (1465-66?/1536-40?), o teatro popular português passou por um longo período de decadência, que se acentuou ainda mais entre o final do século 16 e a primeira metade do século 17, quando Portugal esteve sob domínio espanhol, ainda que haja algumas obras no gênero nesse período. Foi só no começo do século 18 que o panorama inverteu-se com o aparecimento de um jovem nascido no Rio de Janeiro numa família de cristãos novos, Antônio José da Silva (1705-1739), alcunhado o Judeu, que escreveu peças que deixaram o seu nome marcado para sempre na história do teatro luso-brasileiro.

Uma dessas peças, El Prodígio de Amarante (O prodígio de Amarante), acaba de ter a sua autoria comprovada por pesquisas de dois dos mais atilados investigadores de sua vida e obra em ambos os lados do Atlântico – o jornalista brasileiro Alberto Dines e o jornalista português Victor Luís Eleutério. O texto saiu em livro ao final de 2005, em edição bilíngüe, pela Editora da Universidade de São Paulo (Edusp), dentro das comemorações do tricentenário do nascimento do comediógrafo.

Autor do monumental Vínculos de Fogo, Antônio José da Silva, o Judeu, e outras Histórias da Inquisição em Portugal e no Brasil (São Paulo, Companhia das Letras, 1992), exaustiva e minuciosa pesquisa realizada em documentação manuscrita na Torre do Tombo e outros arquivos portugueses, Dines preparou para esta edição um texto de abertura em que resume, com o seu inconfundível estilo, a tragédia do jovem dramaturgo, além de apresentar elementos que permitem a comprovação da autoria de O Prodígio de Amarante, sobre a qual ainda pairavam dúvidas.

Dines também traça a ‘Cronologia da Vida de Antônio José da Silva’ em que se pode ver que, aos 7 anos de idade, o futuro comediógrafo ficou temporariamente sem os pais, João Mendes da Silva e Lourença Coutinha, que, acusados de praticar rituais judaicos, foram embarcados à força para Lisboa. Penitenciados os pais de Antônio José no auto-de-fé de 9/7/1713, o menino e seus irmãos, que haviam sido acolhidos por parentes paternos no Rio de Janeiro, foram enviados para tios maternos, que viviam em Portugal.

Condenado à morte

Apesar da perseguição religiosa, João Mendes da Silva pôde reunir a família em 1713 em Lisboa e viver em abastança e com prestígio social, desempenhando as funções de advogado da Casa da Suplicação, o que justifica o fato de o seu primogênito, Balthazar, ter estudado Direito Canônico em Coimbra.

Antônio José seguiu os passos do irmão, mas não concluiu o curso de Direito em Coimbra, segundo Dines, por ter sido preso, por ordem do Santo Ofício – o que não o impediu de assinar-se ‘Doutor’ em muitas de suas peças, embora Diogo Machado Barbosa, seu contemporâneo, em sua Bibliotheca Lusitana, tenha escrito que exercitava o ofício de advogado de causas forenses em Lisboa.

Penitenciado em auto-de-fé de 1726, Antônio José começou a carreira teatral logo depois, tendo visto encenada a zarzuela Amor Vencido Amor, provavelmente em 1729. Dessa data até 1733, escreveu Os Amantes de Escabeche, Fábula de Apolo e Dafne e El Prodígio de Amarante. Em 1733, encenou a primeira peça, A Vida do Grande D.Quixote de la Mancha e do Gordo Sancho Pança. Casou-se em 1734, aos 29 anos, com Leonor Maria de Carvalho, cristã-nova da Covilhã, penitenciada em 1727 em auto-de-fé em Valladolid, na Espanha.

Em 1737, denunciado por uma escrava, foi levado novamente às barras da Inquisição em companhia da mulher e da filha. E, ao fim de dois anos, acabou sentenciado a morrer degolado e queimado em auto-de-fé, em cadafalso armado no Terreiro do Trigo. Até ser preso pela Inquisição, Antônio José viu encenadas várias peças em Lisboa, a mais famosa a ópera joco-séria Guerras do Alecrim e da Manjerona (1737), inspirada nos conflitos entre os ranchos de Coimbra, a única obra teatral ambientada em Portugal e impressa pouco antes de ser levada à cena.

Fios soltos

Como assinala Dines, a fama de Antônio José era tão grande em Lisboa que levou Diogo Barbosa Machado, apenas dois anos depois de sua execução pública, a preparar um verbete a ser incluído no primeiro volume de sua Bibliotheca Lusitana (1741), obra hoje fundamental para quem pesquisa o século 18 português.

Em 1987, José de Oliveira Barata, ao participar do 1º Congresso Internacional sobre a Inquisição, em Lisboa, como lembra Dines, levantou a hipótese de que o Antônio José da Silva executado pela Inquisição não fosse o autor das comédias, mas, até hoje, essa questão não está bem elucidada. Barata é também o único dos estudiosos contemporâneos da vida e obra do Judeu que o rejeita como autor de O Prodígio de Amarante.

Escrito em espanhol, como era comum ainda no começo do século 18 em Portugal, esse texto não constitui uma obra-prima, como deixam claro Dines e Eleutério, mas, de qualquer modo, é peça importante na bibliografia de Antônio José da Silva, que teve outras peças atribuídas a sua autoria, mas sem comprovação. Para afastar dúvidas, Eleutério elaborou uma análise comparativa de textos com o objetivo de mostrar que a autoria só pode mesmo ser atribuída ao Judeu – alcunha que, a princípio, era infamante, mas que serviu para distingui-lo na história do teatro português.

O professor M. Rodrigues Lapa (1897-1989), em artigo publicado na revista Seara Nova, em 1935, foi o primeiro estudioso a atribuir a peça ao Judeu. O francês Claude-Henri Frèches fez o mesmo em 1967, em trabalho acadêmico mais extenso acompanhado do texto do original em espanhol.

Como observa Dines, o castelhano que o Judeu utiliza em El Prodígio de Amarante é um falar aportuguesado, mas, para nós, hoje parece mais próximo do galego, idioma que seguiu nesse caminho em função de seu amancebamento forçado com o castelhano.

É um texto castelhanizado porque, como observa Eleutério, esse era o gosto do espectador lisboeta da época, marcadamente influenciado pelas companhias de comédias espanholas que durante 140 anos visitaram Portugal, especialmente depois de 1580, quando o país esteve sob o domínio filipino, até 1640, quando se separou.

Como se vê, embora autor de comédias – a que chamou de óperas, pois eram acompanhadas de música e de canto –, o Judeu não seguiu as pegadas de Gil Vicente, deixando-se impregnar por influências do teatro espanhol e mesmo da comédia clássica. É ainda um caso a ser decifrado e que há de suscitar mais estudos, pois, apesar dos louváveis esforços de Dines, Eleutério, Frèches, Lapa e outros, ainda há muitos fios soltos na história de vida do Judeu.

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Doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003)