O leitor Gil Perini, de Goiânia, em carta enviada ao ombudsman da Folha de S. Paulo, Marcelo Beraba, foi preciso ao comentar o atual estado de nossa imprensa: ‘A questão da credibilidade talvez seja a chave. (…) Outro problema talvez esteja relacionado com a mesmice dos jornais. Se você ler um, leu todos’.
Por coincidência, na mesma semana, três revistas de informação – Veja, Época, IstoÉ – saíram com as mesmas matérias de capa. O assunto: Paulo Coelho. Em todas elas o redator parece o mesmo. O estilo pasteurizado da primeira semelhou espalhar-se pelas outras duas.
Se não há nada de novo no jornal e na revista, por que razão o leitor os compraria nas bancas? Pobres dos assinantes, sem direito de escolha, a não ser na época de renovação das assinaturas!
Afirmações controversas
As três matérias parecem ter sido escritas por robôs a serviço de alguém. Algumas dão a entender que seu autor foi o próprio Paulo Coelho, cujo estilo, com exceção do utilizado em Verônica Decide Morrer, também lembra cristalização de um modelo que deu certo no mundo inteiro, provavelmente graças às traduções bem cuidadas em latins do império, como o francês e o inglês.
Mesmo os robôs, porém, precisam seguir certas normas. Isaac Asimov, autor-referência do gênero ficção científica, estabeleceu três leis para a robótica:
1.
um robô não pode ferir um ser humano ou, por omissão, permitir que um humano sofra qualquer dano;2.
um robô deve obedecer ao homem, exceto quando tais ordens entram em conflito com a primeira lei;3.
um robô deve proteger sua existência ou prazo de validade, desde que não entre em conflito com 1 e 2.Vistas sob tal mirante, as referidas matérias, principalmente a da Veja, fere as três leis. O erro de conceito começa na capa: se Paulo Coelho é escritor, tem leitores, não fãs. O público imagina Homero, Goethe, Shakespeare, Maupassant com fãs? Machado de Assis, Guimarães Rosa, Jorge Amado e Clarice Lispector têm fãs, não leitores? Rubem Fonseca e Lygia Fagundes Telles têm leitores ou fãs?
Num país tão falto de educação como o nosso, a função da imprensa é também a de instruir. Veja diz em chamada de capa que Bill Clinton, Shimon Peres, Russell Crowe, Sharon Stone e outros 65 milhões de pessoas têm em comum serem fãs de Paulo Coelho, o mais global e influente dos brasileiros.
Apenas as terríveis afirmações da capa já são controversas. Qual é o conceito de influência que foi adotado? Influência no quê? Paulo Coelho é um autor da moda. Uma das marcas da moda é seu caráter efêmero, segundo o qual o que está em moda, ipso facto, está saindo de moda.
Pirineus ou Copacabana?
Mas, na Veja, o equívoco de conceitos tão complexos não pára aí. Quem terá dado ordem ou supervisionado a prescrição editorial que legendou as fotos? Já que a ciência é a eliminação progressiva do erro, terá havido modificação essencial na ornitologia, que levou a uma reclassificação das aves?
Cobrindo partes das páginas 112 e 113, há uma foto em que Paulo Coelho aparece acompanhado de quatro – como diremos? – entidades: dois seres humanos, um muar e uma ave predadora identificada como águia, segundo a tal desconhecida reclassificação a que Veja teve acesso com exclusividade, como no caso dos documentos que na semana passada ‘revelaram’ que a guerrilha colombiana financiou a eleição do presidente Lula.
Teria sido melhor encarregar o animal cujo pedaço de cabeça aparece à direita para legendar a foto mais ou menos assim: ‘O escritor, dois que eu não sei quem são, uma ave que não pertence a meu reino e eu, aqui bem no cantinho’.
Pois o cavalo, mesmo não sujeito às três leis da robótica, costuma livrar o cavaleiro de caminhos perigosos, a menos que fustigado por chicote e esporas.
E ainda quanto às fotos, duas perguntinhas: (a) Alguém já experimentou, com aquela ave em punho, dar um tiro numa raposa?; e (b) afinal onde o escritor escreve seus livros: à sombra de um menir (monumento de pedra, do período neolítico) nos Pirineus ou em seu apartamento em Copacabana?
Vai passar
O leitor, esse desconhecido, que faz um livro acontecer independentemente de campanhas publicitárias, mesmo disfarçadas, não se importa com a leitura dos outros. Seu diálogo é único: dele com o autor, sem se importar muito de que país, época ou língua é o escritor que aprecia ou acaba de descobrir. Todas essas informações, ainda que relevantes, não entram na hora de sua escolha, que é de foro íntimo.
Paulo Coelho vendeu 65 milhões de livros? Bom para o mercado, para seus editores e para o autor. Devem ter rendido um bom dinheiro. Mas não será este o feito que o igualará a Machado de Assis, Guimarães Rosa ou Clarice Lispector, que vendiam e vendem modestas edições de dois ou três mil exemplares e ainda hoje são considerados autores difíceis.
Foi traduzido para 56 idiomas? As traduções certamente compõem indicadores relevantes, mas por si sós, sobretudo em tal profusão, não garantem qualidade literária.
Foi publicado em 150 países? Há muitos países interessados em suas obras. Por que será? A matéria nada diz sobre tal questão – esta, sim, relevante: compreender os motivos que levam tal ou qual autor a despertar o interesse do mundo inteiro.
A fortuna do autor está estimada em 120 milhões de reais? O que é que houve? É muito pouco. Menos de 2 reais por exemplar vendido! Ele fatura 40 milhões de reais a cada ano em que lança um novo livro? Mas se lança, como declara Veja, um livro a cada dois anos, o valor de sua fortuna está subestimado.
Bem, talvez os critérios para avaliar sua fortuna sejam semelhantes àqueles que semana passada conferiram a Fidel Castro o título de um dos homens mais ricos do mundo, mediante operação ridícula da revista Forbes: somar o faturamento das empresas cubanas e atribuir ao supremo mandatário todo o faturamento. Mas, neste caso, vários outros estadistas, a começar pelo presidente Lula, estariam em melhor posição na lista dos homens mais ricos do mundo.
Livro, autor e literatura obedecem a outros conceitos. Há vários milênios. Paulo Coelho entrou para a Academia Brasileira de Letras, segundo ele mesmo admite, para obter a chancela de escritor! Um censor também entrou para a ABL e nem por isso obteve o alvará que os leitores lhe negaram.
Hoje o mundo está dominado pelo mercado. Vai passar. Esperemos. E as avaliações literárias talvez somente possam ser feitas pela posteridade. Sobre ela o mercado ainda não tem controle.
Projeto literário
É difícil para um escritor, principalmente se brasileiro, escrever sobre a obra de um colega de ofício. O mínimo de que é acusado é de ressentido, no caso de fazer restrições, já que de elogios, por mais insensatos ou injustos, ninguém reclama.
Quando o critério de êxito é o mercado, a coisa piora: por vender tão pouco, principalmente quando confrontadas suas edições com as de Paulo Coelho, autor de qualquer crítica é preliminarmente desqualificado, por mais que seu vitae indique o contrário.
Ninguém ainda avaliou com exatidão de que é capaz um ego ferido. Diante de eventual restrição, mesmo criadores, que sabem ser a liberdade de expressão ferramenta indispensável para o comentário, parecem requerer prévia submissão ao criticado. Até Machado de Assis foi acusado de inveja por mostrar que Eça de Queiroz tinha deslizado na estruturação de um romance. Que se dirá de quem não se apresenta com credenciais semelhantes às de Machado e ousa dizer que Paulo Coelho escreveu, entre tantos livros, apenas um que pode ser considerado, e muito bom, um romance?
Justiça seja feita ao próprio Paulo Coelho. Não responde às críticas, não sai caluniando e difamando nenhum dos que fazem restrições à sua obra. Segue fazendo aquilo em que acredita, fiel a seu projeto literário desde os primeiros passos. A imprensa continua nos devendo um perfil de seu admirável percurso. Um bom começo de pauta seria consultar quem entende do processo literário para avaliar seus momentos decisivos. E não apenas considerá-lo como espetáculo, fenômeno de globalização, lenda etc.