Numerosas, muito mais do que supomos, são as pessoas que acalentam o sonho de escrever, publicar seus livros, ver seus textos, como dizia Fernando Pessoa num poema, aparecerem em letra impressa.
É o engenheiro aposentado que descobriu em si um vulcão de idéias, a arquiteta que começou a construir um relato autobiográfico, a tradutora que quer traduzir suas emoções, o empresário que cansou de competir e quer apenas expandir sua envergonhada poesia, é o médico que acredita no poder curativo das palavras, é o dono de uma cervejaria que está bêbado de histórias, é o neto que quer escrever a história do avô mais ou menos famoso, é a jornalista que deseja contar, finalmente, certas verdades, é o jovem criativo apaixonado pela idéia de viver de literatura, é o advogado ansioso por defender suas metáforas, é a professora que pretende escrever um livro didático com menos didatismo…
Enfim, somos um país de escritores ocultos. Que o digam as editoras, destino incerto de dezenas, centenas de originais para análise, provenientes do Brasil todo. Elas mal têm tempo de analisar coisa alguma. E meses depois respondem, quando respondem, com a carta de praxe: ‘infelizmente, no momento, nossa linha editorial…’
Absurdidades, obsessões
Entre a vontade e o texto publicado, há um oceano a atravessar. Atravessá-lo não é de todo impossível. Fôlego, esforço, persistência, e, sobretudo, aperfeiçoamento da escrita – e um dia o livro sai. Ou não.
Estou pensando, por exemplo, em alguns escritores estreantes, cujo trabalho eu vi nascer, e começaram sua carreira com tudo o que há de ansiedade nisso.
Faz pouco, recebi o livro Epitáfio, de Flávio Paranhos (Nankin Editorial). O autor é médico e estudioso do pensamento heideggeriano. Comete um único pecado: mora em Goiânia, e por isso seus contos, muitos deles terríveis, correm o risco de morrer no cerrado.
A vontade de escrever dominou este (ainda) desconhecido autor. A possessão necessária. Em seu livro (é o primeiro) há velhos demônios. A influência kafkiana, em particular, mas talvez mais ainda a de Samuel Becket.
O livro alimenta-se da concepção de um mundo sádico (será o nosso mundo?). Nele, ouço risos ensandecidos, intervalo para a tortura do estar-vivo – e ser torturado sabe-se lá por quê. O clima de absurdidade, as obsessões, o insólito, as premonições, o aspecto infernal e cruel da vida sem sentido.
Belo epitáfio para quem está só começando.
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Doutor em Educação pela USP e escritor