Wednesday, 04 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Uma teoria que se desmancha na prática

Este artigo é uma versão ampliada da resenha que a autora publicou, sob o título ‘No vácuo da ética’, na revista Pesquisa Fapesp, edição de junho de 2009.

O abismo entre os elevados ideais éticos e o exercício cotidiano do jornalismo – ou, como se costuma dizer, não sem alguma simplificação, o abismo entre teoria e prática – é a preocupação central de Caio Túlio Costa em seu mais recente livro, lançado em fins de março em São Paulo. Ética, jornalismo e nova mídia – uma moral provisória, resultado de sua tese de doutorado apresentada à Escola de Comunicações e Artes da USP, tem o mérito essencial de apontar a necessidade do questionamento da prática – e nisso se destaca da maioria das obras que tratam da ética jornalística, em geral limitadas a uma abordagem normativa. Mérito ainda maior se considerarmos a perspectiva de discutir os problemas radicalmente novos postos pela disseminação da tecnologia digital, que permite (em tese) a qualquer pessoa a veiculação de informações via internet e abala a posição clássica de controle tradicionalmente exercido pelo jornalismo em relação ao que deve (ou não) ser tornado público.

São, entretanto, promessas que acabam não se cumprindo, devido aos rumos escolhidos para a fundamentação da análise.

Comecemos pela frase com a qual o autor conclui seu trabalho: ‘A possibilidade de qualquer um ter nas mãos uma ferramenta de comunicação capaz de atingir milhões de pessoas é que é inédita e por isso espantosa’. Certamente – mas será verdade que, com a ‘nova mídia’, os interesses dos quatro atores desse processo (fonte, jornalista, empresa e público) ‘passaram a se digladiar em pé de igualdade’? O próprio Caio desmente essa tese, ao tratar, ainda que muito brevemente, da concentração dos meios e do controle das redes:

‘Apesar de uma percepção diferente e aparentemente democratizante, há um controle da rede mundial. Quem a controla? Com quais propósitos e com quais poderes? Uma simples decisão tomada num único país, Estados Unidos, pode bloquear o acesso à rede em qualquer parte do mundo porque ali se administram os principais servidores dessa mesma rede’.

Concentração, controle: expressões do movimento do capital, que nos tempos do famoso Relatório McBride mereceu uma abordagem capaz de sugerir ‘uma nova ordem informativa’. Os tempos (pós-modernos) são outros, e o conceito em voga é o da ‘assimetria da informação’, com a chancela do Nobel de Economia Joseph Stiglitz: através dele, Caio explicita a desigualdade reinante sem politizá-la. Ainda assim, oscila: ora afirma que tal ‘assimetria’ seria mitigada pela ‘cooperação e compartilhamento’ proporcionada pela ‘nova mídia’, ora refere que a convergência midiática ‘contribui enormemente para o alargamento do fosso da assimetria da informação’.

É apenas um exemplo das muitas contradições que permeiam o livro. Por isso, o estimulante convite à dúvida – claro na decisão do autor de oferecer mais perguntas que respostas – acaba derivando para uma perplexidade ancorada no relativismo mais radical, em vez de sugerir hipóteses de enfrentamento de questões evidentemente complexas e desafiadoras.

Analogias forçadas

Embora fuja à pretensão de estabelecer um (mais um) manual de conduta, Caio afirma um propósito, de fato, mais ambicioso, apesar do advérbio: ‘Aqui se pretende apenas analisar como essa forma de comunicação se deu e se dá – e analisá-la do ponto de vista do que o homem entende por ética’. Assim, envereda pelo amplo universo dos mais variados campos da criação intelectual, apresentando um vasto elenco de obras referenciais que tratam do ser e do teatro do mundo. O caminho poderia ser profícuo – afinal, nada que é humano há de ser estranho ao jornalismo –, porém acaba conduzindo a longas digressões que fazem perder de vista o tema central.

De fato, em vários momentos Caio dá a impressão de estar elaborando um compêndio didático, ao estender-se no detalhamento de resumos de peças e romances clássicos ou na transcrição e ‘explicação’ de poemas. A tentativa de estabelecer analogias com o jornalismo – que seria um recurso para a retomada do foco – resulta em soluções geralmente forçadas ou superficiais: desse modo, Antígona comparece como um exemplo da necessidade e da dificuldade jornalística de expor os vários lados de uma mesma questão, Hamlet e seu disfarce de louco – melhor dizendo: o método de sua loucura – surge como um paralelo aos múltiplos estratagemas que os jornalistas utilizam para obter informações de difícil apuração, e assim por diante.

Porém tais simplificações, além da artificialidade, às vezes conduzem a graves equívocos, como no trecho em que o autor procura comparar a questão posta por La Boétie no célebre Discurso da servidão voluntária e a realidade contemporânea do jornalismo produzido nos grandes conglomerados de mídia:

‘Na indústria da comunicação e na tirania, que diferença há entre aqueles quatro ou cinco que mantêm o tirano e entre os quatro ou cinco magnatas da imprensa que conservam um país em servidão?’.

Além de corroborar a tese do poder tentacular da mídia, que despreza justamente o caráter ‘voluntário’ da ‘servidão’ – no caso, a adesão do público, a cujas demandas é preciso de alguma forma atender para a manutenção do negócio –, a comparação expressa uma espécie de rebeldia contraditória com o sentido geral da obra, que tenta confrontar exatamente a realização dos preceitos éticos do jornalismo com as condições de mercado.

Escorregões desse tipo, que oscilam entre o espírito radical-libertário e o niilismo, pontuam o texto, como na referência ao conhecido livro de Janet Malcolm, O jornalista e o assassino, e sua famosa frase de abertura: ‘Qualquer jornalista que não seja demasiado obtuso ou cheio de si para perceber o que está acontecendo sabe que o que ele faz é moralmente indefensável’. Só muitas páginas adiante é que se apresentará a frase no seu devido contexto: afinal, o livro abordava o caso muito específico do jornalista que ganha a confiança da fonte e depois a trai. A generalização da autora é obviamente indevida, mas não chega a merecer qualquer crítica.

‘Representação de representações’

De fato, Caio esbanja erudição, mas descura do principal, porque ignora a produção teórica em jornalismo que lhe poderia fornecer substanciais elementos de crítica. O problema começa com a própria definição de jornalismo: um ‘ofício que representa representações’, algo que evidentemente se aplicaria antes de mais nada à arte e que poderia perfeitamente ser estendido para o restante das atividades humanas, caso houvesse consenso em relação ao conceito do mundo como ‘representação’. Uma definição de tal modo genérica é insuficiente para dar conta do objeto em questão.

Da mesma forma, conclui que o jornalismo não é uma forma de conhecimento, sem discutir em momento algum esta hipótese, que sustenta acuradas abordagens de distintas linhas teóricas desde os anos 1940, como o estudo inaugural de Robert Park, de orientação funcionalista, retomado décadas mais tarde por Adelmo Genro Filho para uma abordagem marxista.

Além disso, embora reconheça que a objetividade implica uma discussão fundamentalmente ética para o jornalismo, dedica a ela apenas 20 páginas de seu livro – o menor capítulo, depois daquele que encerra o volume. Chega aqui fortemente inspirado pela filosofia da linguagem de Wittgenstein e descarta liminarmente as análises que procuram circunscrever o significado do conceito de objetividade ao campo específico: análises que afirmam o compromisso do jornalismo com a verdade factual e a necessidade de partir de dados objetivos para informar com credibilidade, sem a qual esta atividade não teria sentido.

A dialética ausente

Como considera o jornalismo uma ‘representação de representações’, e como obviamente não poderia haver uma representação ‘consumadamente objetiva’, Caio conclui que a objetividade em jornalismo é impossível. Porém, dá a essa conclusão um sentido positivo, pois só ela permitiria a discussão da ética. Segundo ele, ‘se a objetividade jornalística é possível, então não há dilema ético em jornalismo’.

Seria o caso de indagar se a ciência não se depara com problemas éticos.

A resposta óbvia aponta para o cerne do equívoco de uma argumentação que toma os conceitos de forma estanque e absoluta: onde há objetividade não pode haver interpretação; em contrapartida, toda interpretação é possível, de modo que não pode haver certezas. Esta dicotomia fica ainda mais clara na abordagem sobre a ética de responsabilidade de Weber, que absolutamente não autoriza – como quer o autor – a conclusão de que ‘os fins justificam os meios – quaisquer meios’: a ética de responsabilidade é inescapável à vida cotidiana, pois exige a avaliação das circunstâncias para uma ação adequada.

É por não adotar uma perspectiva dialética que o autor enxerga um abismo entre o ideal (normativo) e a prática cotidiana (funcional). Por isso, insiste tanto na referência – reiterada e enfatizada nas entrevistas reproduzidas em sua página na internet – ao fato de que ‘o jornalista mente’ para obter uma informação. Por isso, sugere que o jornalismo trabalha ‘no vácuo da ética’.

‘Moral provisória’

Daí o conceito de ‘moral provisória’, derivado de um episódio particular da vida de Sartre, às voltas com a dificuldade de administrar a relação simultânea com suas amantes. Caberia perguntar se a justificativa encontrada pelo filósofo para uma questão privada poderia ser tomada como princípio geral para orientação do trabalho intelectual ou da ação política. Seja como for, a ‘moral provisória’ proposta por Caio – e que ele mesmo associa, com sua interpretação muito peculiar, à ética de responsabilidade de Weber – seria, a rigor, capaz de justificar o que quer que seja. Pois ‘o dia-a-dia do jornalismo exige distorções, seja por interesses empresariais, políticos ou particulares (…). Não há conceito moral, dos sólidos, que resista a essas necessidades’.

Conceito ‘sólido’ é aqui equiparado a eterno, imutável e incapaz de objetivar-se na vida cotidiana, que assim não conheceria limites para distorções: nada mais adequado a quem comanda o grande complexo de comunicações.

Distorções, porém, inevitavelmente se referem a algum conceito. No entanto, ao buscar as raízes do pensamento pós-moderno para concluir que ‘tudo é relativo’, Caio, além de desconsiderar a crítica a essas teorizações, acaba prisioneiro do paradoxo: se tudo é relativo – menos, naturalmente, a própria afirmação que justificaria a frase –, como discutir ética, se não há parâmetros em que se basear?

É assim que a teoria se desmancha na prática. Não no sentido que o autor procurou demonstrar – o da impossibilidade de realizar os preceitos normativos no mundo real –, mas no sentido das próprias contradições que sua obra encerra.

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Jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)