‘Não é possível escrever a história do século 20 como a de qualquer outra época, quando mais não fosse porque ninguém pode escrever sobre seu próprio tempo de vida como pode (e deve) fazer em relação a uma época conhecida apenas de fora, em segunda ou terceira mão, por intermédio de fontes da época ou obras de historiadores posteriores. Meu tempo de vida coincide com a maior parte da época de que trata este livro e durante a maior parte de meu tempo de vida – do início da adolescência até hoje – tenho tido consciência dos assuntos públicos, ou seja, acumulei opiniões e preconceitos sobre a época, mais como contemporâneo que como estudioso’ (Eric Hobsbawn. In. A Era dos Extremos. Prefácio)
Hoje, assistindo a um diálogo entre Alberto Dines, Jaguar e um filósofo que discutia sobre ética da informação (a liberdade de expressão e imprensa), o jornalista Dines lembrava-se de fatos que o acometeram durante a ditadura militar. Marcada pela palavra censura, de fato, como sublinhou Dines ela censurava a possibilidade de autocrítica dos cidadãos diante de um fato que eles não presenciaram passivelmente, ao contrário, tiveram participação ativa o tempo todo.
Lembrou-se Dines, no meio da conversa, de que este tipo de censura já era um mal no Brasil desde muitos séculos, posto que o aniversário de 200 anos da impressa (no Brasil) havia passado entre brancas nuvens. Talvez Gutenberg achasse curioso se estivesse vivo, já que desenvolveu o tipógrafo que auxiliou na mudança dos rumos da própria história de seu povo e, posteriormente do mundo, o fato da revolução iniciada por ele hoje trair-se a si mesma.
Analfabetismo era assombroso
O programa versava sobre liberdade de expressão e o Observatório da Imprensa versa semanal e incansavelmente sobre a ética da liberdade de expressão: tudo ao ser publicado contribui para a análise/confrontamento da realidade. Portanto, a consciência crítica daquilo que se profere é, a meu ver, a essência dessa liberdade de expressão.
Enquanto ouvia o trio debater o assunto, levantando questões por que passaram em suas profissões, fiquei pensando no estado da mídia brasileira, mas ao contrário do senso comum, meu pensamento se voltava para a mídia escrita de todos os dias: os jornais e semanários encontrados nas bancas de revistas, sendo vendidos pela manhã por entregadores ou sendo entregues nas casas das pessoas.
Se meus conhecimentos teóricos e práticos sobre a História me traírem, por favor, me corrijam. Se não me engano, no período em que se instaurava a ditadura militar, uma das principais questões que assolavam o país e que estavam na base de todas as outras aflições do povo era a questão do acesso à escolarização a fim de se obter as competências de leitura e escrita em amplo espectro. Por esta razão, Anísio Teixeira enfrentou mordazes inimigos no Distrito Federal, viu o assalto da força militar à UnB; por esta mesma razão, Paulo Freire e Moacir Goés (ambos in memoriam) foram expulsos do Brasil juntos com todos aqueles considerados perigosos pelo regime. Os números do analfabetismo no país eram assombrosos e, mesmo assim, o controle das redações das principais capitais do país foi fundamental para minar qualquer tentativa de levante organizado.
Os três níveis de público
Lembro-me que em minha família, mesmo meu pai sendo uma pessoa pobre e de baixíssima escolaridade (hoje ele seria classificado como um analfabeto funcional) todos os dias lia o jornal. Ele e milhares de brasileiros pobres ou ricos em todo o país. Tenho quase certeza de que meu gosto pela leitura se desenvolveu a partir da experiência do meu pai com o texto jornalístico. Naquele tempo, o Jornal do Brasil, o Jornal dos Sports e o jornal O Dia eram os preferidos da população. Havia, mesmo sobre censura um compromisso com a formação da opinião pública, mesmo sabendo que parte dessa opinião pública não soubesse ler ou escrever. Com o fim (pelo menos oficial) dos anos de chumbo, os jornais voltaram a ter liberdade de expressão na formação de uma opinião pública que tivesse acesso à leitura e, principalmente, à escrita, através das ‘Cartas do leitor’, criando assim um fórum aberto de diálogo entre os jornalistas, as redações e os leitores.
Hoje, neste século em que posso dizer que vi um século despontar diante dos meus olhos, nosso país ocupa uma invejável posição no acesso à internet e aos meios de comunicação, que tiveram seus custos reduzidos consideravelmente, mas, ao mesmo passo, seu conteúdo vai se tornando inócuo e sem-sentido. Os níveis de escolaridade aumentaram ao longo dos anos, o acesso da população aos aparelhos de ensino cada vez mais se ampliam (a última barreira que se apresenta agora é o acesso universal ao ensino superior, já que o mesmo acesso foi conquistado/permitido nos demais segmentos), ampliam-se as formas de informação, os semanários, a quantidade de jornais; mas a qualidade da censura à informação não acompanha o mesmo ritmo. Me farei mais clara.
Acaso já foi discutido no Observatório o fato de cada vez mais se escassearem as confiáveis fontes de notícias? A venda do grupo que controlava o New York Times foi o primeiro sinal de alerta de que a informação neste mundo livre está em processo de autofagia e estratificação. Por exemplo, no estado do Rio de Janeiro vejo claramente isso: na capital, três grupos de imprensa muito populares mantêm segmentos diferenciados para o público divididos basicamente em três níveis: o primeiro nível se dedica à classe média (em todos os seus extratos), se autodenominando defensora da verdade e da crítica veemente, quando, ao ser examinada com o devido cuidado, muitas vezes seu teor só faz reproduzir o senso comum, raramente trazendo alguma forma de crítica/autocrítica mais consubstanciada (quando isso acontece, me declaro frente a uma pérola!); e invariavelmente reforçando ideários dos famigerados tempos de chumbo. O segundo nível se volta a uma classe média baixa ou só baixa que só se restringe a informar aquilo que é ‘extremamente útil’: reproduzir manchetes de jornais televisivos, geralmente de fundo marqueteiro, sem nenhum compromisso com uma formação justa de opinião, receitas, algumas dicas, classificados, serviços e um sem número de noticiários policiais que, sinceramente, não ajudam em nada – nem a classe policial e nem a classe que as lê.
Na contramão da realidade
No terceiro e último plano estão os novos jornais de tamanho reduzido (em oposição clara aos tablóides). De minha parte, acho até interessante e prático que o jornal otimize seu design, reduza o consumo de celulose, se torne mais apetecível esteticamente; mas no caso da maioria destes que estão nessa classe só se dedicam ao escracho, à onomatopéia, ao embuste, para também não incluir a pornografia e a violência simbólica de fundo nazi-fascista; e o que me parece mais assustador ainda é que por detrás destes jornais temos os mesmos aparelhos de informação que promulgam como égide a liberdade de expressão.
O que se dizer então do que se encontra fora da capital: jornais controlados por membros dos governos locais que utilizam o espaço deste tipo de mídia para a autopromoção, entre outras coisas que mostram total desinteresse ou despreocupação com a ética ou a liberdade de expressão. Não incluo neste montante os jornais de bairro, posto que, de fato, seu compromisso aponta em direção totalmente peculiar. E antes que os mais afoitos digam que isto acontece no interior pela falta de jornalistas, rebato afirmando que muitos desses jornais têm jornalistas de passado invejável. O que dizer, então, da ética jornalística? Em alguns jornais e semanários que se dedicam à formação de opinião pública, o que dizer de algumas de suas matérias – uns defendem o genocídio, o regime aristocrático, o fascismo governamental (às vezes até um nazi-fascismo aberto e assustador). Não que estas não sejam também formas de opinião, em absoluto. O que assusta e incomoda é que muitas destas opiniões vão de encontro aos ideais de um país livre, democrático-republicano (ou não) e de cidadania plena.
Cidadania. Esta palavra, então, é a que causa mais espanto, pois as conotações contraditórias que assume no teor de alguns artigos, editoriais e manchetes deixariam muitos pensadores (como deixam) de cabelos brancos de preocupação. No fim de meu curso, dediquei-me a fazer uma pesquisa sobre as origens dessa palavra que me remontaram a dois cenários: o primeiro, da República Romana, e depois o da Revolução Francesa. E, para meu pesar, há o fato de que nem sequer nossos jornalistas conseguem exprimir suas idéias e suas análises numa perspectiva cidadã. Na contramão dessa realidade, alguns se utilizam de sua experiência de jornalistas para serem a mão que interpreta aquilo que nossos olhos vêem de forma diferente, que usam de sua arte para se tornarem testemunhas ativas do tempo presente, mesmo que para a análise futura. Dentre esses, destaco Eric Hobsbawn, Euclides da Cunha, Monteiro Lobato, Carlos Drummond de Andrade e, me exponho ao reconhecer, também está Alberto Dines.
Que reflitam sobre o que escrevem
Contudo, sinto, meu caro leitor, uma leve descrença de que uma nova cepa de jornalistas de olho clínico, de mão ativa, de mente madura e analítica possa superar as veleidades da profissão e fincar sua atenção na importância de seu trabalho tanto para o presente quanto para o futuro, posto que, como disse Platão em um de seus Diálogos, ‘a escrita foi a forma de se preservar a memória, mas isso teve um duplo preço – ao se preservar, no entanto, pode-se perder o sentido do preservado tempos depois’.
Portanto, não adianta ser um alfabetizado (funcional ou não) se não houverem textos que realmente constituam uma base para uma análise crítica e para a constituição de uma consciência e uma memória. Afinal de que adiantará então uma liberdade de expressão se o que se expressar for declarar a extinção ou a retrogradação de nossa condição humana? Rogo que para aqueles que leiam a este artigo, voltem seus olhos às mãos que escrevem os textos jornalísticos que nos cercam e estes, cujas mãos escrevem, reflitam sobre o que escrevem para que aquilo que escrevem hoje não testemunhe em falso contra eles no amanhã.
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Pedagoga, Rio de Janeiro, RJ