Perdemos fisicamente Saramago. Digo fisicamente, pois a sua obra literária é eterna. Não vou mensurar sua capacidade de escrever nem classificá-lo como o maior ou um dos maiores escritores portugueses, pois acredito que toda classificação é reducionista e, cá entre nós, Saramago não merece ser classificado em determinadas prateleiras de livrarias.
Mas o que mais me deixa triste é a repercussão de certos veículos midiáticos perante o falecimento do autor de Ensaio sobre a Cegueira. Assim como na referida obra, alguns jornalistas parecem ter sofrido da ‘cegueira branca’ e, ao invés de analisar a obra de Saramago, passaram a pontuar suas posições políticas e religiosas e pior, julgando o autor português pelas mesmas, como se um julgamento moral tivesse alguma coisa a ver com a sua obra. Quando li Ensaio sobre a Cegueira, por exemplo, não me lembro de reduzir a referida obra a uma crítica ao capitalismo ou a sociedade consumista. Um livro clássico é atemporal e por si só, um retrato da humanidade.
Íntegro e crítico
Parece que voltamos ao Antigo Regime. Quando propôs a separação entre Estado e Igreja, Voltaire acreditava ser mais importante a liberdade de expressão do que nossas convicções sobre a liberdade de expressão. Kant nos dizia que o objetivo da moral é deixar de ser singular e se tornar coletiva, o que ele chamou de moralização dos valores éticos.
Alguns jornalistas passaram a julgar Saramago por ser ateu e comunista e esqueceram que o autor nos deixou livros que vão além de valores morais. Querem ‘desmoralizar’ algo que é amoral, ou melhor, que diz respeito apenas ao escritor português. Se ele foi ateu e comunista, o que isto me interessa?
A ‘carolice’ de alguns jornalistas se sobrepôs à genialidade literária (essa sim, importante para nós) e começaram a destacar que ‘seus livros foram criticados pela igreja’ ou ‘apoiou o regime cubano’, como se Saramago tivesse cometido um delito grave e imperdoável.
O Saramago pessoa física, que alguns jornalistas se preocuparam em analisar, pouco me interessa, no melhor sentido da frase. O que me importa é o Saramago dos livros geniais, do caráter íntegro e crítico, o Saramago que me fez redescobrir a literatura portuguesa. Um escritor que fez repensar e olhar com mais carinho para a literatura em português não pode ser tratado como qualquer um ou ter suas obras analisadas de acordo com nossas visões morais e religiosas.
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Geógrafo , Contagem, MG; seu blog