A quem se interessasse Hugh Flood contava o segredo da longevidade. Aos 93 anos, ele afirmava que viveria até 27 de julho de 1965, quando completaria 115. Sua boa saúde dependia de uma dieta especial –os peixes e frutos do mar comprados diariamente no Fulton Fish Market, em Nova York.
Flood, o velho piscívoro, tornou-se famoso em 1944, quando o jornalista Joseph Mitchell publicou a primeira de três reportagens sobre ele na revista “The New Yorker”. Fascinados com a história, alguns leitores visitaram o Hartford Hotel, onde Flood morava. O esforço para encontrá-lo, contudo, revelou-se inútil. É que Flood nunca existiu.
Um dos jornalistas americanos mais importantes de todos os tempos, Joseph Mitchell (1908-96) desafiou um limite ético da sua profissão ao escrever aquela trilogia. De acordo com Thomas Kunkel, autor da biografia recém-lançada “Man in Profile: Joseph Mitchell of The New Yorker” [Random House, R$ 45,05 em e-book na Amazon.com.br; 400 págs., R$ 118,90, importado, na Livraria Cultura], ele criou personagens compósitos aos quais atribuiu falas e qualidades de outras pessoas.
Além de Flood, Mitchell inventou, em “King of Gypsies” (rei dos ciganos, 1942), um certo Johnny Nikanov, o rei autoproclamado de 38 famílias ciganas nos EUA.
Provavelmente, ele também forjou Orvis Diabo em “The Mohawks in High Steel” (os moicanos na construção civil), uma reportagem de 1949 sobre os índios que trabalharam na construção de arranha-céus em Manhattan. “Mitchell se permitiu mais licenças do que se esperaria de um jornalista”, afirma Kunkel à Folha.
“Man in Profile” aborda outras práticas do jornalista que seriam reprovadas pelas Redações, como reescrever trechos de entrevistas e alterar detalhes cronológicos para tornar a narrativa mais atraente. Mas foram os compósitos de Mitchell que viraram a grande obsessão de críticos e admiradores.
Janet Malcolm, autora de “O Jornalista e o Assassino” (Companhia das Letras, 1990), refletiu sobre a transgressão de Mitchell numa resenha da biografia, publicada pela revista quinzenal “The New York Review of Books” em abril passado. Famosa por ter certa vez dito que o jornalismo era um ofício “moralmente indefensável”, Malcolm considerou que o repórter apenas seguiu o instinto criativo de um escritor talentoso.
“Poucos de nós foram tão longe quanto Mitchell em submeter a realidade à nossa vontade artística” –observa. Uma das razões para isso residiria no fato de que ele era mais capaz do que a média: “A ideia de que repórteres com frequência resistem à tentação de inventar é risível. Repórteres não inventam porque eles não sabem como”, provoca Malcolm, que considera “o gênero de Mitchell” como um “híbrido ainda por nomear”.
Já A.O. Scott, crítico do jornal “The New York Times”, afirmou em um ensaio que qualquer discussão sobre as fronteiras entre fato e ficção tenderia a invocar o trabalho de Mitchell. Para ele, Malcolm “transformou em distinção estética o que usualmente se conhece por ser um limite ético”.
Ben Yagoda, autor de “About Town: The New Yorker and the World It Made” (da cidade: ‘The New Yorker’ e o mundo que ela criou; Scribner, 2000), escreveu no diário “The Wall Street Journal” que, no caso do jornalista-ficcionista, seria preciso”jogar a carta da genialidade”. O resultado final compensaria as liberdades: “A obra de Mitchell documentou pessoas idiossincráticas e imperfeitas na tentativa de seguir adiante e de talvez encontrar certa transcendência em uma vida marcada pelo esquecimento. Estou inclinado a perdoar um pouco de licença poética em um projeto assim”.
Verdades
Quando começou a escrever “Man in Profile”, Kunkel sabia que Flood não existia. Mitchell admitira na coletânea “Up in The Old Hotel” (lá no velho hotel; Pantheon, 1992) que a trilogia fora inventada, apesar de ter sido publicada como não ficcional na “The New Yorker”. “Eu quis que essas histórias fossem mais verdadeiras do que factuais, embora sejam solidamente baseadas em fatos”, ele explicou.
Segundo Kunkel, o que diferencia Mitchell de jornalistas mitômanos como Stephen Glass e Jayson Blair, que foram demitidos e execrados por inventarem reportagens, é o conhecimento prévio do editor Harold Ross sobre a invenção. Fundador da “New Yorker”, Ross estava ciente da fabricação jornalística e até sugeriu a Mitchell uma quarta história sobre Flood, para tratar de seu suposto desaparecimento –mas o repórter achou a ideia “apavorante”.
“O padrão jornalístico na imprensa americana, sobretudo na ‘New Yorker’, era diferente na primeira metade do século 20”, diz o biógrafo. As decisões de Mitchell não poderiam, então, ser julgadas tendo-se como referência as regras atuais. “Não quero soar como um apologista, mas a questão sobre se ele estava certo ou errado pertence ao reino do relativismo moral.”
Kunkel compara a técnica empregada por Mitchell à de um cineasta que retrata um acontecimento histórico. A fim de obter impacto dramático, o diretor comprime fatos, funde personagens ou altera passagens de discursos conhecidos. “A diferença é que o filme seria descrito como ‘baseado em’ ou ‘inspirado por’ eventos reais”, diz o biógrafo.
Ao adotar técnicas de ficção, Mitchell foi um pioneiro do chamado jornalismo literário, praticado na segunda metade do século 20 por Gay Talese, Truman Capote e Joan Didion, entre outros.
Os textos, porém, não apresentam um enredo claro. “A ação envolve seres humanos que se revelam para nós aos poucos, frequentemente com as próprias palavras, até nos tornarmos cúmplices dos seus sentimentos e impulsos mais íntimos”, analisa Kunkel.
Ele define, de fato, como literários os temas sobre os quais Mitchell passou a escreveu no início dos anos 1940, quando abandonou de vez os contos.
Mitchell contava as histórias de pessoas anônimas ou excêntricas para abordar os acasos da existência, a inevitável passagem do tempo, o triunfo ocasional do espírito humano e o medo da mortalidade. “Ao longo da carreira ele deixou de ser um jornalista muito talentoso para se tornar um autor de obras de arte”, diz.
Bloqueio
Kunkel iniciou a pesquisa de “Man in Profile” para entender as razões de um “bloqueio” de Mitchell –que não publicou nenhum material inédito nas últimas três décadas de sua vida. Em 1939, quando completou seu primeiro ano na “New Yorker”, ele havia entregado 14 textos, a mesma quantidade que apresentaria entre 1944 e 1996. “Ele passou a ser lembrado mais pela incapacidade de escrever do que pelos trabalhos publicados”, diz Kunkel.
Uma das explicações para Mitchell ser mantido como profissional assalariado da “New Yorker” era a sua importância histórica para a revista. Ele foi um dos principais responsáveis pela consolidação do semanário, cuja primeira edição é de 21 de fevereiro de 1925. “Eu descobri que todo mundo aqui queria escrever algo que fosse digno de Joe Mitchell”, afirmou Lillian Ross, uma das jornalistas mais respeitadas da revista, na qual trabalha desde 1945.
Dos anos 1960 em diante, Mitchell não sabia mais o que procurava em uma cidade que mudava, em sintonia com a modernidade. O desaparecimento da Nova York com a qual ele se identificava acentuou a depressão de que foi vítima durante boa parte de sua vida. O progresso causava-lhe ojeriza.
Quando bebia uma cerveja no McSorley’s, o bar mais antigo da cidade, ele afirmava “escapar temporariamente da sensação de que o mundo estava fora de controle e prestes a chegar ao fim”. “Eu não tenho mais entusiasmo pela cidade de Nova York, mas tenho um interesse meio mórbido de vê-la cair aos pedaços”, Mitchell declarou em uma carta de 1972.
A ideia de redigir uma autobiografia fracassou. Entre os anos 1960 e 1990, ele completou apenas três capítulos sobre a sua juventude na Carolina do Norte e parte da sua experiência jornalística em Nova York. Mitchell contou que sua persistente melancolia se devia ao fato de estar “vivendo no passado”. “A pressão criada pelo perfeccionismo, o envelhecimento, as mortes da mãe, do pai e da mulher contribuíram ainda mais para o seu silêncio”, diz Kunkel.
A última reportagem que Mitchell publicou foi “O Segredo de Joe Gould” (Companhia das Letras, 2003). Ele produziu dois perfis de Gould, um mendigo do Greenwich Village, bairro boêmio nova-iorquino. O primeiro, de 1942, apresentava o personagem como o autor de uma “História Oral do Nosso Tempo”. O segundo, de 1964, revelava que a obra ambiciosa de Gould era um texto curto, repetitivo e inacabado. O jornalista tinha empatia pelo literato maltrapilho incapaz de escrever. “Porque ele sou eu”, Mitchell explicou.
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Francisco Quinteiro Pires, 32, é jornalista em Nova York