Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Vamos criar escolas de javanês?

Nascido exatamente sete anos antes da abolição da escravatura no Brasil, 13 de maio de 1881, Afonso Henriques de Lima Barreto tem em sua genealogia as marcas das injustiças sociais e da exploração da população negra desde que pisaram em terras tupiniquins. Sua educação primorosa e perspicácia analítica transformaram-no em um dos maiores críticos sociais da primeira República. Curiosamente, seu reconhecimento veio a posteriori de seu falecimento. Seus escritos privilegiaram os pobres e os excluídos da herança imperial vigente na nova configuração política do Brasil. É o autor de preciosidades como o Triste Fim de Policarpo Quaresma, Cemitério dos Vivos e Clara dos Anjos.

‘Neste Brasil imbecil e burocrático’ é que Lima Barreto nos brinda com as lisuras de suas tão bem colocadas palavras, no conto ‘O homem que sabia javanês’. Mais que um diálogo empolgante é, também, uma sofisticada crítica à cultura brasileira dominante no início do século 20; mantendo para os dias de hoje fôlego e similaridades.

Publicada inicialmente no jornal Gazeta da Tarde, em 1911, a história nos leva às desventuras de um certo homem chamado Castelo. Em uma conversa despretensiosa, o protagonista põe-se a contar uma inusitada situação que vivenciou em seus tempos de aperreios e privações econômicas. O interlocutor envolve-se instigadamente com o desafio vivido por Castelo ao se candidatar a uma vaga de professor da língua javanesa. O barão de Jacuecanga, por sua vez, é o responsável por anunciar em um jornal a necessidade de um mestre que dominasse tal língua.

Um manejo discursivo

Nada sabemos da origem de Castelo, apenas de suas escassas fontes de renda, do seu aspecto pouco polido para os padrões da época e de uma malandragem e traquejos desmedidos. Antes de se apresentar ao cargo, tratou de visitar a biblioteca e consultar informações sobre a língua que deveria ensinar. Além de algumas palavras aprendidas e da dificultosa grafia do alfabeto, pôs-se a pesquisar alguns traços culturais da ilha falante do javanês.

Ao chegar ao casarão do barão, o novo professor entendeu os objetivos de suas aulas: ajudar o velho senhor a entender um livro herdado de seu avô, que por sua vez havia sido um presente de nativo, uma espécie de amuleto da felicidade. O prefácio da obra em questão estava em inglês, o que favoreceu a compreensão de Castelo e impressionou de imediato o solicitante. Com outros episódios favoráveis, o professor conquistou a confiança do barão e teceu uma excelente rede de contatos e relações. Logo construiu sua imagem como um homem distinto, raro e digno das mais pomposas honrarias. Chegou à carreira diplomática, viajou para a Europa, participou de encontros intelectuais. Legitimou-se no seu círculo transformando-se, por assim dizer, em um líder de opinião.

O que se pode destacar destas linhas tão bem escritas e enredo empolgante é a ácida crítica para uma sociedade com fortes traços de corrupção e desvios éticos. Temas como favorecimentos no serviço público, culto a um intelectualismo esvaziado e mascarado por jogos de palavras e o desejo de ostentação de uma considerada ‘elite’ são sugeridos nos meandros da narrativa. O ‘saber javanês’ pode ser entendido como esse manejo discursivo, impregnado de relações de poder, que criam uma espécie de culto, de reverenciamento. Afinal, cabe ao detentor do saber ser legitimado e reconhecido por sua posição, mesmo que não compreendido, seja por tantas vezes inquestionável.

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Professor universitário, graduado em Comunicação Social e mestrando em Cultura Visual pela Universidade Federal de Goiás, Goiânia, GO