Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Vieira quatrocentão na terra do tresoitão

Antônio Vieira nasceu há 400 anos, em 6 de fevereiro de 1608, como homem certo para a sua época, mas em lugar errado: uma casa bem ao lado da Sé de Lisboa. O império do qual ele iria fazer parte, na condição de um dos seus mais nobres e importantes personagens, estava em decadência. A fantástica capacidade intelectual de Vieira devia estar a serviço de um império em florescimento, como o holandês. Na condição de representante diplomático, ele foi uma ponte entre Portugal e a Holanda. Aos observadores desatentos, esse movimento parecerá suspeito, exatamente porque Vieira tinha plena consciência de estar do lado condenado a regredir na história, da qual fora protagonista de relevo. Mas ele foi magnificamente português no ocaso, a última grande luz intelectual de um império de 500 anos.


A grandeza de Vieira há de justificar todas as comemorações que certamente serão feitas em todo mundo em torno do quarto centenário do seu nascimento. Poucos portugueses foram tão universais quanto ele, exatamente porque concentrou em si toda cultura desse povo, presente em vários continentes. Neste registro, gostaria apenas de assinalar uma circunstância que marcou a passagem do religioso no Pará: o cuidado que ele teve de não dar aos seus sermões de Belém a ênfase secular que tiveram em outros lugares. Nestas plagas selvagens, certamente os colonos locais teriam reagido com violência às críticas ao seu modo de explorar a mão-de-obra disponível, sobretudo, nessa época, a indígena. Um traço da ‘fronteira’ amazônica que permanece até os nossos dias, como aquele elemento do sertão que fez Guimarães Rosa advertir a Deus: se ele vier, que venha armado. Sertão é isso: a degradação da paisagem e a desvalorização do seu elemento humano.


Para mim, o ápice de Vieira está nas suas cartas, não nos sermões. Lê-las é uma aventura do espírito, que convém assinalar nesta data festiva. Porque eterna e universal


 


Simone centenária


Se viva fosse, Simone de Beauvoir teria completado um século no mês passado. Minha geração conheceu a companheira de Jean-Paul Sartre como símbolo do feminismo então engatinhante. No entanto, sua imagem nos era apresentada com o degradável perfil de uma matrona, uma mulher desapegada da vaidade feminina e resignada a ser a partner decorativa do grande filósofo. Seus romances consolidavam essa idéia. Mas quando começamos a ler seus diários e suas descrições da vida com Sartre, descobrimos sua sutileza, sensibilidade, inteligência e acuidade. Se não era mais profunda, era mais agradável do que o ‘pai’ do existencialismo (na verdade, tio). Poucos escritores deram aos detalhes o encanto que têm nos escritos de madame Beauvoir. Podemos seguir horas pelo seu texto sem nos preocupar da relevância do que ela diz. Fica-se encantado pelo modo como diz, pela capacidade de ver de maneira inteiramente pessoal – e nova – o que nos passaria despercebido.


Só uns anos atrás pudemos dar valor também à beleza física de Simone, quando revelada uma maravilhosa foto que dela foi feita secretamente, quando visitava Nelson Algren, seu amante americano em Nova York. Uma das fotografias mais sensuais e, ao mesmo tempo, mais respeitosas de um corpo nu que já vi. Quem mereceu esse tratamento excepcional merece nossa admiração eterna, realçada neste primeiro centenário de uma escritora com tutano suficiente para durar muito mais tempo.

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Jornalista, editor do Jornal Pessoal, Belém, PA